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Populismo - um conceito (deturpado) acrítico que mais confunde que explica!

Populismo

"Populismo

 

A. O termo populismo tem sido aplicado a movimentos políticos de diversas épocas e em várias regiões. Esses movimentos tiveram características sumamente diferentes das registradas pelos movimentos e regimes políticos latino-americanos aos quais o termo foi também aplicado. (Para um exame da variedade mundial de populismos, consultar IONESCU, G. & GELLNER, R. [orgs.]. Populismo. Sus significados y características nacionales. Buenos Aires, Amorrortu, 1969).

No que diz respeito à América Latina, embora a variedade observada seja muito menor, é conveniente começar a tentativa de definição assinalando alguns dos fenômenos aos quais se estende o conceito de populismo. De modo geral, o termo tem sido aplicado quando ocorrem nas nações latino-americanas, depois da crise mundial que teve início em 1929, mudanças políticas que levam, segundo o caso, à ruptura com formas tradicionais de dominação autoritária ou com as que G. Germani denominava “democracias de participação restrita” (ver Política y sociedad en una época de transición. Buenos Aires, Paidos, 1962). Aliás, alguns autores incluem também a Revolução mexicana como um caso de populismo.

É matéria muito mais discutida a especificação dos atributos que distinguem o populismo de outros regimes e movimentos. Como consequência disso, embora exista um acordo generalizado para considerar como tal alguns casos, como o período do getulismo no Brasil ou o do peronismo na Argentina, sempre existem dúvidas a respeito de outros casos menos nítidos, como por exemplo os recentes governos da Democracia Cristã no Chile e o da Ação Democrática na Venezuela, nos quais, apesar de existirem algumas características de populismo, não ocorreram rupturas notórias com o quadro jurídico-constitucional preexistente, ou o caso do regime militar peruano, em que o componente pessoal de liderança (evidente nos casos de Getúlio Vargas e Juan Domingo Perón) ficava diluído no contexto e um papel altamente institucionalizado das Forças Armadas no exercício do governo.

Também em consequência dessas dificuldades de se chegar a uma definição mais adequada, surge certa confusão a respeito o populismo como tipo de regime. O termo resultante dessa espécie de movimento deve ser examinado no nível em que podem ser mais bem delineadas as condições em que surgiu
as suas características
, se bem que, para uma análise mais
específica, seja
indispensável levar em conta se esse movimento conseguiu ou não levar seus dirigentes a ocuparem as mais altas posições no governo em plano nacional. Esse segundo aspecto será encarado aqui do ponto de vista das condições do advento do populismo e dos seus relacionamentos com algumas características diferenciais das nações em que esses movimentos ocorreram.

 

B. Os mais autorizados trabalhos sobre o tema ressaltam aspectos que, sem serem necessariamente incompatíveis entre si, conduzem não só a diferentes critérios de inclusão e exclusão de casos dentro da categoria, como também a um diferente balanço das consequências positivas e negativas do populismo, e isto em razão das preferências de cada autor. G. Germani (op. cit.) inclina-se a ver o populismo como consequência de defasagens ou falta de sincronia do processo de modernização das sociedades latino-americanas, principalmente quanto à promoção de altos índices de mobilização social (com a consequente produção de massas “disponíveis” em um contexto urbano, ainda vinculado a atitudes ou a valores tradicionais e suscetíveis de corresponder a ideologias autoritárias elaboradas por elites) em relação aos processos de integração das novas estruturas sociais geradas pelos processos de urbanização e industrialização da região.

De um ponto de vista diferente, T. Di Tella (a versão mais recente da concepção desse autor encontra-se em Clases sociales y estructuras políticas. Buenos Aires, Paidos, 1974) considera o populismo resultante de uma aliança entre setores populares urbanos mobilizados pela “revolução das aspirações” e alguns segmentos de camadas mais favorecidas portadoras de motivações contra o status quo e capazes de formular uma ideologia fortemente emocional. Esta elaboração depende do peso relativo dessas camadas dentro de suas respectivas classes, ou do grau de conflito interno, que levaria a mudanças mais ou menos profundas em suas sociedades e se tornariam mais ou menos suscetíveis de serem posteriormente reabsorvidas em movimentos e regimes mais ajustados ao sistema institucional vigente. Por outro lado, H. Jaguaribe destaca em sua análise uma relação de tipo carismático entre a liderança-individual e as massas urbanas, de que resultam fortes limitações ao conteúdo e à estabilidade das mudanças sociais, aparentemente visados por esses movimentos em suas etapas iniciais (ver principalmente JAGUARIBE, H. Crisis y alternativas de América Latina: reforma o revolución. Buenos Aires, Paidos, 1973).

 

C. Características e condições do populismo. Visto de um ângulo diferente, é possível destacar sistematicamente o populismo como resultado e como poderoso agente de transformações registradas no sistema econômico, na estrutura de classes e nos padrões de domínio político na América Latina — transformações essas que tiveram seus episódios desencadeantes primeiro no impacto da crise mundial de 1929 e, posteriormente, nos rápidos processos de industrialização originados pelos efeitos internos dessa crise em quase todos os países latino-americanos. Com certas variações, esse é o enfoque de vários ensaístas (ver WEFFORT, F. C. Classes populares e desenvolvimento social. Contribuição ao estudo do ‘populismo’. Santiago de Chile, Inst. Latinoamericano de Planificación Económica y Social, CEPAL, 1968. mimeo.; CARDOSO, F. H. & FALETTO, E. Desarrollo y dependencia en América Latina. México, Siglo XXI, 1969; IANNI, O. Populismo y relaciones de clase en América Latina. In: Revista mexicana de ciência política. XXVIII (67), ene. 1972; O’DONNELL, G. Modernización y autoritarismo. Buenos Aires, Paidos, 1972). A rapidez e a profundidade com que as economias latino-americanas reagiram à crise mundial de 1929, mediante um forte progresso na industrialização, dependeram muito das condições preexistentes em cada país, especialmente do grau de diversificação de sua economia, das reais dimensões dos mercados internos e do peso relativo dos setores médios e populares urbanos em que se apoiaria o populismo. O caráter predominantemente urbano dos sustentáculos políticos do populismo imprime uma importante diferença entre os movimentos aos quais foram aplicados esses termos em outras partes do mundo e onde o componente rural foi muito forte.

Essas respostas diferentes às crises externas (para cujo estudo deve-se consultar CARDOSO, F. H. & FALETTO, E. Op. cit.) influíram consideravelmente, tanto nas metas das mudanças sociais articuladas pelos dirigentes do populismo, como ainda na amplitude do apoio que setores das classes médias e altas outorgavam aos movimentos e regimes populistas. Nos casos de um reduzido mercado interno e escasso desenvolvimento prévio dos setores médios, nos quais a tendência para a industrialização teve que ser mais demorada e limitada, o auxílio do setor popular urbano foi mais fraco e os movimentos populistas, na ocasião em que surgiram, combateram muito mais radicalmente o domínio oligárquico no setor agrário. Em alguns casos, os seus dirigentes chegaram a ocupar cargos no governo, como aconteceu com o MNR na Bolívia, ou foram impedidos de fazê-lo, como aconteceu com a APRA no Peru, mas as linhas de conflitos com os setores tradicionalmente dominantes foram muito agudas e as metas articuladas pelos líderes populistas foram inicialmente muito mais radicais. Nos casos em que, ao contrário, foi possível realizar progressos mais cedo e mais rápido na industrialização, como aconteceu com os exemplos típicos do getulismo no Brasil e do peronismo na Argentina, as metas articuladas por seus dirigentes e o impacto social do populismo ficaram muito mais limitados ao setor urbano. O resultado foi que, embora os setores agrários, principalmente os vinculados às exportações, ficassem prejudicados em benefício dos setores urbanos, eles nunca chegaram a criar problemas, como os da propriedade das terras, que tanto contribuíram para agravar conflitos e cristalizar alinhamentos políticos nos casos anteriormente mencionados.

As grandes diferenças que se acaba de apontar servem para mostrar a necessidade de levar em conta vários aspectos que marcam a variedade de regimes, movimentos e impactos sociais do populismo na América Latina. Entre esses aspectos, é preciso considerar em primeiro lugar as características já existentes de cada sociedade e suas diferentes reações à crise mundial de 1929. Em segundo lugar, as transformações em cada movimento, no decorrer do tempo, em relação às metas visadas e aos setores sociais que lhes deram apoio, em grande parte dependeram da intensidade e da homogeneidade de oposição despertada por parte dos setores que antes dominavam. Em terceiro lugar, o que foi dito até agora leva a crer que seria analiticamente inconveniente estender o uso do termo a casos como o da Revolução mexicana, que produziram profundas transformações sociais com forte apoio popular, mas nos quais o desencadear do processo obedeceu a circunstâncias muito diferentes das da crise mundial e do início das etapas da rápida industrialização.

Da mesma forma, os critérios definitórios aqui sugeridos mostram que não se deve estender o uso do termo aos casos já mencionados que não produziram rompimentos abruptos e duradouros com o sistema institucional existente antes de 1930. Uns e outros casos mostram importantes paralelismos com os que foram aqui mencionados, mas as diferenças assinaladas possuem uma qualidade suficiente para aconselhar a reserva do conceito de populismo a situações definidas de forma mais específica.

 

D. Com as ressalvas já mencionadas, é possível caracterizar o populismo como resultante de um conjunto de fatores estreitamente interligados: a profunda perturbação na economia latino-americana, exportadora de produtos primários, originada pela crise mundial de 1929 e pelas políticas adotadas depois pelas nações centrais; a diminuição relativa da posição econômica das oligarquias tradicionais, e em especial do setor mais dinâmico ligado à exportação; as restrições aduaneiras e cambiais adotadas pelos governos da América Latina, originalmente orientadas para os problemas do balanço de pagamentos, surgidos com a crise, mas que tiveram um rápido impacto na promoção da industrialização para substituir as importações; o crescimento de um setor industrial, insuficientemente integrado e politicamente débil, que, apesar dessas deficiências, resultou na formação de camadas empresariais que mostravam interesses parcialmente diferentes dos setores tradicionalmente dominantes, assim como de uma classe trabalhista urbana e novos setores da classe média que cresceram rapidamente, acompanhando a industrialização; a expansão das funções do Estado latino americano como consequência dos processos já referidos; formulação de ideologias nacionalistas que viam na industrialização e num mercado fechado às transações com o exterior uma condição necessária para o aumento do poderio nacional e uma precaução contra qualquer crise mundial.

Esses fatores provocaram em conjunto profunda recomposição das forças politicamente relevantes. A dominação oligárquica tradicional começou a desintegrar-se diante do surgimento de novos setores urbanos industriais e da mudança de posição de alguns setores médios mais tradicionais, principalmente a Forças Armadas, que pugnavam por políticas autárquicas industrializantes. No entanto, os novos interlocutores político das classes tradicionalmente dominantes não chegaram a conseguir uma completa transformação do sistema de domínio vigente em suas sociedades. Os setores agrários conservararam quase sempre a propriedade da terra, um alto prestígio social e principalmente a chave das cada vez mais cruciais exportações de seus países.

Nesse complexo processo de conflitos e também de complexas de relações entre os novos e os antigos setores dominantes, setor popular urbano passou a desempenhar papel importante na formação do populismo, embora dependesse dos outros setores. Realmente, a complexidade e os novos segmentos internos dos setores dominantes levaram alguns outros segmento principalmente os relativamente novos ou ainda em posição de relativa debilidade, a estratégias que os processos de industrialização e seus correlatos de ampliação do mercado, urbanização e começo de formação de uma classe trabalhista haviam precisamente começado a possibilitar. Assim, forjou-se uma aliança com os setores populares, baseada principalmente em um programa nacionalista e contrário às oligarquias (embora em sua concretização ambos os aspectos se detivessem aquém do enunciado), de crescimento do peso relativo do Estado dentro de normas politicamente antiliberais, industrializantes, orientadas para a ampliação do consumo no mercado interno.

Essas dimensões caracterizam tanto os movimentos populistas como as etapas iniciais dos governos que conseguiram conquistar, mas é necessário acrescentar dois aspectos que deriva diretamente delas. O primeiro é que o populismo foi em parte expressão e em parte fator de agravamento da crise oligárquica na América Latina. Essa crise não se resolveu com uma volta ao passado nem com a consolidação de um novo domínio sobre os setores das classes média e alta, que, mediante o populismo, desafiaram o antigo esquema oligárquico. A crise transcorreu ao longo de um processo de conflitos parciais e de sucessivas reacomodações entre esses setores, que aumentaram bastante não só o âmbito objetivo do Estado, como também a sua autonomia perante a sociedade. Embora a muito longo prazo não deixasse de refletir os fortes desníveis de poder existentes, o Estado surgiu então muito mais como árbitro, e às vezes ; mesmo como elemento determinante de interesses e exigências dos setores dominantes entre si e com os setores populares, em um papel que aparecia fortemente personalizado no líder populista.

O segundo aspecto é o que se refere às complexas relações que se estabeleceram com os setores populares urbanos. Por um lado, não há dúvida de que a sua participação na aliança antioligárquica, nacionalista, industrializante e estatizante foi subordinada aos segmentos de setores dominantes que entraram com a liderança, com as metas e com a condução tática do populismo, tanto do movimento como do regime. Também não há dúvida de que a ampliação da participação política e econômica tenha sido mais aparente e instável do que poderia ter parecido no começo do populismo, e de que desde um primeiro momento — porém muito mais acentuadamente desde que progrediram as reacomodações entre os novos e os antigos setores dominantes e a expansiva política econômica do populismo começou a tropeçar em numerosos obstáculos — a relação com os setores populares tenha gozado de um marcante componente de controle e manipulação. Por outro lado, porém, se bem que no governo o populismo ajudasse a construir (caso da Argentina) ou praticamente construísse (caso do Brasil) a classe trabalhadora e suas organizações “partindo de cima” e, embora isso significasse a implantação de sistemas institucionais de controle de tipo corporativo, o balanço final do populismo não poderia excluir as importantes consequências de uma experiência, embora retardada e precária, de participação política e econômica, nem os importantes progressos seguidos na organização do setor popular urbano. Uns e outros resultados são evidentemente muito diferentes dos padrões de organização, fixação de metas e surgimento de liderança muito mais autônomos, ocorridos durante a entrada na arena política do setor popular (e em especial da classe operária) nos países ocidentais do norte.

Mas as condições estruturais que geraram o processo de industrialização substitutiva e o papel subordinado, porém indispensável, desempenhado pelo setor popular para que os movimentos populistas tentassem (como já foi mostrado, com variado êxito e radicalização, segundo cada país latino-americano) o rompimento do esquema tradicional de dominação oligárquica, devem alertar contra o erro de supor que, no que diz respeito ao setor popular, o populismo foi exclusivamente controle, manipulação e participação simbólica.

Um problema diferente é o do esgotamento da política econômica expansionista do populismo, a emergência de novas e inesperadas formas de inserção dependente no contexto mundial, os acordos conseguidos pelos novos setores com os mais antigos e tradicionais, o consequente segmento que se estabeleceu entre o conjunto desses setores e o setor popular e, finalmente, o advento de novas formas de articulação da economia e do domínio político na América Latina nesta última década. (Sobre o fim do populismo e os caminhos abertos a partir daí, consultar CARDOSO, F. H. & FALETTO, E. Op. cit.; e O’DONNELL, G. Op. Cit.).

Esses aspectos marcam, junto com o fim do populismo, os severos limites de uma política de expansão do mercado interno, de industrialização para substituir importações e de aumento transitório da fluidez da estrutura social latino-americana, ocorridos sem que tenha sido possível pôr em dúvida a sobrevivência dos setores tradicionalmente dominantes nem dos aspectos essenciais da inserção dependente desses países no contexto internacional.

A crise conjunta desses aspectos confere aos períodos populistas o caráter ambíguo e instável com que, por um lado, contribuíram para a liquidação de formas tradicionais de domínio e, por outro, prenunciaram outras, que por certo continuam expressando a subsistência de problemas de desigualdades, pobreza, dependência e rigidez sociais, que o populismo, pelo menos nos seus momentos iniciais, talvez tenha parecido disposto e capaz de começar a solucionar.

 

Fonte: Dicionário de Ciências Sociais, Fundação Getúlio Vargas – MEC – Fundação de Assistência ao Estudante 1986. (páginas 935 a 937).

 

Fonte da imagem: http://www.culturamix.com/cultura/politica/democracia-e-populismo/.