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Pitagoriando em Sampa - Capítulo VI

 

Pitagoriando em Sampa

 

CAPÍTULOVI

 

Três a quatro dias se passaram e tudo corria conforme o esperado. Nos preocupava, contudo, a ausência de resposta de duas pessoas. Eis que no quinto dia de angústia, encontramos na caixa de mensagem um e-mail com o seguinte conteúdo:

 

Não respondi anteriormente porque tive que ir até meu mestre Sócrates e convidá-lo para o evento, pois sendo ele avesso à escrita, logo, também, ao computador, não leu a mensagem dos senhores. Depois de convidá-lo, ele me pediu mais um dia para pensar se aceitaria o convite, o qual foi reforçado por mim. Com a sua resposta, informo-vos: vamos comparecer. Cordialmente, Platão”.

Não preciso dizer da grande festa que fizemos para comemorar tão ilustres participações, pois agora não tínhamos mais dúvidas do sucesso do evento.

- Infelizmente, temos que ser realistas, disse o pragmático Thadeu, embora tenhamos todos os ingredientes para tornar o nosso encontro um sucesso, pois temos o local e os palestrantes mais ilustres do planeta, como faremos para que as pessoas tenham acesso às informações que serão produzidas? Não podemos sair de porta em porta dizendo a todos o que está ocorrendo. Sem o apoio da mídia, nosso projeto ficará restrito a não mais de quinhentas pessoas, quando nosso objetivo é atingir todos os milhões de paulistas, paulistanos, brasileiros e bilhões de pessoas pelo mundo todo. Estou dizendo isso porque já recebemos respostas de toda a mídia se comprometendo a cobrir e, consequentemente, divulgar o evento, mas a toda hora lembro de milhares de formadores de opinião que ainda não foram convidados.

- De quem você lembrou agora, por exemplo? Perguntei.

- Do pessoal da TV Cultura, por exemplo.

- Mas nós já convidamos a emissora e ela aceitou o convite, disse Luíza B.

- Tudo bem, mas quem virá? Certamente que ela mandará um bom profissional, mas têm tantos por lá. Melhor convidarmos individualmente. Temos, por exemplo, o Marcelo Tass, por fim, o Dario Vizeu, a Eliana Lobo, a Marta Maia, o Pedro Vieira, a Sílvia Maurício, o Carlos Nascibeni e o Walter Silveira, o pessoal que produz oCafé Filosófico, que é um excelente programa, pena que é apresentado quando nós estamos dormindo.

- O papai tem comprado as fitas dos programas. É dessa forma que tenho assistido as palestras, acrescentei.

- Acredito que convites pessoais, enquanto tivermos lugares disponíveis, podem ser feitos até uns dois, três dias antes da abertura. É claro que não podemos fazer em cima da hora em respeito às pessoas, que podem ter outros compromissos, ponderou Luíza B.

- Tem todo o pessoal que trabalha com cultura no caderno Cultura do Estadão, e do caderno Mais! da Folha. São pessoas que há muito tempo vêm lutando pela cultura de nosso país, as quais não podem ser esquecidas.

- Mais levar tanta gente do mesmo espaço não pode ser uma redundância. Vários escrevendo sobre o mesmo tema e ao mesmo tempo? Questionei.

- Absolutamente, disse o Thadeu. Os filósofos gregos vêm sendo interpretados por milhares de intérpretes, e cada um desses intérpretes sempre encontra em seus pensamentos algo novo capaz de provocar uma releitura. A mesma coisa é vista de ângulos diferentes por cada observador/intérprete. Ninguém pensa igual a outra pessoa; mesmo os mais ferrenhos discípulos em uma determinada hora se afastam de seus mestres. O próprio Aristóteles divergiu de Platão. Sendo assim, cada repórter, jornalista, estudioso, dará a sua versão do que ouvir.

- Tem razão o Thadeu, aderiu Luíza B.

- Também estou convencido. Prossigamos, então. De quem você já lembrou, Thadeu?

- Dentre outros, do: Ubiratan Brasil, o Ilan Kow, Luiz Américo Camargo e Miguel Icassatti (estes três últimos são o editor e reportes do Guia), todos do Estadão; tem ainda o Robinson Borges, que escreve sobre cultura no Jornal Valor. Do Mais! Pensei em: Marcos Flamínio Peres e Marcelo Coelho, além do: Manuel da Costa Pinto, Nelson Ascher e Sylvia Colombo e Alexandre Matias, do caderno Ilustrada, também da Folha. É claro que sempre vamos lembrar como esquecer de pessoas que, infelizmente, não poderiam deixar de ser convidadas, melhor ainda, de comparecer.

- Meu, falar em esquecimento, eu estava me esquecendo de pessoas que são fundamentais para a divulgação da cultura em Sampa, e, em particular, para mim. É o caso do Adriano, aquele livreiro que tem sua banca em frente ao Espaço Cultural Unibanco, aqui na Augusta. O cara, além de vasta cultura, vende livros fantásticos, escolhidos com enorme bom gosto, embora todos os livros sejam importantes. Foi com a ajuda dele que o meu pai me iniciou na leitura da filosofia. Com ele compramos, dentre outros, Gore Vidal (Criação, Lincolnetc), Julio Cortazar (JogodaAmarelinha), Riane Eisler (Ocáliceeaespada), Werner Jaeger (Paideia), Toynbee (Ahumanidadeeamãe-terra), toda coleção dos Pensadores, da Abril Cultural, e tantos outros bons livros. Tem também o “Baixinho”, lógico que o apelido decorre de sua estatura, cujo nome é, soube depois de muito tempo, Asser Batista, que eu chamo de “ambulante da cultura”, pois ele não tem ponto fixo, embora esteja sempre na Paulista e seus arredores. Ambulante porque sua banca está montada sobre um carrinho que ele puxa para todos os lados, à semelhança dos catadores de papel. Só que os seus papéis são valiosíssimos tesouros. Já compramos com ele, por exemplo: Bertrand Russell (Oconhecimentohumano e Históriadopensamentoocidental), Diógenes Laêrtios (Vidasedoutrinasdosfilósofosilustres, obra rara editada pela UNB), Toynbee (Aherançadosgregos), Danilo Marcondes (Iniciaçãoàhistóriadafilosofia), Pierre Vidal-Naquet (Osgregos,oshistoriadores,ademocracia e OmundodeHomero). Foi pelas mãos de um deles que fiquei conhecendo Miguel Spinelli. Tem ainda um novato naquela área, é o Professor Hélio Gordon, ele tá me municiando com livros sobre linguística, um novo campo que papai está me fazendo gostar, e tudo sobre a Grécia e os gregos, é autor de um livro de matemática, cujo título é Ahistóriadosnúmeros, que, depois de eu comprar vários outros livros, ele me presenteou com um exemplar, cuja leitura é muito saborosa. Lá conheci, também, o Carlos Elson Cunha, ou, simplesmente, Elson, como é conhecido, que além de excelente livreiro e escritor – escreveuOlivrodasabedoriaindiferenteContoseaforismosdeDabu– é, também, um excelente autor inédito. Tem histórias fantásticas, que estão apenas na sua cabeça, pois as narra sem que as tenha, ainda, escrito. Vendendo seu livrinho vermelho, BaladaPerdida, está rondando a área o Ricardo Carlaccio. Nessa obra, muito louca, diga-se de passagem, o Ricardo ressuscita a Janis Joplin, que absurdo, pois a cantora morreu há mais de trina anos! São inúmeras outras obras que adquirimos com esses “proletários” da cultura, por isso a eles devo tanto.

- Você não vai convidá-los para o evento? Perguntou-me Luíza B.

- Não, não vou convidá-los, vou obrigá-los a ir, mesmo que tenhamos que comprar todo os seus estoques. Melhor, vamos pedir para que eles armem suas bancas no local, embora estejam impedidos de negociar durante as palestras. O que vocês acham?

- É um forma justa de homenagear quem tanto difunde cultura, como você diz, concordou Thadeu.

- Concordo, confirmou Luíza B.

- Tenho uma informação importante: três grandes empresas produtoras de papel (Suzano, Votorantim e Klabin) responderam nossos e-mails, todas positivamente. Vi nos jornais e revistas dos últimos dias que a Suzano foi comprada pelas outras duas, mas se as compradoras responderam positivamente, por que mudariam a resposta da comprada?

Questionei ao Thadeu:

- Disseram com o que nos podem ajudar?

- Não, mas agendaram reunião, inclusive marcando dia e hora. Se não ajudarem com muito, pelo menos papel já nos serve, pois as palavras escritas dominam o mundo. Quem ter o poder de ter papel tem o poder sobre tudo, ou quase tudo, inclusive mentes e bocas.

- O cara tá demais, mano, brincou Luíza B. Já temos nosso executivo! Penso até que seria melhor que você fosse lá sozinho, Thadeu.

- Nem pensar, mina, aliás, pensar é o meu negócio, mas executar é com vocês.

Foi hilariante a forma como ele se expressou, mas, por detrás da brincadeira, havia muito de seriedade e senso de responsabilidade; o cara vestiu totalmente a camisa da nossa causa, eu não tinha mais a mínima dúvida quanto a isso.

Alguém bateu à porta, era a Raitza:

- Seus pais, tios e sogros já estão esperando para irem jantar.

Nos entreolhamos assustados, não só pelo discurso da Raitza, mas também por percebermos que o tempo tinha voado. Não observamos que “a noite já caíra sobre o mundo”, como disse Pablo Neruda em um de seus belos poemas.

- Já estamos indo, Rá, obrigado. Virei-me para os meus outros dois interlocutores e completei: - agora que ela falou em jantar, estou com uma fome de leão, vamos nessa?

- Vou salvar o conteúdo dos e-mails e já estou indo, disse o Thadeu.

- Eu também estou morta de fome. Vamos, então? Complementou a Luíza B.

Não respondi, ajudei-a a levantar-se segurando em sua mão e saímos do quarto. Ao chegarmos à sala, ouvimos:

- E o Thadeu? Quis saber papai.

- Já está vindo, meu sogro, está fechando o computador, está hiper responsável, está com medo de perder arquivos e e-mails.

Senti aquela entonação do “meu sogro“ como uma tentativa de me enquadrar, embora Luíza B. tivesse falado normalmente. Papai também percebeu meu espanto que eu pensava ter somente ocorrido no meu interior, e me sorriu marotamente com o canto da boca, como quem diz: “sai dessa”. Procurei não perder a pose e nem demonstrar para a pronunciante o que o meu pai já vira. Felizmente ela estava ao meu lado e assim não pôde ler meu espírito por intermédio dos meus olhos, o que não ocorreu com o velho, por estar ele à minha frente. Tentei provar a mim mesmo que aquela frase tinha sido fruto de nossa convivência prolongada, uma vez que nesses últimos tempos quase nada tínhamos falado sobre nós. Quando parávamos de trabalhar já estávamos bastante cansados para termos o que dizer um ao outro, além de rememorar o que tinha acontecido e o que pretendíamos fazer no dia de amanhã. A pouca força que ainda tínhamos era direcionada para o amor, oportunidade e local que, convenhamos, não é apropriado para discurso.

Após a chegada do Thadeu fomos para a garagem e nos dirigimos para a pizzaria. Lá chegando, após fazermos os pedidos, ouvimos:

- As mãos estão lavadas? Era mamãe e suas lições de higiene.

Fomos ao lavabo e em poucos minutos a preocupação de D. Walkíria, estava solucionada.

Papai percebendo que, mesmo assim, eu não dei a atenção que devia à recomendação materna, por estar viajando em meus pensamentos, resolveu me fazer voltar ao concreto, perguntando:

- Filhão, como andam as coisas?

Demorei além do normal para responder, buscando encontrar palavras por intermédio das quais eu pudesse dizer algo sobre a frase que ouvimos antes de sairmos de casa e que me deixou meio preocupado, isso porque não queria que a Luíza B. compreendesse a mensagem cifrada. Tentei algo assim:

- Tirando aos imprevistos imprevisíveis e desnecessários, tudo corre muito bem. Temos tido uma receptividade quase de cem por cento com os nossos interlocutores. Só não chega aos cem por cento porque alguns ainda não responderam, mas os que responderam, pelo simples fato de terem respondido, já nos deixaram bastante alegres com a possibilidade de concretizarmos as parcerias que buscamos; além do mais, todas as respostas são no mínimo positivas, pois aqueles que não aderiram de imediato, desejam saber mais e pessoalmente do que se trata. No que eles estão certos: ninguém deve entrar por caminhos que desconhece e nós não queremos falar por ninguém, desejamos resolver situações que nos envolvam conjuntamente, têm coisas em que não se pode ser unilateral, decidir pelos outros. Percebi, nesse instante, que meu pai compreendeu minha nova mensagem sobre o “meu sogro”, pois seus olhos refletiam aquele brilho característico de quando ele me olhava tentando justificar, muitas vezes, o injustificável. Mas voltei a falar: - o bom é que ninguém ainda, e espero que assim continue, respondeu negativamente. Mas o homem de contato é o Thadeu.

- Que que eu tenho a ver com essa história mesmo?

- Tô falando para o papai a respeito de nossas correspondências com os nossos parceiros.

- Entendi. Tá indo muito legal, bem mesmo, tio. Se continuar assim vamos ganhar de lavada da ignorância que muitos insistem em dizer que ronda nosso país.

Com a chegada de nossos pedidos, mamãe pegou nossos pratos e nos serviu com a generosidade típica das mães, que pensam que os filhos são capazes de comer quantidade igual ou superior ao seu próprio peso. Mas, naquele dia, por estarmos realmente famintos, não houve protestos, especialmente porque o molho branco do macarrão parecia estar divino, fato que foi comprovado na primeira garfada. Após servir-nos, ponderou:

- Mas eu não vejo vocês saírem daquele quarto, meninos, parece que estão esquecendo até de comer. Nem merendar quiseram hoje, preocupou-se mamãe.

- Com o computador e a internet, meu amor, o mundo ficou pequeno, as pessoas não precisam ir ao encontro das outras para conversar. Essas duas armas vão mudar, se é que já não mudaram, o mundo. Pena que computador não saiba ligar por si mesmo quando alguém envia mensagem para o seu dono. É que aí saberíamos que alguém quer falar conosco. Pena também que para encontrarmos alguém tenhamos que saber o seu endereço corretíssimamente, pois faltando uma letrinha... Felizmente os sítios de buscas, como o google, altavista, cadê, ajudam bastante. Aliás, eu diria que são ferramentas fundamentais. A internet é um verdadeiro oráculo de Delfos (cidade que para os gregos é considerada o “umbigo do mundo”), a divindade grega que tinha um templo na cidade de Delfos, e que respondia a todas as perguntas e ainda orientava as pessoas. Aliás, o elo entre os deuses e os homens era estabelecido pelo Oráculo. Oráculo, vocábulo que significa resposta, era um diálogo (mais acertado seria dizer monólogo) entre a Pitonisa ou Sibilia e o deus por ela invocado.

- Sei disso, meu amor, respondeu mamãe, mas acredito que algum contato pessoal ainda é necessário. Não acredito que com essa história de amor virtual nós viéssemos a ganhar um neto, não é Luíza B.?

Meu coração disparou; via, juntamente com papai, minha camisa balançar com a forte pulsação. Minha mãe, que era espertíssima, também tinha percebido a história do “meu sogro” e a minha incômoda situação. Não era de se admirar aquela intuição materna, afinal eu saí de dentro dela, era um pedaço seu que caminhava separado.

Notei que papai sorria para dentro e tentava disfarçar olhando para seu prato; apenas Thadeu e Luíza B. não percebiam o nosso diálogo trilateral de olhares.

Eu, que como muito rápido, embora tenha consciência que isso é errado e viva tentando me corrigir, comi mais rápido ainda, ou melhor, engoli direto para tentar acabar logo e sair da mesa por um momento.

- Calma, meu filho, disse papai sarcasticamente, o mundo não vai acabar. A comida, mesmo no caso do macarrão, deve ser mastigada muitas vezes, pois além de já ser engolida triturada pelos dentes, poupando, assim, maior esforço do intestino, que não dispõe de molares, leva consigo a saliva, que, com suas proteínas, ajuda na digestão dos alimentos. Nós queremos você saudável; afinal, a humanidade precisa ser perpetuada.

Vi que minha aflição tinha se tornado motivo de brincadeira para os meus pais, os quais, sutilmente, tentavam gozar da minha cara. Foi, então, que pensei em deixar aquilo para lá. Ora, se eles, que são quem me sustentam, que iriam, se fosse o caso, no futuro próximo sustentar minha mulher e também um filho meu, estavam rindo, por que eu deveria me preocupar? Até porque não havia motivo para tanto. Era a convivência prolongada daqueles dias de estudos e trabalhos que me deixou muito próximo à Luíza B. e que a levou a não pensar no que dizia. Embora, como asseveram meu próprio pai e a Danuza Leão em suas crônicas maravilhosas ao domingos na FolhadeSãoPaulo, mulher gosta mesmo é de se apropriar do seu homem.

Meus pensamentos foram interrompidos pela voz sonora, quase cantada, de papai:

- Vamos à sobremesa, crianças?

- Vamos sim, precisamos adoçar mais ainda essa noite e o futuro doce que nos espera, completei.

Meus pais compreenderam na minha frase a mudança de comportamento a que me propus. Se era para brincar, resolvi entrar no jogo deles. Sorrimos os três largamente, para espanto de Thadeu e Luíza B., que não entenderam que os códigos secretos foram inventados por familiares.

Enquanto a Luíza B. foi ao banheiro, minha mãe lembrou da nossa conversa no dia em que lhe contamos a ideia do evento e ela pensou que iria se tornar avó. Agora, o mesmo pensamento lhe voltou à memória.

Após o jantar voltamos para casa, onde ficamos na sala a assistir um jornal na TV. Enquanto todos faziam a digestão, inventei que precisava ir ao banheiro, com o que meu pai brincou:

- Nervosismo dá diarréia, e caiu na gargalhada. Dessa vez minha mãe foi discretíssima em sua sombra de sorriso.

Fui para o meu quarto e apanhei meu celular para conferir os recados que estavam na sua caixa postal, pois tinha certeza que a Lélia e a minha bela professora tinham ligado, uma vez que para elas não dei o número do telefone fixo, então, o único modo de me encontrarem era mesmo o celular.

Dito e feito. Tinham várias mensagens da Lélia, mas a Luciana, deixou apenas uma mensagem, na qual dizia somente: “Estou com saudades”. Já as mensagens da Lélia, eram, as primeiras me pedindo que retornasse a ligação, as intermediárias me cobrando respostas, as últimas, já eram xingamentos explícitos. Após ouvir todas essas mensagens decidi: vou dar um tempo no meu namoro com a Lélia. A moleca resolveu encarnar, colar, grudar. Dá um tempo! Sai do meu pé! Mas como vou dizer isso para ela? Vou pedir ao Thadeu que termine meu namoro por mim. Se eu mesmo for falar posso não ter coragem ou ela pode brigar ainda mais comigo, além daquilo que já brigou por telefone. Até amanhã eu decido.

Saí do banheiro e já encontrei o Thadeu ligando o computador e perguntei-lhe:

- O jornal já acabou?

- Ainda não, mais não tô muito interessado nele, tô mais curioso para ler todos os e-mailsque recebemos. Fazer uma seleção por assunto e depois discutirmos.

- Belê, vou lá na sala rapidinho e já volto.

Não obtive resposta ou permissão de meu interlocutor e saí. Ao chegar à sala, percebi que os três conversam animadamente, mas o assunto era mais ameno, combinavam uma ida à cidade de Campos do Jordão no próximo inverno. Sentei ao lado de mamãe e a abracei pelo pescoço e fiquei ouvindo o jornal na televisão, no qual eles não estavam interessados. Quando o jornal terminou, disse que ia voltar para o quarto, pois o Thadeu estava me esperando. Luíza B. disse que também já iria. Levantamo-nos e após os beijos de praxe em meus pais, fomos para nossa toca.

- Irmãozinhos, o negócio demais, todo mundo prestigiando, querendo saber mais e a forma como ajudar.

- Ótimo, então, amanhã caio em campo para fazer a minha parte, falou a Luíza B.

- Juarez e Luíza B., vocês não vão acreditar, mas os sofistas, todos eles confirmaram suas vindas, e o que é melhor, não cobraram nada!

Todos rimos.

- Isso sim é que é notícia, meu irmão.

- Pessoal, tive mais uma das minhas brilhantes ideias, brincou o Thadeu.

- Diga lá, respondi.

- “Siguinte”: vamos montar uma página na net para nos comunicarmos melhor com nossos parceiros. Colocamos nela todas as informações que entendermos úteis, e para lá encaminharemos todos que quiserem saber mais sobre evento. Já tenho até o nome do sítio (ou home-page).

- Podemos saber qual é? Perguntou a Luíza B.

- Obviamente, é: www.pitagoriandoemsampa.com.br

- Uau, de-ma-is!

- Também achei inteligentíssimo.

Thadeu levantou-se, arrumou a calça e o colarinho da camisa, se esticando todo e fazendo pose de intelectual, colocou os dois dedos da mão direita em forma de letra ele no queixo e ficou fitando o vazio.

- Já que, como não poderia deixar de ser, minha fantástica ideia foi aprovada, vou falar com um amigo meu que faz página na net; como é meu amigo, acredito que vá cobrar um preço justo.

- Vá em frente, me diga depois quanto é.

- Evidentemente, ou você acha que eu tenho alguma grana para “fazer frente a essa despesa”?

- Por falar nisso, vou te pagar o primeiro mês de salário.

- O qual já venceu há alguns dias...

- Tinha esquecido, pode fazer o recibo.

- É sempre assim, os patrões sempre esquecem, esquecem até que os empregados comem. Será que esquecem de comer também?

- Entre nós não, pois estamos sempre comendo juntos, como acabou de acontecer. Sabias que posso até descontar do teu salário alimentação e moradia?

- É um capitalista explorador.

- Nada disso, tá na lei capitalista, na CLT.

- Esqueçamos isso, vou fazer o recibo, pois pode ocorrer o pior: eu ser demitido.

Rimos bastante de tudo isso.

Trabalhamos mais um pouco e formos dormir, pois o dia seguinte prometia. Além da escola tínhamos cada qual as suas obrigações a cumprir.

Quando o relógio nos despertou, encontrei a Luíza B. banhada e vestida.

- indo.

- Prá onde?

- Vou passar em casa antes de ir para a facu, preciso me vestir para fazer as visitas. Tenho que por uma roupinha mais executiva, jeans rasgado não vai causar boa impressão.

- É incrível como as pessoas continuam, séculos e séculos, a valorizar a aparência das outras, pouco ligando para os seus conteúdos! De qualquer modo, boa sorte e faça contato comigo, pois quando você se afasta de mim começo a sentir saudades.

- Além de falso é mentiroso, respondeu-me.

Nos beijamos e ela partiu.

Enquanto estava sob o chuveiro, vi, através do vidro do box, que a tela do computador foi ligada e perguntei:

- Thadeu?

- Diga lá, mano.

- de e pronto pro trabalho?

- Não, estou deitado e coçando o saco, respondeu sorrindo.

- Aproveitando o teu bom humor matinal, quero te pedir um favorzão.

- Desde que não seja dinheiro emprestado, pode falar.

- terminando e te falo.

- Belê, é o tempo em que leio meus e-mails pessoais e alguns outros, se possível, pois o malando aqui anda super requisitado pela mulherada.

- Tudo bem, garanhão, conversamos, disse e voltei ao chuveiro para tirar a espuma do sabonete das minhas orelhas, que, de vez em quando, eu esqueço, lembrando quando estou me enxugando.

- Thadeu, é o seguinte: preciso terminar meu namoro com a Lélia e estou sem coragem de falar para ela.

- Você não mais gostando dela?

- Acho que não. Além do mais, ela pegandodiretaçono meu pé. Ontem, por exemplo, ela encheu a caixa postal do meu celular.

- E o que que você quer que eu faça?

- Quero que você termine com ela por mim?

- Como assim, não entendendo, te explicar melhor.

- É isso cara, quero que você diga para ela um tempo.

- Por que você não fala com ela? Me tira dessa.

- Você não vai fazer isso com o seu priminho querido, vai?

- Sei não, mas nessas conversas é melhor você ir diretamente. Matar o assunto. É que ela pode pensar que estou de sacanagem ou que você está com medo.

- meu, eu acho que ela vai armar barraco. Ela faloupacasno celular.

- Mais um motivo prá eu não me meter nisso.

- E me deixar na mão?

Falei de forma tão comovente que senti que ele fraquejou.

- Tudo bem, vou falar com ela e dizer que você cansou.

- Cansou não, pode magoá-la. Diga que estou muito ocupado. Inventa aqueles teus papos de aranha.

- Vou o que faço.

- Grande, amigão. Valeu, brigadão mesmo.

- É, mais agora vem cá. isso aqui.

Era um e-mail de Aristóteles, cujo teor era o seguinte:

 

Solicitoaossenhoresqueconvidemparaoeventoqueestãoorganizandoosseguintesmestres:Homero,Hesíodo,OrfeuePéricles.Grato,Aristóteles.

P.S.:osendereçosdelessãoosseguintes...

 

- Esse interessado mesmo em vir, disse ao Thadeu.

- Melhor assim, pensou se fosse o contrário?

- Nem me fale. Convidemo-los, então.

A manhã passou rapidíssima, a Luíza B. ligou bem próximo da hora de irmos para a escola e disse que tinha visitado três colaboradores, e que todos tinham sido muito receptivos e que iriam ajudar, o que foi motivo de muita alegria para todos nós.

Almoçamos e fomos para o colégio.

De longe avistei a Lélia, que estava de costas conversando com uma amiga nossa, a Ryana P. Puxei o Thadeu para trás de uma banca de revistas e disse-lhe:

- Primão, é a hora. Vai e fala com ela. Vou dar um tempo aqui enquanto você a convida para irem conversar na quadra, é o tempo que eu entro e vou direto para a sala de aula. Nos vemos na hora do recreio.

-comigo.

Vi quando o Thadeu chegou e cumprimentou a ambas com um único beijo na face de cada qual, como é costume paulistano. No Rio de Janeiro as pessoas se cumprimentam com dois beijos; nunca entendi o porquê desse costume carioca. Quando cruzaram o portão, aproveitei para caminhar rumo à sala. Chegando lá, como o local ainda estivesse vazio, sentei do lado oposto ao qual Lélia costuma sentar-se, e fiquei imaginando a conversa dos dois. Em poucos minutos foi o Thadeu quem apareceu na porta da sala. Estava sem cor e bastante espantado.

- Que foi, cara? Perguntei.

- Sujou. A mina no maior choro.

- isso? Por que essa tua falta de cor? Estás amarelo.

- Mano, o negócio vai ficar feio, mas é melhor você ir falar com ela.

- Mas você não falou?

- Falei, mas ela me deu uma notícia que eu nem sei como devo chamá-la, se de boa ou má. De qualquer modo, você pode resolver.

- Mano, ficando nervoso, fala logo o que é.

- Não, Juarez, isso infelizmente, e sem brincadeira agora, não posso falar, você tem que ouvir da própria Lélia. Vai lá.

- É grave?

- Vai lá, agora.

O agora soou como uma ordem. E era. Percebi que o Thadeu, sempre brincalhão, trazia na fisionomia a marca da seriedade, razão pela qual não discuti. Peguei minha mochila e me dirigi para a quadra. chegando, percebi que a Lélia estava sentada, sozinha, no último degrau da arquibancada, na extremidade oposta à entrada da quadra. Caminhei rapidamente e ao me aproximar falei:

- Tudo bem, Lélia?

Ela levantou o rosto, que estava lavado de lágrimas, e me fitou fixamente nos olhos, a ponto de me incomodar. Após alguns segundos disse:

- Vai depender da sua resposta ao que eu vou te dizer.

- Não faça drama, diga logo.

- Por que você não atendeu meus telefonemas todos esses dias nem me ligou?

- É isso?

- Não, claro que não.

- Então fala logo, a sirene vai tocar.

- Não estou nem um pouco preocupada com sirene, aula ou o diabo a quatro.

- Pois devia.

- Quem é você para dizer o que eu devia ou não, seu irresponsável.

- Se é para me agredir eu vou embora.

- mesmo, não preciso de você para nada.

- Por favor, Lélia, fala logo o você disse para o Thadeu e o deixou naquele estado. O que está acontecendo?

- Ele não te disse? Não é o homem da tua confiança?

- Não, ele não me disse, e nem é o homem da minha confiança, é meu primo-irmão.

- Pois devia, vocês homens são todos uns covardes.

- Sim, mas, por favor, do que se trata agora?

- Não sei se você merece saber.

As mulheres são mestras em construir pensamentos sinuosos, não sabem ser objetivas, para dizer qualquer coisa têm que contar detalhes que em nada servem para o entendimento do caso. Se perguntadas se vai chover, elas são capazes de dizer a quantidade e cor de todas suas sombrinhas, bem como onde compraram e quanto custou, por exemplo, ao invés dos monossilábicos e simples sim ou não. A Lélia, sendo mulher, não fugia a regra.

- Tudo bem, merecendo ou não, te peço que me conte.

- Se você quisesse mesmo saber tinha atendido meus telefonemas ou me ligado.

- Estava e estou trabalhando muito.

- Trabalhando tanto que não para atender um telefonema?

- Desculpe, foi mal, mas agora me diga, me tire dessa angústia.

- É que estou grávida, disse sem pensar, mas com muita convicção.

- De quem!?

Tentei ser irônico, mesmo percebendo que meu coração quase saiu pela boca. Ela levantou-se, me olhou, cheia de dignidade, e percebi que ela armava a mão para me dar um tapa, enquanto seus olhos voltavam a inundar-se. Abracei-a prendendo seus abraços e falei-lhe ao ouvido.

- Perdão, desculpe. É que a notícia me pegou totalmente de surpresa.

Ela estava estática e assim continuou.

- Mas como é que você sabe?

Depois de um profundo silêncio, ela respondeu-me:

- Minha menstruação não veio. Falei com minha mãe e ela me levou para fazer um exame e ele deu positivo. no bolso da minha mochila. Se te interessar pode ver.

- Claro que me interessa.

Tirei o exame e pude ler: POSITIVO, escrito em letras garrafais.

Minhas pernas começaram a tremer e eu me sentei. A sirene soou e em pouco tempo a quadra ficou deserta. Puxei-a pelo braço para que se sentasse também. Ficamos em silêncio por longos minutos. Depois que vi que ela estava mais calma resolvi perguntar:

- Mas como isso aconteceu? Afinal, nós não usamos preservativos?

- Também estranhei, mas a mamãe me explicou, e depois o médico confirmou, que engravidei quando daquelas penetrações sem camisinha.

- Mais eu não ejaculei.

- Segundo eles não é necessário que isso ocorra, a gravidez pode surgir daquele líquido produzido quando da excitação.

- E agora?

- E agora pergunto eu?

- Que que teus pais disseram?

- Estão querendo conversar com os teus.

- Por que não comigo?

- Acham que você é o que você é.

- E o que é que eu sou?

- Um irresponsável. Eu não queria e você insistiu.

Como eu não tinha, realmente, justificativa, fiquei calado.

- Diz algo.

- Melhor irmos para sala de aula. Afinal, vamos ter para quem dar bom exemplo e evitaremos levar falta.

- Não sei se estou em condições, Juarez.

- Também não estou, vou ficar voando, mas pelo menos não levaremos falta.

- Eu falo do nosso filho e você fica preocupado com uma falta!

- Vamos resolver isso, vou falar com o papai e a noite iremos ao seu apartamento.

- Tudo bem, vamos.

Ajudei-a a levantar-se e fomos para a sala. Como tinha previsto, não me lembro de nada das matérias que foram ensinadas naquele dia. Esperava ansioso pelo final da aula, precisava falar com o Thadeu e o papai. Percebi quando a professora Luciana passou a caminho de outra sala e me sorriu com levemente. Não acredito que tenha correspondido. Quando o final da aula foi anunciado, fui ao encontro da Lélia, beijei-a na testa e disse-lhe que iria visitá-la por volta das vinte e duas horas, com o que ela concordou. Corri ao encontro do Thadeu, que agora recomposto percebeu de longe a minha aflição.

- E papai?

- E agora, cara?

- Como vai ser o nome dele? Ou dela?

- Cara, não brinca não, estou em pânico. Como é que isso foi acontecer?

- Você melhor que ninguém sabe, afinal foi você quem participou da festa com a mãe. Ou você não sabe como as crianças são fabricadas?

- Brinca não, meu. Vamos!

- Vamos sim, mas onde é que vocês vão morar? E a Luíza B.?

- Nem resolvi o primeiro problema e você vem com outros milhões deles. um tempo.

- Tudo bem, desculpe. Vamos. Seu pai deve ter uma saída.

- Vou ligar para ele, saber se está em casa.

Liguei e papai disse que ainda estava no escritório, estava estudando um processo complicado. Perguntei-lhe se era urgente. Ele disse que mais ou menos. Me perguntou se o meu caso também era algo urgente. Eu disse que sim e ele me disse que estava indo para casa, o processo ainda tinha prazo para ser devolvido. Agradeci e desliguei.

- Ele está indo para casa.

Prosseguimos nossa caminhada em passos rápidos. Na chegada cumprimentamos secamente o seu João, tendo ele percebido algo estanho no monossílabo e sagazmente disse:

- Seu pai também está preocupado.

Papai nos esperava à porta do apartamento. Beijamos seu rosto e pude perceber que sua ruga de expressão estava mais acentuada, profunda mesmo.

- O que houve? Perguntou-me.

- Onde está a mamãe?

- Foi ao supermercado aqui no Shopping Frei Caneca, deve estar voltando.

- Vamos conversar no escritório?

- Vamos.

Ao chegarmos ao escritório, liguei a lâmpada e disse:

- Melhor o senhor se sentar.

- É tão grave assim?

- Mais ou menos.

- Então melhor ir direto ao assunto. Sou todo ouvidos.

- Pai, a Lélia está grávida.

- Quem diabos é Lélia e de quem ela está grávida? Não vai me dizer que é de você!

- Exatamente, é de mim. É uma colega de escola. Nunca lhe falei sobre ela?

- Não que eu me lembre. Mas como é que isso foi acontecer? não tínhamos conversado sobre o uso de preservativos?

- Sim, tínhamos e eu usei, mas...

- Mas o quê?

Contei-lhe, envergonhado, os detalhes da noite do acontecido. Ele respirou fundo e perguntou-me:

- E agora?

- É justamente isso que quero perguntar ao senhor.

- Quantos anos ela tem?

- O mesmo que eu, 17 anos.

- Você gosta dela o suficiente para casar-se?

- Não senhor, hoje mesmo tinha decidido dar um tempo no nosso relacionamento?

- E a Luíza B., sabe disso?

- Claro que não.

- Você sabe como vai explicar isso a ela?

- Mais ou menos.

- E os pais da Lélia?

- Querem falar com o senhor e a mamãe?

- Você sabe para quê?

- Não.

- Vamos falar com eles. Você marcou horário?

- Sim. Hoje às vinte e duas horas.

- Estou feliz! Não com os fatos em si, mas com a expecLuíza B.va de me tornar avô. Venha cá, me um abraço.

Estendeu-me os braços abertos e ficamos abraços por longo tempo. A respiração forte e quente de papai foi, aos poucos, voltando ao normal. Alguém bateu à porta. Era mamãe, trazendo uma bandeja com sucos e salgados.

- Posso interromper?

- Você nunca interrompe, meu amor, disse papai carinhosamente, ajudando-a a acomodar a bandeja sobre uma mesinha redonda. Beijei-a e fiquei em silêncio.

- O Juarez acabou de chegar do colégio, precisa tomar banho. Vai filho, banhe-se e volte logo para tomar o suco que sua mãe trouxe. Preciso conversar com ela.

Entendi qual seria o teor da conversa. Beijei a ambos e me retirei.

Durante o banho frio, recordei-me que papai não tinha me dado nenhuma solução, apenas fez-me perguntas, mas não respondeu às minhas dúvidas e inquietações. Iria cobrá-lo depois, uma vez que a chegada inesperada da minha mãe o impediu dele dizer o que eu precisava ouvir. Fiquei mais tempo sob o chuveiro do que precisava, esperando que a frieza acalmasse o turbilhão que jogara sobre meus ombros todos os pesos carregados por Hércules.

Ao sair do banheiro percebi que o computador estava desligado e o Thadeu estava na penumbra olhando o escurecer do mundo pela janela do meu quarto. Voltava nele a mudez da infância que lhe valeu o apelido deMudinho, porém, agora, isso não era normal. Aproximei-me e bati levemente em seu ombro, ele espantou-se como a sair do torpor que o envolvia.

- Que que seu pai disse?

- O pior é que não disse nada, a mamãe chegou antes que concluíssemos nossa conversa. Mas pelo abraço que trocamos, acredito que ele tem uma solução.

- Que bom! É um alívio. Pensei que ia aparecer aquele negócio de cobrança, tipo:eu te avisei.

- Nada disso, no fundo, se bem conheço o velho, ele ficou até feliz, pois no final de nossa conversa pude ver que sua ruga de expressão tinha voltado ao normal.

- Então está tudo bem?

- Quase tudo, neste assunto creio estar, mas e o nosso trabalho? Por que o computador está desligado? E os seus contatos?

- Mesmo na ventania soprando ao contrário você não deixa de ser patrão, o capitalista explorador do proletário.

- A vida deve continuar, e os problemas pessoais não devem interferir nos negócios.

- Então está realmente tudo bem, que se estivesse com problemas, queria ouvir você dizer isso. Os problemas pessoais interferem sim, somos seres humanos, não somos máquinas que possuem o botãodesligar problemas, que as fazem separar uma coisa da outra. Conosco é diferente, se o pessoal não estiver resolvido, o profissional será uma merda, pouquíssimos talvez sejam aqueles que consigam trabalhar sobe pressão emocional, e esses poucos, quando conseguem, o fazem bem próximo da loucura. Você sabe disso...

- É verdade, sei. Realmente está tudo sob controle. Obrigado pela lição.

- Não é lição não, apenas relembramos juntos o que sabíamos em separado. Acredito que os melhores poemas são aqueles que falam de amor, e os seus autores, quando os escreveram, estam inspirados pela dor. Duvido que conseguissem, nesses momentos, escrever sobre física nuclear ou culinária. A não ser que comparassem o desprezo da amada a uma bomba atômica.

- demais hoje, hein,Mudinho? Mas preciso voltar até o escritório, creio que o papai contou o caso à mamãe. Quero saber como ela reagiu a tudo isso. E você, por favor, volte ao que você sabe fazer de melhor: motivar positivamente aqueles que o cercam. Obrigado por tudo, amigão.

Abraçamo-nos fortemente.

- Te cuida, disse ele.

Quando cheguei no escritório fui recebido por largo sorriso e um abraço caloroso e aconchegante, como são os abraços maternos.

- Parabéns, meu homenzinho.

Os gestos e as palavras deixaram-me tranquilo quanto à resolução da situação. Sabia que eles tinham encontrado as respostas para minhas inquietações, o que me fez ficar calado com a cabeça encostada ao colo de minha mãe.

- Precisamos nos arrumar para o nosso encontro, ponderou papai.

- É verdade, está quase na hora, asseverou mamãe.

- O que que vamos fazer? Perguntei.

- decidiremos, não se preocupe, sua mãe quer muito ser avó, apesar de sua juventude. Eu não me importo, também, de ser o avô mais novo de São Paulo.

O tom de brincadeira, ao mesmo tempo em que me mostrava o controle da situação, me deixou preocupado, pois eu nada sabia de como aquilo tudo poderia ser resolvido, se é que tinha como sê-lo.

- Tome seu suco, nós voltamos.

Saíram em direção ao seu quarto. A caixa de suco DelValle estava pela metade, denunciando que eles o tinham consumido, o que era sinal de descontração. Era suco de pêssego, um dos meus favoritos! Consumi o restante, mas não toquei nos salgados.

Em pouco tempo meus pais estavam de volta.

- Vamos?

- Vamos sim, vou avisar o Thadeu que estamos de saída.

Fui até o quarto e encontrei meu primo ao computador.

- Vamos sair, vamos à casa da Lélia, quando a Luíza B. aparecer, uma enrolada nela e deixa que depois vou lhe contar tudo.

- Vai mesmo?

- Claro, mano. Fui.

No percurso até o apartamento de Lélia as únicas palavras que trocamos foram aquelas destinadas a ensinar o percurso a ser seguido.

A recepção não foi efusiva, mas também não posso dizer que tenha sido fria. Aparentemente foi normal, a despeito de D. Maria Cristiana S., mãe da Lélia, estar bastante ansiosa. seu Sérgio Medeiros, o pai, tentando disfarçar seu mal humor, tentou ser simpático, embora seu sorrido chegasse a 200º abaixo de zero. A Lélia apresentou nossos pais e fomos convidados a sentarmo-nos nos amplos sofares que equipavam a sala de estar. Conversaram sobre amenidades, eu e Lélia ficamos o tempo todo calados. Meu pai era corintiano, seu Sérgio palmeirense, o que era um mau sinal, que no futebol a torcida dos dois times não se entendem. Seu Sérgio tinha acabado de ficar desempregado. A empresa estatal em que trabalhava fora privatizada, e antes de entregá-la a uma multinacional o governo brasileiro presenteou vários de seus empregados com o desemprego, a título de entregar a empresa enxuta, sem gordura, como se dizia, a fim de que os novos proprietários somente obtivessem lucros, sem qualquer possibilidade de prejuízos, mas, mesmo que esses ocorressem, o governo ficaria com a parte ruim do negócio. Papai lamentou, mais disse que Sérgio era novo o suficiente para em breve estar novamente empregado. Ao que ele retrucou:

- O senhor não acredita no que está dizendo, acredita? Como é que vou voltar ao mercado, eu com 45 anos, quando tem milhares de desempregados na faixa etária dos 20 a 25 anos. Quem trocará a força de alguém que está em pleno vigor da juventude pela de alguém que começou a faixa descendente da vida? Além disso, tem a questão salarial. Para um jovem se paga um terço daquilo que se paga para uma pessoa da minha idade. Nessas horas, até minha carteira de trabalho joga contra mim. Os empregadores não acreditam que eu esteja realmente disposto a ganhar esse um terço do que eu ganhava.

- É possível, você está certo, mas eu tenho ouvido falar em cursos de readaptação; tem também a possibilidade de iniciar o próprio negócio...

- Tenho pensado nisso, mais especificamente em me readaptar para montar meu próprio negócio, embora tenha assistido ao fracasso de vários colegas que iniciaram negócios sem estar preparados para tanto, hoje são desempregados ou estão, como dizem, na informalidade, são camelôs. Tem ainda o fato de, com pequeno capital, como é o meu caso, para legalizar a empresa eu tenha que gastar quase todo ele. A burocracia é caríssima. O governo deveria, penso, fazer um contrato de experiência com o micro e pequeno empresário, como existe na CLT o contrato de experiência do empregado, que dura três meses. Durante três meses o governo não deveria cobrar imposto, incentivando o micro e pequeno empresário, até para que eles soubessem se o negócio era viável.

- Excelente ideia. Vamos enviar para um congressista?

- Para quê? Para morrer na burocracia do processo legislativo?

- Voltamos a falar sobre isso depois, tenho um amigo deputado federal e vou levar sua ideia até ele. Conforme o que ele me disser, marcamos um outro encontro.

Aquela conversa estava muito monótona. Não conseguíamos entender nada do que eles tratavam, especialmente por estarmos, na verdade, preocupados em falar sobre a causa que nos tinha levado até o bairro das Perdizes. Papai percebeu que estávamos, eu, Lélia e nossas mães incomodados, e disse:

- Mas, Sérgio, o motivo que nos traz até aqui é outro, gostaríamos, eu e Walkíria, de falarmos sobre nossos filhos, Juarez e Lélia, pode ser?

- Claro, estávamos esperando pela visita de vocês, disse Sérgio tentando ser amável.

- Juarez e Lélia, disse papai, vocês dois poderiam nos dar licença um pouquinho, depois chamamos vocês.

- Por que não podemos ficar, se o assunto nos diz respeito? Perguntei.

- Vocês não podem decidir as nossas vidas, sem nos consultar, protestou a Lélia.

- Calma Lélia, não se trata disso, disse papai, é claro que vocês é que decidem a vida de vocês, mas o Juarez me procurou e pediu orientação sobre como deveria agir, é por isso que estou aqui. Aliás, vocês sabem tanto decidir sobre suas vidas que as coisas chegaram a onde estão.

Percebi que a atitude de enfrentamento e arrogância de Lélia desvaneceu, aproveitei, então, e a convidei:

- Vamos tomar um sorvete?

- Melhor não, vamos para a biblioteca e bater um papo na net.

Pedimos licença e nos retiramos. Mamãe depois me narrou a conversa entre eles. Teria papai iniciado o diálogo dizendo:

- Vocês pensaram em alguma solução para a situação?

- Na verdade, Tancredo, estamos tão surpresos quanto vocês, disse Maria Cristiana S. Nossos filhos ainda são umas crianças, mas, feliz ou infelizmente, isso veio a acontecer, de modos que ainda não estamos bem certo de como devemos agir, por isso precisamos da ajuda de vocês para encontrarmos a melhor solução.

- Cristiana e Sérgio, tínhamos, Walkíria e eu, pensado que Lélia e Juarez poderiam se casar, como antigamente, mas conversando ele nos disse que não gosta da Lélia o suficiente para casar-se com ela. Tenho certeza que se eu pedisse, ele se casaria, mas não por amor, e sim para atender meu pedido. Será que seria justo sacrificar a felicidade dele e da Lélia, transformando a vida deles num inferno, que são muito novos e sem haver amor recíproco eles em breve estariam se odiando e odiando a todos nós?

- Por favor, não venha me falar em aborto, disse Maria Cristiana enrubescida e os lábios trêmulos.

- Jamais pensamos nisso, atalhou mamãe, somos contra essa prática abominável.

- Desculpe, Walkíria, mas é que estão falando tanto em aborto anecefálico, que chegamos a pensar que essa hipótese fosse cogitada. Hipótese de aborto, é claro, ponderou Sérgio.

- É claro, prosseguiu papai, até porque nosso neto ou neta será uma criança perfeita. Mas mesmo que não o fosse, e deixa eu bater três vezes na madeira, mesmo assim lutaria para que ela nascesse. Sou terminantemente contra o aborto.

- Mesmo no caso de crianças sem cérebro? Perguntou Maria Cristiana. Elas não têm nenhuma chance de sobreviver. Além da não-permissão impor um sofrimento muito grande à pobre mãe, que sabe carregar em seu ventre uma criança que morrerá poucos minutos após o nascimento.

- Mesmo nesses casos sou contra, expôs o papai, e posso lhe dar as seguintes razões: primeira, quem não quer sofrer por causa de filhos não deve procurá-los; segunda: os diagnósticos não são cem por cento isentos de falhas, lembro do exemplo de uma moça americana que viveu mais de quinze anos mantida por aparelhos, que, segundo os médicos, eram o que a mantinham viva. No dia que a família conseguiu ordem da justiça para desligarem os aparelhos ela continuou vivendopor conta própria, vindo morrer alguns anos depois; terceiro: o sofrimento de uma mãe é diferente dependendo da hora em que morre seu filho? Se ele morrer antes de determinada hora seu sofrimento é menor? Uma mãe prefere que médicos matem seu filho, provocando o aborto, ou prefere que ele morra naturalmente? São perguntas para as quais ainda não encontrei respostas convincentes; quinta: matar alguém não é crime? Um feto que vive não é uma pessoa? Não é um ser humano? Não aceitar a condição de ser humano do feto, mesmo sem cérebro, é voltar à antiguidade mais longínqua e rude, que admitia que uma mulher pudesse parir um monstro. Isso está superado, do ventre de uma mulher pode nascer um ser humano, que como tal tem todo direito de lutar pela vida, luta essa que merece apoio e não encontrar adversidades criadas por partes daqueles que nasceram. Por fim, e essa é a última das minhas razões, imaginem esta hipótese, que formulo, mas estou batendo na minha boca para que isso jamais venha acontecer, nem conosco, nem com ninguém: ao sair agora daqui da casa de vocês, soframos um desastre em que eu, Walkíria e Juarez venhamos perder nossas vidas. Hoje eu tenho um patrimônio razoável. Pergunto: para quem iria esse patrimônio, que não de ser desprezado, afinal estamos num país capitalista, onde todo dinheiro do mundo é sempre bem vindo? Certamente que iria para a criança que a Lélia espera. Porém, pelo sexto mês de gravidez descobre que a criança sofre de anecefalia. Será que seria justo para com a Lélia ou ela aceitaria fazer um aborto? Não podemos esquecer do seguinte detalhe: para que a nossa herança fosse transmitida para a criança da Lélia, seria necessário que ela nascesse com vida, que respirasse. Ora, no aborto a criança não chega a respirar, logo, não nasceria com vida, portanto, não pode ter direito à herança. a criança anecefálica, ao nascer, nasce com vida, pois respira, portanto, adquire direitos e pode suceder, ou seja, pode receber herança e, caso morra, como morrerá, dizem alguns, o que duvido em razão do diagnóstico que pode estar errado, como disse, transmitirá a herança para sua mãe, no caso para a Lélia.

- Nossa, você pinta um cenário quase que bizarro e avaro para justificar seu ponto de vista, censurou Maria Cristiana.

- Concordo, mas, infelizmente, é essa a realidade.

- Felizmente, com o nosso neto, não precisamos cogitar essas hipóteses, consertou mamãe.

- Sem dúvidas, até porque, jamais, pelo que estamos conversando, pensamos na hipótese de praticar o aborto na Lélia, sopesou Sérgio. Mas, tentando ser objetivo, o que você propõe que façamos, ou como deveremos agir, Tancredo?

- O nascimento dessa criança, vai ser bom para todos nós. O ideal, dizem, é que as pessoas tenham filhos quando possam sustentá-los, depois de terminados os estudos e exercendo suas profissões. Concordo com isso, mas, no caso, como o fato aconteceu e podemos sustentar nossos filhos e nosso neto, vamos procurar dar o melhor para a Lélia para que a criança nasça bem, nós, com a ajuda dos pais, a criaremos. Até porque estou encantado com a possibilidade de ver essa criança correndo por casa. Mais ainda, quando ela tiver com quinze anos, o Juarez e a Lélia vão estar com trinta e dois, com o que não terão grandes conflitos de geração, e poderão ser parceiros nas suas aventuras.

- Concordo. Porém, além de pais e filho, serem amigos e parceiros, agregou Sérgio, agora com a fisionomia bem mais aberta de que quando de nossa chegada. Você então comunica para eles o que conversamos?

- Melhor perguntarmos a eles o que pensam da situação. Depois, se for o caso, o Trancredo será o nosso porta-voz, mediu Maria Cristiana. Vou chamá-los.

Levantou-se e foi nos chamar. Ocupamos os mesmos lugares onde estávamos sentados anteriormente.

- Filho, vocês conversaram sobre a situação?

- Para ser sincero, não! Estávamos mais curiosos quanto à conversa dos senhores.

- Como é que devemos resolver isso, Lélia? Sérgio foi direto.

- Quero ter meu bebê.

- E você Juarez? Perguntou mamãe.

- Eu também, disse meio desconfiado.

- que é assim, vocês terão o nosso apoio para isso, discorreu papai. As coisas continuarão como estão, nós continuaremos a mantê-los e à criança, não queremos que deixem de estudar. Vocês não precisarão, ainda, e eu espero que até o término de seus cursos não precisem, trabalhar, nós daremos um jeito de mantê-los a todos.

- Por que que vocês não poderiam ter falado sobre isso na nossa presença? Questionou Lélia.

- Não falamos porque não sabíamos que tínhamos o mesmo pensamento sobre o assunto, pensávamos que íamos divergir. Além do mais, o Juarez me disse não tem intenção de casar com você, mas esse é um assunto a ser resolvido por vocês dois, nós e os teus pais fizemos a nossa parte.

Lélia levantou-se com os olhos cheios de lágrimas e correu em direção ao seu quarto sem dizer mais palavras. Tentei ir atrás mas me contive. Não tinha intimidade para entrar sem ser convidado.

- Melhor irmos agora, disse papai. Depois vocês têm que conversar, mas isso não precisa ser na nossa presença, quem sabe vocês se entendem, são muito jovens.

Mamãe levantou-se, no que foi acompanhada por todos. O casal que nos recebia, gentilmente, nos acompanhou até o elevador. Antes de nos despedirmos, disse eu:

- Dona Cristiana, diga à Lélia, por favor, que ligarei para ela.

- Direi sim, mas não é porque eu sou sogra que você deve me ofender me chamando de dona.

Risos gerais. O elevador estacionou e nós partimos.

- Depois que o Sérgio desanuviou, gostei deles! Falou papai no caminho de casa.

- Realmente, são simpáticos, acrescentou mamãe.

Calado estava e calado fiquei. subindo no elevador, papai perguntou:

- O que vamos jantar? Aliás, é tarde, deixamos aqueles dois, ou todos da casa, com fome. Será que deveríamos tê-los convidados para jantar?

- Se estávamos na casa deles, eles é que deveriam nos ter convidado. Mas não se preocupe, faço alguns beirutes rapidamente.

Oba, comemorei comigo mesmo, os beirutes da mamãe são divinos.

- A primeira batalha da guerra foi ganha, filho; agora é com você, seu velho pai vai tomar um belo banho antes que saiam os maravilhosos beirutes de sua mãe, brincou quando chegamos em casa.

Fui direto para o quarto, onde encontrei apenas o Thadeu.

- E a Luíza B.?

- Ligou e pediu para você retornar, disse que está muito cansada, que não vem hoje, mas que tudo correu às mil maravilhas. Te explicará tudo quando ligares. Mas como foi lá?

- Depois te conto, mas foi tudo bem. Vou ligar para a Luíza B. agora.

Disquei e ela atendeu no segundo toque do telefone, parece que estava esperando. Disse-me que não tinha ido porque realmente estava cansada, mais todas as visitas tinham sido positivas, que no dia seguinte terminaria todas elas. Disse que estava com saudades, como sempre ocorria, segundo ela, todas as vezes que ficava mais de cinco minutos longe de mim. Disse também que estava cansada e que iria dormir após o jantar. Quis saber onde tínhamos ido, disse-lhe que lhe contaria no dia seguinte, pessoalmente. Desligamos depois daquele: desliga, você; não, desliga tu. Conjuntamente: um, dois, três e já.

- Cara Thadeu, não sei o que os velhos conversaram, sei que, aparentemente, se entenderam, deixaram nas mãos de Lélia e na minha a solução. Decidimos que nossa criança vai nascer. Melhor ainda a Luíza B. não ter vindo hoje, não sei se saberia explicar para ela tudo que está acontecendo, preciso de um tempo.

- Parabéns, futuro papai! Quanto à Luíza B., de amanhã não passa, melhor você bolar um bom papo.

- É isso mesmo. Ou melhor, tendo que bolar dois papos, pois quando saí da casa da Lélia ela ficou chorando, o papai disse a ela que eu não pretendo me casar com ela.

- E os pais dela, nada disseram?

- Nada. É por isso que eu acho que eles tinham se entendido enquanto estávamos ausentes.

- Melhor assim. Por aqui anda tudo bem, tudo correndo nos trilhos, mano.

- Fantástico! Mas hoje estou meio mole para trabalhar, vamos jantar?

- Claro, estou brocadaço.

- Vamos lá, então, mamãe deve estar com os beirutes prontos.

- Beirutes da tia!? Vou me fartar.

Saímos e encontramos o papai a caminho da cozinha, o seguimos apressadamente.

- Todos estão com fome de leão? Perguntou mamãe, e, em coro, respondemos:

- Todos.

- Saciem-se, então.

Sem diálogos maiores que o pedido de maionese e azeite, empanturramo-nos.

- Comi demais, mamãe, como faço para dormir?

- Nada de dormir antes da digestão. Desça e uma caminhada pelo quarteirão com o Thadeu.

- Vamos lá, primo? Convidei-o.

- Vamos sim.

Descemos e seguimos pela Rua Frei Caneca até à rua Caio Prado, dobramos na rua Augusta em direção à avenida Paulista. No percurso, fomos passando em frente as casas de shows, ou casa de massagens, ou saunas, onde as meninas ficam vendendo amor e alguns leões de chácaras ficam convidando para entrar, oferecendo alguma bebida gratuitamente.

- Hoje, do jeito que estou saciado, não sairia com uma delas nem que fossem elas que me pagassem, comentou Thadeu.

- Eu também, fui monossilábico.

Caminhamos até a avenida Paulista, dobramos à esquerda e voltamos para a rua Frei Caneca, fazendo o percurso de volta para casa. Em frente ao Shopping Frei Caneca, encontramos um amigo que faz a escola de cinema e TV do Wolf Maya e que estava saindo da aula, ele nos apresentou a algumas de suas colegas, cujos nomes ainda recordo, Mara, Elaine, Vanessa, Carina, Débora e Andresa. Tinha também, alguns cuecas: Marcel, Gian e Ricardo. Todos estavam cheios de sonhos, apesar de saberem das dificuldades para decolar na carreira. Marcamos um encontro no futuro, talvez no final curso, pois tínhamos todos um diretor que era nosso amigo em comum, o Rodrigo Castelhano, vulgo Chuck, que trabalhava na escola do Wolf, mas tinha saído de e montado sua própria escola. Nos disseram, inclusive, que ele tinha produzido um excelente curta metragem, cujo título eraO japonês da Correia, segundo eles muito divertido. O cansaço de todos levou-nos às despedidas e cada qual tomou o seu rumo. Chegamos em casa e fomos direto para a cama, não sem antes escovar os dentes, como recomendara mamãe quando lhe dissemos da nossa intenção de dormir imediatamente.

Quando a Luíza B. chegou em casa na manhã seguinte, ainda estávamos dormindo. Disse que tinha apenas ido tomar café conosco e dizer que a sua missão do dia anterior tinha obtido cem por cento de sucesso. Ela estava linda, bem vestida, bem maquiada e com um sorriso de paz interior. Depois do café, disse que precisava ir, queria terminar cedo suas últimas visitas, mas no fim da tarde ou no início da noite estaria de volta para apresentar um relatório geral. Acompanhei-a até a rua. No percurso pensei em lhe falar sobre a Lélia, mas reconsiderei, pois seria estragar-lhe o dia de negócios, ou, até, o nosso próprio negócio. Decidi que falaria com ela após o relatório que ela disse que nos iria apresentar, embora soubesse que com isso estava quase sendo vil para com ela. Ao nos despedirmos com um longo beijo, ela comentou:

- Não sei, mas estou te achando preocupado.

- À noite conversamos sobre isso.

- Posso ajudar?

- Vamos ver quando conversarmos.

- Então pode esperar?

- Pode.

- Melhor assim. Até a noite.

- Até logo.

Seria intuição feminina ou meu corpo e minha voz estariam me denunciado? Seja o que for, estava dando mancada com a Luíza B.

Subi e fomos ao computador. Thadeu estava mais atento do que eu. Por mais de uma vez, para que eu acordasse, pois parecia estar nas nuvens, ele fez brincadeiras.

- Não te preocupa, desencano em um instante.

- Esperamos todos.

- Vou ligar para a Lélia e começamos.

- Vai fundo.

Liguei para o apartamento da Lélia, mas ela não estava. Tentei o celular, mas estava desligado. Tornei a ligar para o apartamento e deixei recado.

- Thadeu, será que todos os nossos palestrantes confirmaram suas presenças?

- conferindo. Vamos fazer isso?

- Vamos.

- Eu listei todos as respostas recebidas, posso te garantir que todas são afirmativas quanto à presença. Vou imprimir e começamos.

Quando as folhas começaram a sair da impressora, percebi que ele tinha imprimido os nomes de nossos convidados em cores alternadas, vermelho e preto. Então brinquei:

- Essas cores são em homenagem ao teu glorioso São Paulo Futebol Club?

- Pelo jeito você está bem, não é?

- Você queria o quê? Quer me por pra baixo?

- Nada disso, quero apenas que você respeite o meu São Paulo. Quanto às cores escolhidas, foi para economizar a tinta da impressora.

- Deixa de enrolar e grita o nome dos nossos amigos.

- São eles:

- Aristóteles;

- Platão e Sócrates;

- Tales de Mileto;

- Anaximandro de Mileto;

- Anaxímenes de Mileto;

- Heráclito de Éfeso;

- Pitágoras de Samos;

- Parmênides de Eléia;

- Xenófanes de Cólofon;

- Zenon de Eléia;

- Empédocles de Agrigento;

- Górgias;

- Anaxágoras de Clazômenas;

- Arquelau de Atenas;

- Melisso de Samos;

- Alcmeão de Crotona;

- Leucipo de Mileto;

- Demócrito de Abdera;

- Diógenes de Apolônia;

- Filolau de Crotona;

- Protágoras;

- Pródico;

- Antístenes;

- Hípias;

- Diógenes;

- Antifonte;

- Trasímaco;

- Crítias;

- Alcidamas;

- Lícofron

- Fílon;

- Aristipo;

- Arcesilau;

- Carnéades;

- Euclides;

- Fédon;

- Crates;

- Hipócrates ;

- Epicuro;

- Zenon de Cítio;

- Hiparco;

- Fílon;

- Panécio e Possidônio;

- Epicuro;

- Pirro;

- Antíoco;

- Euclides e Apolônio;

- Arquimedes e Héron;

- Aristarco

- Erófilo e Erasístrato;

E, finalmente Eratóstenes.

- É muita gente, cara! Não vamos poder receber todo esse povo!

- Será!?

- Você contou quantos são?

- Não.

- Por que tem dois nomes no mesmo item? Por exemplo, Erófilo e Erasístrato são a mesma pessoa? Erasístrato é sobrenome de Erófilo?

- Pergunte devagar, se não eu me perco.

- Nós é que estamos perdidos!

- Respondendo: são dois nomes mesmo em cada item. É que alguns responderam conjuntamente. Erasístrato não é sobrenome de Erófilo. Você reparou que esse povo não tinha sobrenome? Que eram identificados pelo nome das cidades onde nasceram?

- tinha reparado, disse meio desconsolado, mas o que eu queria saber é: como é que apareceram tantos nomes? Não me lembro de termos falado em todos esses que agora acabastes de ler os nomes quando da nossa primeira lista.

- É que eu fui pesquisando e, à medida que os identificava e os lia, os convidava. Fiz mal?

- Agora, neste momento, acho que sim. Vamos ver o que temos, se vamos poder acomodar todos eles. Se não pudermos, alguns terão que ser cortados.

- Isso é uma decisão final?

- Isso o quê?

- O corte.

- Se não tivermos condições, sim.

- Mas você não me disse, numa de nossas conversas, que queria fazer o melhor encontro de filósofos gregos de todos os tempo?

- É disse, mas...

- Eu e eles acreditamos.

Fiquei sem resposta; a boca estava seca e o estômago em pleno vendaval.

- Preciso tomar um copo dágua, você também quer?

- Ainda não.

- Vou à cozinha. Por favor, conta quantos convidados temos. volto.

Saí; bebi um copázio de água bem gelada. Fui à janela, respirei fundo. Busquei compreender os convites não acordados entre nós que o Thadeu tinha efetuado. Compreendi que ele estava certo. Que realmente queríamos fazer o melhor. Porém, infelizmente, o melhor parece nem sempre estar ao nosso alcance. Será que não estaria? Voltei para o quarto e vi que o Thadeu estava meio cabisbaixo.

- Contou, primão? Tentei ser alegre e simpático.

- É, contei...

- E quantos são?

- Quarenta e um.

- Não seriam quarenta? Têm dois Diógenes. Um é Diógenes e o outro é o Diógenes de Apolônia.

- São pessoas diferentes. O Diógenes de Apolônia você conhece, o outro Diógenes é o Diógenes de Sinope, embora mais velho foi contemporâneo de Alexandre, é o símbolo do cinismo, do ponto de vista dessa doutrina.

- Muito bemMudinho. Quando pronunciei omudinhovi a alegria voltar ao rosto do meu primo.

- Faço o que posso!

Esse sim, era o Thadeu voltando ao seu alto astral.

- Thadeu, lembro que no dia que fomos com o Sig B. e o R. Ohtake visitar o sobrado, o Ruy disse que podíamos acomodar até trinta e duas pessoas, ou seja, duas a mais do que as trinta que inicialmente cogitamos de trazer. Logo, estão faltando apenas quatorze vagas (46-32). Lembro também que no andar inferior tem uma sala mediana que, salvo engano, podemos aproveitar. O R. Ohtake cogitou, também, da possiblidade de se colocar mais de dois beliches nas suítes. Vou falar com o Sig. Mesmo assim, se colocarmos três beliches, fica faltando lugar para oito pessoas.

- Liga ainda não, essa é fácil, podemos acomodar quatro pessoas naquela sala do andar inferior, que pode ser adaptada para quarto com dois beliches e o Diógenes de Sinope pode ser acomodado na sala, num bom sofá cama, ele não é de muito luxo não, na cidade dele dizem que ele dorme dentro de um tonel.

- Será!?

- Vai por mim, eu mesmo falo com ele. Afinal, ele não gosta de viver como um cão?

- Mesmo assim, faltam ainda três vagas! Vou ligar agora para o Sig.

- Vai fundo.

Liguei para o Sig e contei-lhe a situação, bem como a maneira que tínhamos encontrado para contorná-la. Ele, com sua habitual elegância, concordou em fazer, segundo suas palavras, as pequenas mudanças necessárias, até porque tinha, intimamente, cogitado da possibilidade, não tinha antevisto a solução que o Thadeu encontrou para acomodar Diógenes, mas que era inteligente, por harmonizar a acomodação à personalidade do acomodado, o que é fundamental em qualquer habitação. Disse ainda que, como a cozinha seria usada, se o fosse, esporadicamente, não incomodaria aqueles que estivessem no cômodo ao seu lado. Pediu-me, por fim, que deixasse as chaves com o segurança que tínhamos contratado para vigiar o prédio, o senhor Jonas Uchoa. Quis saber sobre preço, mas ele disse que isso ficaria para depois, que eu ficasse tranquilo que o mais dispendioso seria os novos beliches e o sofá-cama de Diógenes, mas nada que fugisse do padrão daqueles adquiridos anteriormente.

Quando desliguei, o Thadeu ria pelos cotovelos, pois como tinha conversado com o Sig pelo viva-voz do telefone, ele ouviu o elogio para a solução diogeniana.

- Parabéns também de minha parte.

- Eu soudimais, gritou a plenos pulmões.

O telefone tocou. Atendi. Era a Lélia. Disse-me que tinha ido com a mãe ao médico, fazer o pré-natal, que é extremamente necessário para que a evolução da gravidez seja acompanhada e a criança nasça bem. Parabenizei-a e disse que nos veríamos no colégio.

Quando desliguei o Thadeu perguntou:

- E a professora Luciana?

- Nem me fala, estou em débito com ela, marquei e furei várias vezes. O bom é que tenho enviado alguns e-mails com o nosso trabalho e ela tem, além de compreendido, elogiado. Porém, agora com a situação da Lélia, sei não...

- sabes o que vais dizer para a Luíza B.

- Mais ou menos.

- Pois é bom que seja mais, do contrário ela vai se machucar.

- Eu sei. Mas agora não é hora de pensar nisso. Vamos agrupar nossos convidados por escolas e depois mandar confeccionar placas com o nome de cada uma delas, bem como o nome de cada um deles, para fixarmos nas portas dos respectivos quartos onde eles vão se alojar.

- Faremos placas de bronze, acrílico ou adesivo de plástico ou papel.

- O ideal era que fossem de bronze, para ficar gravado para todos os tempos, mas devem ser muito caras. Mesmo a opção em alumínio deve sair cara também. Plástico ou papel é avacalhar. Melhor ficarmos com o acrílico.

- Vou pedir três orçamentos de três empresas, depois conversamos.

- Ótimo.

- Sim, mas vamos organizar as escolas e os seus membros?

- Agora não, já!

Quando o Thadeu ligou o computador, percebeu que tinham novos e-mails na caixa de mensagens recebidas. Ao abri-los, disse:

-Temos algumas desistências. Alguns convidados estão informando que não poderão vir.

Com o coração bastante acelerado, perguntei:

- Quem são os desistentes?

- Ao que me lembro, são: Arquelau de Atenas, Fédon, Hiparco, Panécio, Possidônio, Apolônio, Héron, Aristarco, Erófilo, Erasístrato e Eratóstenes.

- É uma pena, mas, melhor que desistam agora, a que deixem para a última hora.

- É isso aí, completou Thadeu.

- Vamos organizar os nomes daqueles que confirmaram suas presenças nas escolas filosóficas que representam?

- Vamos nessa.

A organização ficou assim:

Os pré-socráticos formam cinco escolas:

 

1) ESCOLA JÔNICA:

a) Tales de Mileto;

b) Anaximandro de Mileto;

c) Anaxímenes de Mileto;

d) Heráclito de Éfeso.

 

2) ESOLA PITAGÓRICA:

a) Pitágoras;

b) Filolau de Crotona.

 

3) ESCOLA ELEATA:

a) Xenófanes;

b) Parmênides;

c) Zenon de Eléia;

d) Melisso de Samos.

 

4) FÍSICOS PLURALISTAS:

a) Empédocles;

b) Anaxágoras de Clazômenas.

 

5) FÍSICOS ECLÉTICOS:

a) Leucipo;

b) Demócrito;

c) Diógenes de Apolônia;

 

Temos, a seguir a escola dos:

 

6) SOFISTAS:

a) Protágoras;

b) Górgias;

c) Pródico;

d) Hípias;

e) Antifonte;

f) Trasímaco;

g) Crítias;

h) Alcidamas;

i) Lícofron.

 

Vêm, em seguida, as escolas:

 

7) SOCRÁTICA:

a) Sócrates;

b) Aristipo;

c) Euclides de Mégara;

d) Platão;

e) Aristóteles.

 

8) HIPOCRÁTICA:

Hipócrates.

 

Inicia-se, depois da escola Socrática, a fundação das Escolas Helenísticas, que são:

 

9) ESCOLA CÍNICA:

a) Antístenes;

b) Diógenes de Sinope;

c) Crates.

 

10) ESCOLA EPICURISTA:

Epicuro.

 

11) ESOLA ESTÓICA:

Zenon de Cítio.

 

12) ESCOLA CÉTICA:

a) Pirro;

b) Arcesilau;

c) Carnéades.

 

13) ESCOLA ECLÉTICA:

a) Fílon de Larissa;

b) Antíoco de Áscalon.

 

14) ESCOLA EUCLIDIANA:

Euclides, o matemático.

 

15) ESCOLA ARQUIMEDIANA:

Arquimedes, o físico.

 

16) ESCOLA MEGÁRICA:

Euclides de Mégara.

 

17) ESCOLA CIRENAICA:

Aristipo de Cirene.

 

Temos, por fim, embora não tenhamos pensado neles inicialmente, os quatro convidados que não formam uma escola, embora sejam mestres de muitos. São eles:

 

a) Homero;

b) Hesíodo;

c) Orfeu;

d) Péricles.

 

- Podemos incluir Heráclito e Anaxágoras na Escola Jônica? Se os incluirmos, também não devemos incluir Empédocles e Anáxagoras de Clazômenas, para os quais você instituiu a Escola dos Físicos Pluralistas? Perguntou-me o Thadeu.

- bom, heimMudinho!? É o seguinte: todos os que você citou, realmente, são jônios; acontece que Héraclito, Empédocles e Anaxágoras são conhecidos comojônios novos, e eles deram outra conotação para os estudos cosmológicos (ou estudos sobre a origem do mundo). Procuraram resolver o problema do movimento e transformação dos corpos, ou seja, queriam explicar o universo na sua dinamicidade. Mais ainda, poderíamos até nominar um escola como Heráclitica, tão diferente é o seu pensamento daqueles dos seus conterrâneos, como diverso é também o pensamento de Empédocles e Anaxágoras, os quais, pelos pontos em comum, podem ser agrupados e estudados separadamente, como ora propusemos.

- satisfeito.

- Então, Thadeu, se contarmos agora, temos somente quarenta e seis convidados!

- Realmente, não constam agora Apolônio, Héron, Aristarco, Erófilo, Erasístrato e Eratóstenes. Desculpe, eu me enganei. Na realidade eu não convidei estes últimos, disse Thadeu desconfiado.

- Por que não?

- Apolônio é matemático; Héron estuda a mecânica; Aristarco é estudioso da astronomia; Erófilo e Erasístrato estudam medicina; Eratóstenes estuda geografia, Hiparco também estuda astronomia. Ora, para cada uma dessas ciências temos um convidado com presensa confirmada. O mais engraçado é que eu tinha excluído os dois últimos citados e deixado o nome dos demais, embora não os tenha convidado. Confusões acontecem.

- Deve ser o cansaço que chegou. Todos esses dias de trabalho. Melhor amanhã você descansar.

- Nada disso, descansei no final. Terei muito tempo depois.

- Você é quem sabe. Falar nisso, como andam as gatinhas?

- Chuvendo. Todas me querem, mas, infelizmente, sou um. Agora temos o número definitivo de convidados.

- Sendo assim, melhor para o Sig, que talvez deixar de fazer a disposição do sofá-cama para Diógenes de Sinope e apenas ajeitar o quarto do piso inferior.

- Melhor ligar para ele, então.

- É o que vou fazer.

Liguei para o Sig e contei-lhe das desistências, ele compreendeu e disse que em poucas horas, então, estaria tudo em ordem, o mais demorado seria o seu amigo dono da loja Artefacto, levar os beliches que ele tinha escolhido no catálogo e que eram iguais aos adquiridos anteriormente. O proprietário da loja de móveis, no entanto, disse que assim que ele chegasse no local, que o avisasse; assim ele mandaria uma camionete deixar os móveis. Agradeci e desliguei.

 

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