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Os Trabalhadores do Mar, de Victor Hugo (Algumas pérolas)!

Os Trabalhadores do Mar

 

Victor Hugo

São Paulo: Editora Nova Cultural, 2002.

Publicado originalmente como Os Trabalhadores do Mar, de Victor Hugo.Tradução de Machado de Assis.

Rio de Janeiro: Tipografia Perseverança, 1866.

 

Algumas pérolas de Victor Hugo semeadas em “Os trabalhadores do mar”:

 

Os Trabalhadores do Mar

Victor Hugo

(Tradução de Machado de Assis)

 

PRÓLOGO

 

A religião, a sociedade, a natureza: tais são as três lutas do homem. Estas três lutas são ao mesmo tempo as suas três necessidades; precisa crer, daí o tempo;  precisa criar, daí a cidade; precisa viver, daí a charrua e o navio. Mas há três  guerras nestas três soluções. Sai de todas a misteriosa dificuldade da vida. O  homem tem de lutar com o obstáculo sob a forma superstição, sob a forma  preconceito e sob a forma elemento. Tríplice ananke pesa sobre nós, o ananke dos  dogmas, o ananke das leis, o ananke das coisas. Na Notre-Dame de Paris, o autor denunciou o primeiro; nos Miseráveis, mostrou o segundo; neste livro indica o terceiro.

A estas três fatalidades que envolvem o homem, junta-se a fatalidade interior, o ananke supremo, o coração humano.

Hauteville-House, março de 1866.

 

PRIMEIRA PARTE

 

O SR. CLUBIN

 

LIVRO PRIMEIRO

ELEMENTOS DE UMA MÁ REPUTAÇÃO

 

CAPÍTULO PRIMEIRO

PALAVRA ESCRITA EM UMA PÁGINA BRANCA

 

Caminhava com desembaraço e viveza; e pelo andar, que mostrava não lhe ter ainda pesado a vida, conhecia-se que era moça. Tinha aquela graça fugitiva que indica a mais delicada transição, a adolescência, a mistura dos dois crepúsculos, o  princípio de uma mulher e o fim de uma menina. [Osório diz: achei linda essa transição].

 

*

 

Gilliatt.

Era este o nome dele. [Osório diz: É o grande personagem do romance e, encantador e apaixonante no seu agir. Homem honrado e digno de louvor ... e pena!]

 

CAPÍTULO II

O TUTU DA RUA

 

O diabo possui delegados por todo o mundo. É certo que Belphégor é embaixador do inferno na França, Hutgin na Itália, Belial na Turquia, Thamuz na Espanha, Martinet na Suíça e Mammon na Inglaterra. Satanás é um imperador, como um outro qualquer. Satanás César. A casa dele é muito bem servida: Dagon é o saquetário; Succor Benoth, chefe dos eunucos; Asmodeu, banqueiro dos jogos; Kobal, diretor de teatro; Verdelet, grão-mestre de  cerimônias, e Nybbas, bobo. Wierus, homem de ciência, bom estrigólogo e demonógrafo distinto, chama Nybbaso grande parodista. [Osório diz: delegados do diabo pelo mundo e seus serviçais.]

 

*

 

Os diabos Raguhel, Oribel e Tobiel foram santos, até que em 745 o Papa Zacarias, tendo-lhes tomado o faro, deitou-os fora. Para fazer tais expulsões, que são muito úteis, é necessário ser muito conhecedor de diabos. [Osório diz: encantador esse humor irônico de Victor Hugo]

 

*

 

Afeiçoara-se aos católicos e procurava freqüentá-los, o que leva a crer que o diabo é antes católico que protestante. [Osório diz: curiosa essa descoberta]

 

*

 

Uma de suas mais insuportáveis liberdades era visitar a noite os leitos conjugais católicos, quando os maridos dormiam de todo, e as mulheres, a meio. Disto resultavam equívocos. [Osório diz: curiosa essa qualificação sonífera!]

 

*

 

Dar nascimento a um Voltaire não é coisa agradável.

 

*

 

Em geral esses culpados confessavam seus crimes: eram para isso ajudados pela tortura. [Osório diz: que bela ironia!]

 

*

 

A crônica diz: “Arrebentou-lhe o ventre”. Saiu desse ventre um menino vivo; o recém-nascido rolou na fogueira, um tal House apanhou-o. O bailio, Hélier Grosselin, bom católico, mandou atirar a criança ao fogo. [Osório diz: cena tétrica! A mãe do menino estava sendo queimada por ser bruxa!]

 

CAPÍTULO III

PARA TUA MULHER, QUANDO TE CASARES

 

Aquela mulher comprou-o, evidentemente tentada pelo diabo. Ou pela barateza. [Osório diz: pobreza e diabo são iguais!]

 

*

 

Não ir a parte alguma é coisa grave. [Osório diz: sim! É o ficar que aprisiona!]

 

*

 

Foi aquele Vesúvio, que fumega além, que os expeliu de si. Dão-se nomes a esses aerólitos, a esses indivíduos expulsos e perdidos, a esses eliminados da sorte: chamam-nos emigrados, refugiados, aventureiros. Se ficam, toleram-nos: alegram-se quando eles vão embora. Algumas vezes são entes absolutamente inofensivos, estranhos, as mulheres ao menos, aos acontecimentos que os proscreveram, não tendo rancores nem cólera, projéteis contra a vontade, espantadíssimos de o serem. Enraízam-se como podem. Não fazem mal a ninguém e não compreendem o que lhes acontece. Vi um dia uma pobre moita de ervas atirada aos ares pela explosão de uma mina. A Revolução Francesa, mais do que nenhuma explosão, fez desses jatos longínquos. [Osório diz: lá em Maraã, quando eu era menino, seu Ramiro Ferreira de Matos, geralmente jogando sinuca ou baralho, falava num “Devido aos ariólites”, que nunca explicava, e, agora, mais que nunca, morto, jamais explicará, me veio à mente com os aerólitos! Seria essa a origem dos ariólites?]

 

*

 

Envelheceu a mulher. Cresceu o menino. Viviam ambos sós; todos fugiam deles, mas eles bastavam-se a si próprios. Loba e filhote lambem-se mutuamente. [Osório diz: que bela imagem! Lembrei da música “Meu guri” do Chico Buarque!]

 

CAPÍTULO IV

IMPOPULARIDAD

 

... e o responsabilizassem pela solidão em que o deixavam.

 

*

 

Comprava todos os pássaros que lhe levavam, e soltava-os.

 

*

 

Mas são exatamente os livros que a gente não lê os que mais condenam. [Osório diz: “não li e não gostei”! Sei!]

 

*

 

“Pescador, quando há peixe”.

 

*

 

... há mulheres que estariam prontas a desposar o diabo rico ... [Osório diz: entre dois diabos, um rico e um pobre, não sei se condeno a mulher que opte pelo rico!]

 

*

 

Ouve-se cantar um galo invisível, coisa extremamente desagradável. Verificou-se que a pedra foi posta ali por uns fantasmas. [Osório diz: em Maraã tem uma localidade chamda de “Canta galo”, justamente porque alguns ouviam, quando passavam por lá à meia-noite, um galo cantar! História antiga...]

 

*

 

O judicioso e sábio Rei Jacques I mandava ferver ainda vivas as mulheres dessa espécie, provava o caldo e, pelo gosto, dizia: “É feiticeira”, ou: “Não é feiticeira”.

É para lamentar que os reis hoje não tenham daqueles talentos, que faziam compreender a utilidade da instituição.

[Osório diz: ironia fina nessa descrição macabra!]

 

*

 

rabote do marceneiro. [Osório diz: rebote é plaina]

 

*

 

Uma menina da vizinhança tinha muitos piolhos; Gilliatt foi a Saint-Pierre-Port, trouxe de lá um ungüento e o esfregou à cabeça da pequena; tirou-lhe os piolhos, o que prova que foi ele quem lhos deitou. [Osório diz: em Maraã uma meio-prima minha morreu de tantos piolhos! Fazer o bem pode custar caro! Mas não desistamos.]

 

*

 

Dizia-se que Gilliatt olhava para os poços, o que é perigoso quando é mau-olhado; e o caso é que um dia, nos Arculons, a água de um poço tornou-se doentia. A dona do poço disse a Gilliatt: “Veja esta água”. E apresentou-lhe um copo cheio. Gilliatt confessou: “A água está grossa”, disse ele; “é exato”. A boa mulher, que desconfiava, disse-lhe: “Pois cure-a”. Gilliatt perguntou-lhe se ela tinha algum curral, se o curral tinha esgoto, e se o rego do esgoto passava perto do poço. A boa mulher disse que sim. Gilliatt entrou no curral, desviou o rego do esgoto, e a água do poço ficou boa. Ora, pensava a gente da terra, nenhum poço fica insalubre, nem é curado depois, sem motivo; a doença do poço não é natural; é difícil não acreditar que Gilliatt tenha enguiçado a água. [Osório diz: pagando o bem com o mal! É tudo tão visivelmente simples!]

 

*

 

Nas aldeias, colhem-se os indícios, comparam-se: o total faz a reputação de um homem. [Osório diz: não interessando muito se tais indícios coincidem entre si! “Precisa-se de ‘convicção e certeza’, de provas, não”!]

 

*

 

Um dia um pobre homem batia num asno, que tinha empacado. Deu-lhe algumas tamancadas na barriga, o animal caiu. Gilliatt correu para levantá-lo, estava morto. Gilliatt esbofeteou o pobre homem. [Osório diz: que malvado esse Gilliatt!]

 

*

 

Noutra ocasião, vendo um rapaz descer de uma árvore com um ninho de passarinhos ainda implumes, Gilliatt tirou o ninho do rapaz, e levou a crueldade ao ponto de restituí-lo ao seu lugar na árvore.

Uns viandantes censuraram-no por isto: Gilliatt não fez mais do que apontar para o pai e a mãe dos passarinhos, que guinchavam por cima da árvore e voltavam para o ninho. Tinha queda pelos pássaros. É um sinal esse que faz conhecer geralmente os bruxos. [Osório diz: com atitudes como essa, realmente, só podia ser um bruxo. Se fosse hoje, então...]

 

*

 

Os rapazes gostam de tirar os ninhos de cotovias e goelanos no penedio das costas. Trazem consigo grande porção de ovos azuis, amarelos e verdes, para armar com eles a frente das lareiras. Como os penedos estão a pique, aconteceu-lhes às vezes escorregarem, caírem e morrerem. Nada mais lindo que uma varanda adornada com ovos de pássaros do mar. Gilliatt já não sabia que inventar para fazer mal aos rapazes. Trepava, com risco de vida, ao cimo das rochas marinhas, e pendurava aí molhos de feno, com chapéus velhos em cima e tudo quanto pudesse servir de espantalho, para arredar os pássaros e, por conseqüência, as crianças.

Por tudo isto Gilliatt ia sendo a pouco e pouco odiado por todos. Não precisava tanto para sê-lo. [Osório diz: claro!]

 

CAPÍTULO V

OUTROS PONTOS AMBÍGUOS DE GILLIATT

 

Quando uma mulher tem, do mesmo homem, sete filhos machos consecutivos, o sétimo é marcou. Mas, para isso, é necessário que nenhuma filha venha interromper a série dos rapazes.

O marcou tem uma flor-de-lis impressa em uma parte do corpo, donde resulta que aproveita tanto aos escrofulosos como aos reis da França. Na França há marcous em toda parte, especialmente na província de Orléans. Cada aldeia do Gâtinais  tem o seu marcou. Para curar os doentes basta que o marcou sopre nas chagas ou lhes faça tocar a flor-de-lis. O remédio é eficaz, principalmente quando aplicado na noite de Sexta-Feira Maior. Há uma dezena de anos, o marcou d'Ormes, no Gâtinais, apelidado o Formoso Marcou, e consultado por toda a Beauce, era um tanoeiro, chamado Foulon, que tinha cavalo e carruagem. Para pôr cobro aos seus milagres foi preciso intervir a polícia. Tinha ele a flor-de-lis embaixo do peito esquerdo. Outros marcous têm-na em lugar diverso.

marcous em Jersey, em Aurigny e em Guernesey. Parece que isto procede dos direitos que tem a França sobre o ducado da Normandia. A não ser assim, por que haveria ali a flor-de-lis?

Como há também nas ilhas da Mancha muitos escrofulosos, os marcous são necessários. [Osório diz: marcous...]

*

 

escrofulosos [Osório diz: “Que ou o que apresenta escrófulas. Escrófula: Doença crônica e hereditária das glândulas linfáticas em que se alteram os fluidos que contêm, formando tumores que se podem ulcerar”.]

parei aqui

*

 

Para curar os doentes

 

*

 

Gilliatt ria às vezes como os outros homens.

 

*

 

Os que se obstinavam em crê-lo filho do diabo (cambiou) enganavam-se, evidentemente. Deviam saber que só os há na Alemanha. Mas o Vale e Saint-Sampson eram há cinqüenta anos países ignorantes.

 

*

 

no campo, quanto mais suspeito é o médico, mais eficaz é o remédio que ele dá.

 

*

 

panarícios

 

*

 

Os menos benévolos convinham em que Gilliatt era excelente diabo para os doentes, quando se tratava de seus remédios ordinários; mas, como marcou, não queria ouvir nada: se algum escrofuloso pedia-lhe para tocar a flor-de-lis, a resposta de Gilliatt era fechar-lhe a porta na cara; recusava fazer milagres, coisa ridícula em um feiticeiro. Não sejas feiticeiro, mas, se o és, faze o teu oficio.

 

CAPÍTULO VI

A PANÇA

 

Tinha entre os olhos a soberba ruga vertical do homem audacioso e perseverante.

 

*

 

O riso era pueril e delicioso.

 

*

 

Entretanto, Gilliatt, tisnado pelo sol, era quase negro. Não se afronta impunemente o oceano, a tempestade e a noite; aos trinta anos, mostrava 45. Tinha a sombria máscara do vento e do mar.

 

*

 

Finório.

 

*

 

Diz uma fábula da Índia: “Um dia Brama perguntou à Força: ‘Quem é mais forte que tu?’ A Força respondeu: ‘É a Astúcia’” Diz um provérbio chinês: “Quanto não poderia o leão, se fosse macaco?”

 

*

 

A solidão faz homens de talento ou idiotas. Gilliatt tinha os dois aspectos. Às vezes mostrava o ar espantado, de que falamos, e dissera-se um bruto. Outras vezes mostrava uma certa profundidade no olhar. A antiga Caldéia teve homens assim: a certas horas, a opacidade do pastor tornava-se transparente e deixava ver o mago.

 

*

 

É provável que estivesse no limite que separa o sonhador do pensador.

 

*

 

À força de trepar aos rochedos, de escalar os declives, de navegar no arquipélago, qualquer que fosse o tempo, de manobrar a primeira embarcação que aparecesse, de arriscar-se dia e noite nos canais mais difíceis, tornou-se, sem tirar lucro disso, e só por fantasia e satisfação, um admirável homem do mar.

 

*

 

Pescava muito peixe, mas afirmava-se que o galho de nespereira estava sempre atado à chalupa. Ninguém o viu nunca, mas toda a gente acreditava.

Não vendia, dava o peixe que lhe sobrava.

Os pobres aceitavam o peixe, sem deixarem de lhe querer mal por causa do ramo embruxado. Não se deve trapacear com o mar. [Osório diz: Lula]

 

*

 

calafate,

 

 

CAPÍTULO VII

CASA EMBRUXADA, MORADOR VISIONÁRIO

 

Havia talvez nele a ligação do alucinado e do iluminado. A alucinação entra na cabeça de um campônio como Martin, do mesmo modo que na cabeça de um rei como Henrique IV. O Desconhecido faz surpresas ao espírito do homem. Rasga-se bruscamente a sombra, deixa ver o invisível; depois fecha-se. Tais visões são às vezes transfiguradoras; de um condutor de camelos faz Maomé, de uma cabreira faz Joana d'Arc. A solidão desprende uma certa quantidade de desvario sublime. É o fumo da sarça ardente. Resulta daí um misterioso estremecer de idéias: o doutor dilata-se até o vidente, o poeta até o profeta; resulta Horeb, Cédron, Ombos, a embriaguez do louro mastigado da Castália, as revelações do mês Busion; resulta Peléia em Dodona, Femônoe em Delfos, Trofônio em Lebadéia, Ezequiel no Kebar, Jerônimo na Tebaida. Na maior parte dos casos o estado visionário abate o homem, e o embrutece. O embrutecimento sagrado existe. O faquir carrega a sua visão, como o habitante alpino a sua papeira. Lutero falando aos diabos no celeiro de Wurtemberg, Pascal tapando o inferno com o biombo de seu gabinete, o obi negro, dialogando com o deus branco chamado Bossum, é o mesmo fenômeno diversamente produzido, segundo a força e a dimensão de cada cérebro. Lutero e Pascal são e ficam sendo grandes; o obi negro é imbecil.

 

*

 

transparências vivas.

 

*

 

A cisma, que é o pensamento no estado nebuloso

 

*

 

Nada sobrenatural; mas a continuação oculta da natureza infinita.

 

 

CAPÍTULO VIII

A CADEIRA GILD-HOLM 'UR

 

Era pérfida a tal cadeira. A gente ia insensivelmente arrastada até ali pela beleza da vista; parava por amor da perspectiva

 

*

 

o abismo tem destas atenções, desconfia sempre da sua cortesia

 

*

 

escuma

 

*

 

letargo do êxtase.

 

*

 

Em certos pontos, a certas horas, contemplar o mar é sorver um veneno. E o que acontece, às vezes, olhando para uma mulher.

 

LIVRO SEGUNDO

MESS LETHIERRY

CAPÍTULO PRIMEIRO

VIDA AGITADA E CONSCIÊNCIA TRANQÜILA

 

Demais, em assunto de amor ou namoro, tinha ele uma boa filosofia rústica, uma ciência de marinheiro: apanhado sempre, encadeado nunca.

 

*

 

Apóstrofe

 

*

 

ouçãos

 

CAPÍTULO III

A VELHA LÍNGUA DO MAR

 

CAPÍTULO IV

VULNERABILIDADE POR AMOR

 

LIVRO TERCEIRO

DURANDE E DÉRUCHETTE

 

CAPÍTULO PRIMEIRO

GARRULICE E EFLÚVIOS

 

uma calhandra.

 

*

 

A tagarelice serve para descansar de falar.

 

*

 

Que desespero na floresta se não houvesse o colibri! Exalar alegrias, irradiar venturas, possuir no meio das coisas sombrias uma transudação de luz, ser o dourado do destino, a harmonia, a gentileza, a graça, é favorecer-te. A beleza basta ser bela para fazer bem. Há criatura que tem consigo a magia de fascinar tudo quanto a rodeia; às vezes nem ela mesmo o sabe, e é quando o prestígio é mais poderoso; a sua presença ilumina, o seu contato aquece; se ela passa, ficas contente; se pára, és feliz; contemplá-la é viver; é a aurora com figura humana; não faz nada, nada que não seja estar presente, e é quanto basta para edenizar o lar doméstico; de todos os poros sai-lhe um paraíso; é um êxtase que ela distribui aos outros, sem mais trabalho que o de respirar ao pé deles. Ter um sorriso que — ninguém sabe a razão — diminui o peso da cadeia enorme arrastada em comum por todos os viventes, que queres que te diga? é divino. Déruchette tinha esse sorriso. Mais ainda, era o próprio sorriso. Há alguma coisa mais parecida que o nosso rosto, é a nossa fisionomia; e outra mais parecida que a nossa fisionomia, é o nosso sorriso.

 

*

 

CAPÍTULO II

A ETERNA HISTÓRIA DA UTOPIA

 

Neste arquipélago puritano onde a rainha da Inglaterra foi censurada por violar a Bíblia[i] narcotizando-se para dar à luz, o navio a vapor teve como primeiro cumprimento o ser batizado com este nome: Devil-Boat Navio-Diabo.

 

*

 

A esses bons pescadores de então, outrora católicos, agora calvinistas, e sempre beatos, pareceu-lhes aquilo o inferno flutuante. Um pregador da terra tratou da questão: “Temos nós o direito de fazer trabalhar juntos o fogo e a água que Deus separou?[ii] Aquele animal de ferro e fogo não era a imagem de Leviatã? Não era isso refazer o homem, a seu modo, o primitivo caos? Não é a primeira vez que acontece qualificar a ascensão do progresso de retrogradação ao caos.

 

*

 

Idéia louca, erro grosseiro, absurdo”: tal foi o veredicto da Academia das Ciências consultada por Napoleão no começo deste século, acerca do vapor.

 

*

 

Os pescadores de Saint-Sampson têm desculpa de se acharem, em matéria científica, ao nível dos geômetras de Paris; e, em matéria religiosa, uma pequena ilha como Guernesey não tem obrigação de ser mais ilustrada que um grande continente como a América. Em 1807, quando o primeiro navio de Fulton, patrocinado por Livingston, provido da máquina de Watt mandada da Inglaterra, e tripulado, além da equipagem, por dois franceses, somente, André Michaux e outro, fez a sua primeira viagem de Nova York a Albany, deu-se o caso de acontecer isso no dia 17 de agosto. Esta coincidência deu origem a que o metodismo tomasse a palavra, e em todas as capelas os pregadores amaldiçoaram a máquina, declarando que o número dezessete era o total das dez antenas e das sete cabeças da besta do Apocalipse. Na América invocava-se contra o vapor a besta do Apocalipse; na Europa a besta do Gênesis. Nisto consistia toda a diferença.

 

[Osório diz: O vapor]

 

*

 

Só ele podia concebê-la na qualidade de livre pensador, e realizá-la na qualidade de marinheiro atrevido.

 

CAPÍTULO III

RANTAINE

 

Morava aí, com a mulher e o filho, uma espécie de burguês bandido, antigo escrevente de tabelião no Châtelet, e ao depois ladrão descarado.

 

*

 

Túmulos de São Denis, por Treneuil

 

*

 

Aos homens de boa têmpera arruína-se a fortuna, não a coragem. Começava-se então a falar do vapor. Lethierry teve a idéia de tentar a máquina de Fulton [Osório diz: Robert Fulton foi um engenheiro e inventor estadunidense que é amplamente creditado com o desenvolvimento do primeiro barco a vapor comercialmente bem sucedido. Em 1800, ele foi contratado por Napoleão Bonaparte para projetar o Nautilus, que foi o primeiro submarino prático na história.]

 

 

CAPÍTULO IV

CONTINUAÇÃO DA HISTÓRIA DA UTOPIA

 

maravilha disforme

 

CAPÍTULO V

O NAVIO-DIABO

 

 

CAPÍTULO VI

LETHIERRY ENTRA NA GLÓRIA

 

Em Guernesey não se pode ser gentleman da noite para o dia. Há uma escala entre o homem e o gentleman; o primeiro degrau é o nome simplesmente, Pedro, suponhamos; depois, vizinho Pedro; terceiro degrau, pai Pedro; quarto degrau, Senhor (Sieur) Pedro; quinto degrau, Mess Pedro; último degrau, gentleman (Monsieur) Pedro.

 

*

 

Esta escada, que sai da terra, interna-se pelo céu acima. Entra nela toda a hierarquia inglesa. Eis os degraus mais luminosos; acima de senhor (gentleman) há esq. (escudeiro), acima de esq., o cavalheiro (sir vitalício), depois o baronete (sir hereditário), depois o lorde (laird na Escócia), depois o barão, depois o visconde, depois o conde (earl na Inglaterra, jarl na Noruega), depois o marquês, depois o duque, depois o par da Inglaterra, depois o príncipe de sangue real, depois o rei. Esta escada sobe do povo à burguesia, da burguesia ao baronato, do baronato ao pariato, do pariato à realeza.

 

*

 

Novazinha

 

CAPÍTULO VII

O MESMO PADRINHO E A MESMA PADROEIRA

 

nome: Marianne.

— Lindo nome, realmente — disse Mess Lethierry —, mas composto de dois animais bem ruins, um mari (marido) e um âne (asno).

 

*

 

As rudezas amam as delicadezas.

 

CAPÍTULO VIII

A MELODIA BONNY DUNDEE

 

mogno,

 

*

 

Mas nós não temos nada com isto.

 

*

 

revocação do Edito de Nantes

 

CAPÍTULO IX

O HOMEM QUE ADIVINHOU QUEM ERA RANTAINE

 

Uma das coisas que mais recomendaram o Sr. Clubin a Mess Lethierry foi que, conhecendo ou penetrando Rantaine, assinalou a Mess Lethierry a improbidade daquele homem, e disse-lhe: Rantaine há de roubá-lo”.

 

CAPÍTULO X

NARRATIVAS DE VIAGENS DE LONGO CURSO

 

“Bom paizinho”, dizia ela, “está cheirando a alcatrão”.

 

*

 

No Chile viu uma bugia comover os caçadores apresentando-lhes o filho.

 

*

 

No Rio de Janeiro, viu as senhoras brasileiras colocarem nos cabelos pequenas bolas de gaze contendo cada uma delas um vaga-lume, o que lhes fazia uma coifa de estrelas.

[Osório diz: o uso de exemplos em livros. Como quero fazer em “Maraã: a esquina da verdade”]

 

*

 

No rio Arinos, afluente do Tocantins, nas matas virgens do norte de Diamantina, verificou a existência do terrível povo-morcego, os murcilagos, homens que nascem com os cabelos brancos e os olhos vermelhos, habitam os bosques sombrios, dormem de dia, acordam de noite e pescam e caçam nas trevas, vendo melhor do que quando há lua.

 

*

 

Estas histórias verdadeiras assemelhavam-se tanto a histórias da carochinha que divertiam Déruchette.

 

*

 

Era uma acha de lenha esforçando-se por ser moça bonita.

 

CAPÍTULO XI

LANCE DE OLHOS AOS MARIDOS EVENTUAIS

 

Queria de um lance prover as duas filhas. Queria que o companheiro de uma fosse o piloto da outra. Que é um marido? É o capitão de uma viagem. Por que motivo não dar um só capitão ao navio e à filha? O casal obedece às marés. Quem sabe guiar uma barca sabe guiar uma mulher. Ambas são sujeitas à lua e ao vento.

 

CAPÍTULO XII

EXCEÇÃO NO CARÁTER DE LETHIERRY

 

Mas a sua aversão pelos padres era idiossincrática. Para odiá-los não precisava ser odiado. Como ele próprio dizia, era o cão daqueles gatos. Era contra eles pela idéia, e, o que é mais irredutível, pelo instinto. Sentia as garras latentes dos padres, e mostrava-lhes os dentes. A torto e a direito, confessemo-lo, e nem sempre a propósito. É erro não distinguir. Não são bons os ódios absolutos. Nem mesmo o vigário saboiano mereceria as simpatias de Lethierry. Não é certo que para ele houvesse um bom padre. À força de filosofar, ia perdendo a circunspecção. Existe a intolerância dos tolerantes, como existe o furor dos moderados. Mas Lethierry era tão boa alma que não podia ser odiento. Antes repelia que atacava. Fugia dos homens da Igreja. Tinham-lhe feito mal, Lethierry limitava-se a não querer-lhes bem. A diferença entre o ódio dos outros e o dele é que o dos outros era animosidade, e o dele antipatia.

 

*

 

nem sempre ingênuos [Osório diz: há uma ligação com o “prenhe de...”, mais adiante].

 

*

 

Deitava água no vinho, locução prenhe de concessões latentes e às vezes inconfessáveis.

 

CAPÍTULO XIII

O DESLEIXO FAZ PARTE DA GRAÇA

 

Dita uma coisa, Mess Lethierry não a esquecia mais; dita uma coisa, Miss Déruchette esquecia-a logo. Esta era a diferença entre o tio e a sobrinha.

 

*

 

Há mais um perigo latente numa educação tomada muito a sério. Querer tornar felizes os filhos, antes do tempo, é talvez uma imprudência.

 

*

 

Na Inglaterra as crianças andam sós, as meninas são senhoras de si, a adolescência vai à rédea solta. Tais são os costumes. Mais tarde, as moças livres fazem-se mulheres escravas. Tomem à boa parte estas duas expressões: livres no crescimento, escravas no dever.

 

LIVRO QUARTO

O “BAGPIPE”

 

CAPÍTULO PRIMEIRO

PRIMEIROS RUBORES DE AURORA OU DE INCÊNDIO

 

CAPÍTULO II

GILLIATT VAI ENTRANDO PASSO A PASSO NO DESCONHECIDO

 

É fácil acostumar-se ao  veneno.

 

*

 

Madressilva

 

CAPÍTULO III

A CANÇÃO “BONNY DUNDEE” ACHA UM ECO NA COLINA

 

CAPÍTULO IV

 

Já alguém escreveu algures: “Uma idéia fixa é uma verruma. Vai-se enterrando de ano para ano. Para extirpá-la no primeiro ano é preciso arrancar os cabelos; no segundo rasga-se a pele; no terceiro ano quebra o osso; no quarto saem os miolos”. Gilliatt estava no quarto ano.

 

*

 

A respeito dele havia circunstâncias que a benevolência e a malevolência comentavam em sentido inverso.

 

*

 

“A mulher é a carne do homem. A mulher deixará pai e mãe para acompanhar o marido”.

 

CAPÍTULO V

JUSTA VITÓRIA É SEMPRE MALQUISTA

 

Dizia-se que ele fizera uma loucura feliz.

 

As novidades têm contra si o ódio de todos; o menor erro compromete-as.

 

CAPÍTULO VI

FORTUNA DOS NÁUFRAGOS ENCONTRANDO A CHALUPA

 

Gulf Stream [Osório diz: A corrente do Golfo é uma corrente marítima potente, rápida e quente do oceano Atlântico que tem origem no Golfo do México, escapa pelo estreito da Flórida e segue a costa leste dos Estados Unidos e a sua extensão até a Europa torna os países do oeste deste continente mais quentes do que eles seriam sem essa corrente.]

 

CAPÍTULO VII

BOA FORTUNA DE APARECER A TEMPO

 

LIVRO QUINTO

O REVÓLVER

 

CAPÍTULO PRIMEIRO

A PALESTRA NA POUSADA JOÃO

 

Para ele as nações só existiam por suas instituições marítimas; fazia sinônimos extravagantes.

 

*

 

O Capitão Zuela, de Copiapó, era chileno, um pouco colombiano; tinha feito com independência as guerras da independência, acompanhando ora Bolívar, ora Morillo, conforme os lucros a haver. Tinha-se enriquecido obsequiando a toda a gente. Não havia homem mais bourbônico, mais bonapartista, mais absolutista, mais liberal, mais ateu e mais católico. Ele pertencia a este grande partido que se pode chamar o Partido Lucrativo.

 

*

 

Durante os sete ou oito primeiros anos, depois da entrada dos Bourbons, espalhou-se o terror em tudo, nas finanças, na indústria, no comércio, que sentiam tremer a terra e viam multiplicar-se as falências. Havia um salve-se quem puder na política.

 

*

 

prebostais

 

*

 

Um gatuno fugitivo mostrava-se mais correto aos olhos da polícia do que um general. Imaginem a inocência constrangida a disfarçar-se, a virtude contrafazendo a voz, a glória mascarando o rosto.

 

CAPÍTULO II

CLUBIN DESCOBRE ALGUÉM

 

— Pode-se adquirir o bem pelo conhecimento do mal.

 

*

 

Era aprovado por não ter escrúpulos tolos.

 

*

 

O cristal querendo manchar-se não pode.

 

*

 

Ingênuo hábil é coisa que existe.

 

CAPÍTULO III

CLUBIN LEVA UNS OBJETOS E NÃO OS TRAZ

 

Negociante em público, contrabandista às escondidas, eis a história de muitas fortunas.

 

*

 

A primeira qualidade de um trapaceiro era a lealdade. Sem discrição não há contrabando. Havia o segredo da fraude como há o segredo da confissão.

 

*

 

Esse segredo era imperturbavelmente guardado. O contrabandista jurava não dizer nada e mantinha a sua palavra. Ninguém inspirava mais confiança que um contrabandista. O juiz alcaide de Oyarzun apanhou um dia um contrabandista e pôs-lhe a questão para obrigá-lo a declarar quem era o seu caixa de fundos. O contrabandista não confessou quem era o caixa de fundos. O caixa de fundos era o juiz alcaide. Dos dois cúmplices, juiz e contrabandista, o primeiro devia, para cumprir a lei aos olhos de todos, ordenar a tortura, à qual o segundo resistia para cumprir o juramento.

 

CAPÍTULO IV

PLAINMONT

 

O campo é cultivável, por que motivo está inculto? Não há dono.

 

*

 

caixilhos [Osório diz: Caixilho é:Parte da esquadria que sustenta e guarnece os vidros de portas e janelas.], nem postigos [Osório diz: Pequena porta que se abre em outra maior.] ?

 

*

 

Quando o medo cresce, os fatos perdem a verdadeira proporção.

 

*

 

o medo é mudo; os aterrorizados falam pouco; parece que o horror diz: silêncio!

 

*

 

“Faça-o Deus, mas não o desfaça Satanás”, era uma das orações de Carlos V.

 

*

 

Daí vêm as práticas religiosas voltadas para a imensa malícia obscura.

 

*

 

Os processos de magia provam-no em cada uma de suas páginas. Vai até esse ponto o sonho humano. Quando o homem começa a assustar-se, não pára mais. Sonha culpas imaginárias, sonha purificações imaginárias, e faz limpar a sua consciência com a vassoura das feiticeiras.

 

CAPÍTULO V

OS FURTA-NINHOS

 

A curiosidade de ter medo existe.

 

*

 

É sabido que os franceses não acreditam em coisa alguma.

 

*

 

Demais, quando são muitos, todos se tranqüilizam; o medo dividido por três dá animação.

 

*

 

ilusão de óptica do medo,

 

*

 

O sino brasileiro soa às 10 horas. [Osório diz: o que significa essa afirmativa?]

 

CAPÍTULO VI

A JACRESSARDE

 

A Jacressarde era a habitação daqueles que não têm habitação.

Em todas as cidades, e especialmente nos portos de mar, há, abaixo da população, um resíduo. Vagabundos, aventureiros, vivendo de expedientes, químicos de espécie larápio, pondo sempre a vida no alambique, todas as formas do andrajo e todas as maneiras de vesti-lo, os jubilados da improbidade, as existências em bancarrota, as consciências que já fizeram balanço, os que abortaram no assalto e no arrombamento de portas (porque os ladrões trabalham por baixo e por cima), os operários e as operárias do mal, os velhaquetes e as velhaquinhas, os escrúpulos rasgados e os cotovelos rotos, os tratantes chegados à indigência, os malévolos mal recompensados, os vencidos do duelo social, os famintos que foram devorados, os ganha-pouco do crime, os miseráveis, na dupla e lamentável acepção da palavra, tal é o pessoal. Ali é bestial a inteligência humana. É o montão de imundícies das almas. Ajunta-se tudo aquilo a um canto, onde passa de quando em quando a vassoura policial. Em Saint-Malo esse canto era a Jacressarde. [Osório diz: parece que ele descreve a Cracolândia em São Paulo!]

 

*

 

O que se encontra nessas espeluncas não são os grandes criminosos, os bandidos, os grandes produtos da ignorância e da indigência. Se o assassino é representado ali, é por algum bêbado brutal; ali o roubo não vai além da ratonice. É antes o escarro que o vômito da sociedade. O vagabundo sim, o salteador não. Todavia não há que fiar. Aquele último degrau dos boêmios pode ter extremidades malvadas. Um dia, lançando a rede no Epi-Scié, que era em Paris o que a Jacressarde é em Saint-Malo, a polícia apanhou Lacenaire.

 

Tudo entra naqueles albergues. A queda é um nivelamento. As vezes a honestidade esfarrapada escoa-se por ali. A virtude e a probidade têm aventuras. Não se deve, à primeira vista, estimar os Louvres nem condenar as galés. O respeito público e a reprovação universal devem ser descascados. Quantas surpresas não se dão! Um anjo no lupanar, uma pérola no monturo — não é impossível este sombrio e deslumbrante achado.

 

*

 

Quem eram aquelas criaturas? Os desconhecidos. Iam ali de noite e saíam de manhã. A ordem social anda misturada com aquelas larvas. Alguns esgueiravam-se ali de noite e não pagavam. A maior parte entrava em jejum. Todos os vícios, todas as abjeções, todas as suposições, todas as misérias, o mesmo sono de prostração no mesmo leito do lodo. Os sonhos de todas essas almas faziam boa vizinhança. Fúnebre entrevista em que se remexiam e se amalgamavam no mesmo miasma os cansaços, os desfalecimentos, as borracheiras incubadas, as marchas e contramarchas de um dia sem um pedaço de pão e sem um bom pensamento, as noites lívidas e sonolentas, remorsos, cobiças, cabelos imundos, rostos com o olhar da morte, beijos, talvez, das bocas da treva. A podridão humana fermentava naquela tina. Eram atiradas àquele albergue pela fatalidade, pela viagem, pelo navio chegado na véspera, por uma saída de prisão, pelo acaso, pela noite. O destino vazava ali, todos os dias, a sua alcofa. Entrava quem queria, dormia quem podia, falava quem ousava. Era próprio para cochichar. Todos se apressavam em misturar-se. Tratavam de esquecer-se no sono, visto que não podiam perder-se na sombra. Tiravam à morte aquilo que podiam. Fechavam os olhos naquela agonia confusa que todas as noites começava. Donde saíam? Da sociedade, porque eram a miséria; da vaga, porque eram a espuma.

 

*

 

Para não correr risco naquela casa era preciso ser da laia. Os estranhos eram malvistos.

 

*

 

Conheciam-se acaso entre si aquelas criaturas? Não; farejavam-se.

 

*

 

Alguidar

 

*

 

Estava resolvido a não morrer sem atirar a pedra filosofal às vidraças da ciência.

 

CAPÍTULO VII

COMPRADORES NOTURNOS E VENDEDOR TENEBROSO

 

gurupés. [Osório diz: mastro que aponta para vante, colocado no bico de proa dos veleiros.]

 

*

 

velha boceta de marinheiro.

 

CAPÍTULO IX

INFORMAÇÃO ÚTIL ÀS PESSOAS QUE ESPERAM OU RECEIAM CARTAS DE ALÉM-MAR

 

 

LIVRO SEXTO

O TIMONEIRO ÉBRIO E O CAPITÃO SÓBRIO

CAPÍTULO PRIMEIRO

 

OS ROCHEDOS DOUVRES

 

São singulares as solidões da água. É o tumulto e o silêncio. O que aí se faz já nada tem com o gênero humano. E a utilidade desconhecida. Tal é o isolamento do rochedo Douvres. Em derredor, a perder de vista, o imenso tormento das vagas.

 

CAPÍTULO II

CONHAQUE INESPERADO

 

A nobreza conquista-se pela espada e perde-se pelo trabalho. Conserva-se pela ociosidade. Não fazer coisa alguma é viver fidalgamente; quem não trabalha é reverenciado. Ofício faz decair. Na França de outrora só se excetuavam os operários de vidro. Sendo glória para os fidalgos esvaziar garrafas, fazê-las não era desonra alguma.

 

*

 

O timoneiro Tangrouille não saía nunca do navio e dormia a bordo.

 

CAPÍTULO III

PALESTRA INTERROMPIDA

 

As forças são máquinas infinitas, as máquinas são forças limitadas.

 

*

 

Não há força cega. Cabe ao homem espreitar as forças e descobrir-lhes o itinerário.

 

*

 

— A beleza dos animais não é como a beleza dos homens.

 

*

 

a velha barra de ouro”?

 

*

 

o gigantinho”.

 

CAPÍTULO IV

MOSTRAM-SE TODAS AS QUALIDADES DO CAPITÃO CLUBIN

 

Parece que há conluio neste excesso de calma.

 

*

 

— Deus está ausente. Devia-se lavrar um decreto para obrigá-lo a residir aqui. Anda lá na sua casa de campo e não se importa conosco. E tudo vai torto e mal encaminhado. É evidente, meu bom senhor, que Deus já não está no governo, está em férias, e é o vigário, algum anjo seminarista, algum beócio com asas de pardal, quem dirige os negócios.

 

CAPÍTULO V

CLUBIN LEVA A ADMIRAÇÃO AO CÚMULO

 

CAPÍTULO VI

ALUMIA-SE O INTERIOR DE UM ABISMO

 

A hipocrisia pesou àquele homem durante trinta anos. Era o mal, e consorciou-se com a probidade. Odiava a virtude com um ódio de mal casado. Teve sempre uma premeditação malvada; desde que se fizera homem, trazia aquela armadura rígida, a aparência. Era monstro internamente; vivia em uma pele de homem de bem, com um coração de bandido. Era o pirata ameno. Era prisioneiro da honestidade, estava fechado naquele caixão de múmia, a inocência; tinha nas costas asas de anjo, esmagadoras para um velhaco. Pesava-lhe demais a estima pública. Passar por homem honrado é duro! Manter constante equilíbrio, pensar mal e falar bem, que labutação! Clubin era o fantasma da retidão, sendo o espectro do crime. Este contra-senso foi o destino dele. Era-lhe preciso mostrar ares apresentáveis, escumar por baixo do nível, sorrir em vez de ranger. A virtude, para ele, era coisa que esmagava. Passou a vida a ter vontade de morder aquela mão que lhe tapava a boca.

 

*

 

E querendo mordê-la foi obrigado a beijá-la.

 

*

 

Ter mentido é ter sofrido. O hipócrita é um paciente na dupla acepção da palavra; calcula um triunfo e sofre um suplício. A premeditação indefinida de uma ação ruim, acompanhada por doses de austeridade, a infâmia interior temperada de excelente reputação, enganar continuadamente, não ser jamais quem é, fazer ilusão, é uma fadiga. Compor a candura com todos os elementos negros que trabalham no cérebro, querer devorar os que o veneram, acariciar, reter-se, reprimir-se, estar sempre alerta, espiar constantemente, compor o rosto do crime latente, fazer da disformidade uma beleza, fabricar uma perfeição com a perversidade, fazer cócegas com o punhal, pôr açúcar no veneno, velar na franqueza do gesto e na música da voz, não ter o próprio olhar, nada mais difícil, nada mais doloroso. O odioso da hipocrisia começa obscuramente no hipócrita. Causa náuseas beber perpetuamente a impostura. A meiguice com que a astúcia disfarça a malvadez repugna ao malvado, continuamente obrigado a trazer essa mistura na boca, e há momentos de enjôo em que o hipócrita vomita quase o seu pensamento. Engolir essa saliva é coisa horrível. Ajuntai a isto o profundo orgulho. Existem horas estranhas em que o hipócrita se estima. Há um eu desmedido no impostor. O verme resvala como o dragão e como ele retesa-se e levanta-se. O traidor não é mais que um déspota tolhido que não pode fazer a sua vontade senão resignando-se ao segundo papel. É a mesquinhez capaz da enormidade. O hipócrita é um titã-anão.

 

*

 

Só ele era o espectador da sua glória. Há certo encanto em estar de golilha. Toda a gente vê que és infame.

 

*

 

Obrigar a multidão a examinar-te é reconhecer a tua força. Um galé sobre um estrado, com uma coleira de ferro ao pescoço, é o déspota de todos os olhares que ele obriga a voltarem-se para si. Aquele cadafalso é ao mesmo tempo pedestal. Que mais belo triunfo do que esse de ficar no centro de convergência para a atenção geral? Obrigar o olhar público é uma das formas de supremacia. Os que têm o mal por ideal acham no opróbrio uma auréola. Domina-se daí. Olha-se de cima de alguma coisa. Mostra-se com soberania. Um poste, à vista de todo o universo, tem alguma analogia com um trono.

 

*

 

Estar exposto é ser contemplado.

 

*

 

A imensidade do desprezo parece grandeza ao desprezado.

 

*

 

Quanto ao futuro, Clubin não tinha plano. Possuía os bilhetes do banco na boceta de ferro atada à cintura; bastava-lhe esta certeza. Mudaria de nome. Há países onde 60 000 francos valem 600 000. Não seria má solução ir para um desses lugares viver honestamente com o dinheiro apanhado ao ladrão Rantaine. Especular, entrar em um grande negócio, engrossar o capital, tornar-se seriamente milionário também não era mau. [Osório diz: acumulação primitiva]

 

CAPÍTULO VII

INTERVÉM O INESPERADO

 

É próprio da hipocrisia ater-se à esperança. O hipócrita é o homem que espera. A hipocrisia é uma esperança horrível: o fundo dessa mentira é feito desta virtude, tornada vício.

 

*

 

Coisa estranha de dizer, há confiança na hipocrisia. O hipócrita confia-se a certa indiferença do desconhecido, que consente no mal.

 

*

 

Estranha coisa é ver com que facilidade os tratantes acreditam que devem ser bem-sucedidos.

 

LIVRO SÉTIMO

IMPRUDÊNCIA DE INTERRROGAR UM LIVRO

 

CAPÍTULO PRIMEIRO

A PÉROLA NO FUNDO DO PRECIPÍCIO

 

pascácio. [Osório diz: Indivíduo que é muito bobo; quem tende a ser extremamente simplório; parvo ou pateta.]

 

*

 

Aquele negro, mais inteligente que muitos brancos, era o admirador da máquina.

 

*

 

a prova é que é fácil formular uma aspiração e difícil executá-la.

 

*

 

Porquanto, em certos cometimentos desproporcionados, onde parece necessário o sobre-humano, a bravura tem acima de si a demência.

 

CAPÍTULO II

GRANDE ESPANTO NA COSTA OESTE

 

Existe na costa sul de Guernesey, atrás do Plainmont, no fundo de uma baía, toda precipícios e muralhas, cortado a pique na onda, um porto singular que um francês, residente na ilha desde 1844, talvez o mesmo que escreve agora estas linhas, batizou com o nome de “porto do quarto andar”, nome geralmente adotado hoje.

 

CAPÍTULO III

NÃO TENTEIS A BÍBLIA

 

O Dr. Herodes começou um speech. Tinha sabido de um acontecimento. Naufragara a Durande. Vinha, como pastor, trazer consolação e conselho. O naufrágio era uma desgraça, mas era também uma felicidade. Sondemo-nos; não nos inchava a prosperidade? As águas da felicidade são perigosas. Não se deve tomar as desgraças à má parte. Os caminhos do Senhor são desconhecidos. Mess Lethierry estava arruinado. Pois ser opulento é estar em perigo. Aparecem amigos falsos. A pobreza afasta-os. Fica-se isolado. Solus eris. A Durande dizem que dava 1 000 libras esterlinas por ano. Era demais para um filósofo. Fujamos às tentações, desdenhemos o ouro. Aceitemos com reconhecimento a ruína e o abandono. O isolamento dá frutos. Ganha-se nele as graças do Senhor. Foi na solidão que Aia achou as águas quentes conduzindo os asnos de Sebeão, seu pai. Não nos revoltemos contra os impenetráveis decretos da Providência. O santo homem Jó, depois da sua miséria, cresceu em riquezas. Quem sabe se a perda da Durande não teria compensações, mesmo temporais? Também ele, Herodes, empregara capitais em uma magnífica operação que se realizava em Sheffield; se Mess Lethierry, com os fundos que lhe restavam, quisesse entrar nesse negócio, podia refazer a fortuna; era um grande fornecimento de armas ao czar para reprimir a Polônia. Ganharia 300 por cento.

 

*

 

Se quisesse decuplicar o que lhe restava, bastava-lhe tomar ações na grande companhia de exploração das plantações do Texas, que empregava mais de 20 000 negros.

— Não quero nada com a escravidão, disse Lethierry.

— A escravidão — replicou o Reverendo Herodes — é de instituição sagrada. Está

escrito: “Se o senhor bater o escravo, nada lhe será feito, porque bate o seu dinheiro”.

 

*

 

Barjesus

 

*

 

Mess Lethierry, é pueril acreditar na sexta-feira. Não se deve acreditar em fábula. A sexta-feira é um dia como qualquer outro. Às vezes é data feliz. Melendez fundou a cidade de Santo Agostinho em sexta-feira; foi numa sexta-feira que Henrique VII deu a sua comissão a John Cabot; os peregrinos do Mayflower chegaram a Province-Town em sexta-feira. Washington nasceu na sexta-feira, 22 de fevereiro de 1732; Cristóvão Colombo descobriu a América na sexta-feira, 12 de outubro de 1492.

 

SEGUNDA PARTE

O ENGENHEIRO GILLIATT

 

LIVRO PRIMEIRO

O ESCOLHO

 

CAPÍTULO PRIMEIRO

INCÔMODA CHEGADA, DIFÍCIL SAÍDA

 

O mar é patente e secreto; esconde-se, não quer divulgar as suas ações. Produz um naufrágio e abafa-o; engolir é o seu pudor. A vaga é hipócrita; mata, rouba, sonega, ignora e sorri. Ruge, depois abranda-se.

 

*

 

norueguense

 

CAPÍTULO II

AS PERFEIÇÕES DO DESASTRE

 

Nenhum animal estrangula uma pedra como o ar. A água regurgita das garras. O vento morde, o mar devora, a vaga é um queixo. É um socar e um esmigalhar ao mesmo tempo. O oceano tem um golpe igual à pata do leão.

 

*

 

desde as refregas dos homens, que se chamam batalhas, até as refregas dos elementos, que se chamam caos.

 

CAPÍTULO III

SÃ, MAS NÃO SALVA

 

intata.

 

*

 

Intato

 

*

 

A máquina estava salva, o que não impedia que estivesse perdida.

 

CAPÍTULO IV

PRÉVIO EXAME LOCAL

 

deserto de água chamado Oceano

 

*

 

transudação

 

CAPÍTULO V

UMA PALAVRA A RESPEITO DAS COLABORAÇÕES SECRETAS DOS ELEMENTOS

 

A oscilação oceânica liga-se ao estremecimento terrestre. [Osório diz: 100 anos depois isso recebeu o nome de tsunami?]

 

*

 

Na Europa, onde parece que a natureza sente-se constrangida em respeito à civilização,

 

CAPÍTULO VI

CAVALARIÇA PARA O CAVALO

 

CAPÍTULO VII

QUARTO PARA O VIAJANTE

 

Um estilita [Osório diz: Simeão Estilita, o Antigo (Sísia, 389 - Telanisso, 459) foi um asceta cristão, que viveu no cimo de uma coluna de pedra. É tido como santo pela Igreja Católica e Ortodoxa. Na Católica o seu dia corresponde ao 5 de janeiro, enquanto que na Ortodoxa é celebrado a 1 de setembro.] contentara-se; Gilliatt, mais exigente, queria coisa melhor.

 

*

 

Ao lado da força, que é física, tinha a energia, que é moral.

 

CAPÍTULO VIII

IMPORTUNAE QUE VOLUCRES

 

CAPÍTULO IX

O ESCOLHO E A MANEIRA DE SE SERVIR DELE

 

CAPÍTULO X

A FORJA

 

Utilizar o obstáculo é um grande passo para o triunfo. O vento era o inimigo de Gilliatt, Gilliatt resolveu fazer dele o seu lacaio.

 

*

 

O que se diz de certos homens: próprios para tudo, bons para nada.

 

*

 

Gilliatt não sabia as palavras que exprimem as idéias, mas percebia as idéias.

 

*

 

Para coisa nenhuma, não; só o Ignoto [Osório diz: desconhecido] o sabe!

 

CAPÍTULO XI

DESCOBERTA

 

A formação geológica é pouca coisa comparada à formação oceânica. Os escolhos, casas de vaga, pirâmides da espuma, pertencem à arte misteriosa que o autor deste livro chamou algures a Arte da Natureza, e têm uma espécie de estilo enorme. Ali o fortuito parece intencional. Essas construções são multiformes. Têm o embaraçado do pólipo, a sublimidade da catedral, a extravagância do pagode, a amplidão da montanha, a delicadeza da jóia, o horror do sepulcro.

 

*

 

nenhum acidente do mar que pudesse complicar o perigo.

 

CAPÍTULO XII

O INTERIOR DE UM EDIFÍCIO DEBAIXO DO MAR

 

contrabandistas que ali depunham as suas mercadorias; nenhum desses

 

[Osório diz: aqui começa uma parte do livro que também achei, inicialmente, chata, mas, depois de terminar a leitura e ouvir uma conversa em um boteco sobre tempestade, vi quanto o escrito é belo. Aliás, e isso eu já tinha visto, tem umas passagens muito poéticas]

 

esmeralda em fusão.

 

CAPÍTULO XIII

O QUE SE VÊ E O QUE SE ENTREVÊ

 

Miguel Ângelo. [Osório diz: Tradução de Machado de Assis].

 

*

 

Era de belo efeito aquele consórcio de coisas medonhas.

 

*

 

com uma graça monstruosa.

 

*

 

Sentia-se ali o imprevisto do espanto.

 

*

 

uma realidade cheia de impossível.

 

LIVRO SEGUNDO

O TRABALHO

 

CAPÍTULO PRIMEIRO

OS RECURSOS DAQUELE QUE NÃO TEM RECURSOS

 

Um afago prévio tempera as traições. A água marinha não é avara desses afagos. Com aquela mulher é preciso desconfiar do sorriso.

 

CAPÍTULO II

DE QUE MODO SHAKESPEARE PODE ENCONTRAR-SE COM ÉSQUILO

 

O ignorante pode achar, só o sábio inventa.

 

CAPÍTULO III

A OBRA-PRIMA DE GILLIATT AJUDA A OBRA-PRIMA DE LETHIERRY

 

Demais, abreviemos a explicação. Compreender-se-á que omitimos muitos pormenores que tornariam a coisa clara para as pessoas do ofício, e obscura para as outras.

 

*

 

Digamos aqui que os defeitos mais grosseiros não impedem que um mecanismo funcione. O obelisco da praça de São Pedro de Roma foi levantado contra todas as regras da estática. O coche do Czar Pedro era construído de tal modo que parecia tombar a cada passo; entretanto, andava. Quantas deformidades na máquina de Marly. Tudo ali era malfeito. Nem por isso deixou de dar de beber a Luís XIV.

 

CAPÍTULO IV

SUBRE

 

à proporção que a obra se fazia, ia-se desfazendo o operário.

 

*

 

Os teimosos são os sublimes. Quem é apenas bravo tem só um assomo, quem é apenas valente tem só um temperamento, quem é apenas corajoso tem só uma virtude; o obstinado na verdade tem a grandeza. Quase todo o segredo dos grandes corações está nesta palavra: perseverando. A perseverança está para a coragem como a roda para a alavanca; é a renovação perpétua do ponto de apoio. Esteja na terra ou no céu o alvo da vontade, a questão é ir a esse alvo; no primeiro caso, é Colombo, no segundo caso, é Jesus. Insensata é a cruz; vem daí a sua glória. Não deixar discutir a consciência, nem desarmar a vontade, é assim que se obtêm o sofrimento e o triunfo. Na ordem dos fatos morais o cair não exclui o pairar. Da queda sai a ascensão. Os medíocres deixam-se perder pelo obstáculo especioso; não assim os fortes. Parecer é o talvez dos fortes, conquistar é a certeza deles. [Osório diz: Estudos]

 

*

 

qui-la.

 

*

 

Crer é apenas a segunda potência; a primeira é querer; as montanhas proverbiais que a fé transporta nada valem ao lado do que a vontade produz.

 

CAPÍTULO V

SUB UMBRA

 

Todo o número é zero diante do infinito.

 

*

 

Esses universos, que nada são, existem. Verificando-os, sente-se a diferença que vai entre ser nada, e não ser.

 

*

 

A fé tem uma estranha necessidade de forma. Daí vêm as religiões. Nada é tão opressivo como uma crença sem delineamento.

 

*

 

Deus é a noção incompreensível. Essa noção está no homem.

 

CAPÍTULO VI

GILLIATT COLOCA A PANÇA EM POSIÇÃO

 

CAPÍTULO VII

SURGE UM PERIGO

 

CAPÍTULO VIII

MAIS PERÍCIA QUE DESENLACE

 

Nenhum abalo na água, nenhum balanço nas pranchas. Era uma estranha colaboração de todas as forças naturais dominadas.

 

CAPÍTULO IX

INTERROMPE-SE O ÊXITO

 

CAPÍTULO X

AS ADVERTÊNCIAS DO MAR

 

CAPÍTULO XI

PARA UM BOM ENTENDEDOR MEIA PALAVRA BASTA

 

O mar estava manso e soberbo; merecia todos os madrigais que lhe dirigem os burgueses quando estão contentes com ele — um espelho, um mar de rosas, um tanque, um mar de leite. O azul profundo do céu correspondia ao verde profundo do oceano. Aquela safira e aquela esmeralda podiam admirar-se ambas. Não tinham de que exprobrar-se. Nenhuma nuvem em cima, nenhuma espuma embaixo. No meio desse esplendor subia magnificamente o sol de abril. Era impossível ver mais belo dia.

 

LIVRO TERCEIRO

A LUTA

 

CAPÍTULO PRIMEIRO

O EXTREMO TOCA O EXTREMO E O CONTRÁRIO ANUNCIA O CONTRÁRIO

 

Persiste entretanto a serenidade do céu e do oceano. A manhã rompe radiosa e a aurora sorri, o que enchia de religioso horror os antigos poetas e os antigos adivinhos, assustados de que se pudesse crer na deslealdade do sol. Solem quis dicere falsum audeat?

 

*

 

De súbito ouve-se um grande murmúrio confuso. Há uma espécie de diálogo misterioso no ar.

Não se vê coisa alguma.

A extensão fica impassível.

Entretanto o rumor cresce, engrossa, eleva-se. Acentua-se o diálogo.

Há alguém por trás do horizonte.

Pessoa terrível essa, é o vento.

O vento, isto é, a população de titãs que chamamos Tufões.

Imensa plebe da sombra.

A Índia chamava-os Morouts, a Judéia Querubins, a Grécia Aquilões. São os invisíveis pássaros ferozes do infinito. Esses Bóreas precipitam-se.

 

CAPÍTULO II

OS VENTOS DO LARGO

 

Ignora-se o que eles podem, desconhece-se o que eles querem. São as esfinges do abismo; e Vasco da Gama é o seu Édipo.

 

*

Os ventos combatem esmagando e defendem-se esvaindo-se.

 

*

 

Tanto atacam como fogem.

 

*

 

Subitamente, o furacão, como uma besta, desce a beber no oceano; sorvo inaudito, a água sobe para a boca invisível, forma-se uma ventosa, incha o tumor; é a tromba,

 

*

 

A água é flexível porque é incompressível. Resvala debaixo do esforço. Apertada por um lado, escapa por outro. É assim que a água se faz onda. A vaga é a sua liberdade.

 

CAPÍTULO III

EXPLICAÇÃO DO RUMOR OUVIDO POR GILLIATT

 

a navegação aérea, servida pelos navios do ar (air-navires) que chamamos, por mania de grego, aeróscafos, utilizará as linhas principais. [Osório diz: este livro foi publicado em 1866!]

 

CAPÍTULO IV

“TURBA, TURMA”

 

planícies do Brasil;

 

*

 

Outros ventos mais, e como achar-lhes o fim? Os ventos carregadores de sapos e gafanhotos que sopram nuvens e bichos por cima do oceano; os que operam o que se chama salto de vento, e que têm por tarefa acabar com os náufragos; os que, com um sopro único, deslocam a carga do navio e o obrigam a continuar viagem todo inclinado; os ventos que constroem os circum-cúmulos; os ventos que constroem os circum-estratos; pesados ventos cegos, túmidos de chuva; os ventos do granizo; os ventos da febre; os ventos cuja aproximação faz ferver os salsos e os solfatários da Calábria; os ventos que fazem brilhar o pêlo das panteras da África andando nos espinheiros do cabo de Ferro; os que vêm sacudindo fora da sua nuvem, como uma língua trigonocéfala, o temível relâmpago de forquilha; os que trazem neves negras. Tal é o exército.

 

*

 

o Vento compõe-se de todos os ventos.

 

CAPÍTULO V

GILLIATT PODE ESCOLHER

 

CAPÍTULO VI

O COMBATE

 

convinha-lhe a ele;

 

*

 

esvaziavam-se sem esgotar nunca.

 

*

 

Quando a noite chegou, já havia noite;

 

*

 

a embriaguez de seu próprio horror tinha-o perturbado.

 

*

 

disjungiu as trevas.

 

LIVRO TERCEIRO

A PARTIDA DO “CASHMERE”

 

CAPÍTULO PRIMEIRO

A ANGRAZINHA PRÓXIMA DA IGREJA

 

Dá a saudação aos que chegam e o adeus aos que saem.

 

*

 

às bagagens, [Osório diz: Esta crase existe aí, senhor Machado de Assis? Ou ela não foi posta pelo senhor?]

 

CAPÍTULO II

O DESESPERO DIANTE DO DESESPERO

 

Esses asilos obscuros das praias, que tentam as banhistas, não são tão solitários como se pensa. Às vezes espreita-se e ouve-se de fora. Os que se refugiam podem ser facilmente acompanhados através das espessuras das vegetações, e graças à multiplicidade e entravamento dos atalhos. Os granitos e árvores que escondem o refugiado podem esconder também uma testemunha.

 

*

 

A desolação e a paixão estavam impressas na fronte religiosa de Ebenezer. Havia também uma resignação pungente, hostil à fé, embora derivasse dela. Naquele rosto, simplesmente angélico até então, havia um comêço de expressado fatal. Aquêle que até então só meditara sôbre o dogma, entrava a meditar sôbre a sorte, meditação nociva ao padre. Nessa meditação decompõe-se a fé. Nada perturba tanto o espírito como curvar-se ao pêso do ignoto. O homem é o paciente do acontecimentos. A vida é um perpétuo sucesso, impôsto ao homem. O homem não sabe de que lado virá a brusca descida do acaso. As catástrofes e as felicidades entram e saem como personagens inesperadas. Têm a sua fé, a sua órbita, a sua gravitação fora do homem. A virtude não traz a felicidade, o crime não traz a desgraça; a consciência tem uma lógica, a sorte tem outra; nenhuma coincidência. Nada pode ser previsto. Vivemos de atropêlo. A consciência é a linha reta, vida é o turbilhão. O turbilhão atira à cabeça do homem caos negros e céus azuis. A sorte não tem a arte das transições. Às vezes a vida anda tão depressa que o homem mal distingue o intervalo de uma peripécia a outra e o laço de ontem a hoje Ebenezer era um crente mesclado de raciocínio e um padre mesclado de paixão. As religiões celibatárias sabem o que fazem. Nada desfaz tanto o padre como amar uma mulher Tôdas as espécies de nuvens ensombravam Ebenezer.

 

*

 

Era a primeira vez na sua vida que Déruchette dizia, falando de Mess Lethierry, meu tio. Até então sempre dizia meu pai.

 

*

 

desse abismo que se chama felicidade.

 

CAPÍTULO III

A PREVIDÊNCIA DA ABNEGAÇÃO

 

página escrita de fresco.

 

CAPÍTULO IV

“PARA TUA MULHER QUANDO TE CASARES”

 

CAPÍTULO V

A GRANDE TUMBA

 

braças.

 

LIVRO QUARTO

O FORRO DO OBSTÁCULO

 

CAPÍTULO PRIMEIRO

QUEM TEM FOME ACHA MAIS QUEM TENHA

 

 

Gilliatt reconheceu que era uma pieuvre. [Osório diz: polvo]

 

CAPÍTULO II

O MONSTRO

 

Quando Deus quer, excede no execrável.

 

*

 

Este monstro é aquele que os marinheiros chamam polvo, que a ciência chama cefalópode e a que a legenda chama kraken.

 

*

 

Aquele que escreve estas linhas

 

*

 

E no absoluto ser hediondo é odiar.

 

*

 

aquele pavor tem os seus amores.

 

*

 

Essas estranhas animações são ao princípio rejeitadas pela ciência, segundo o hábito de sua excessiva prudência; depois estuda-as, descreve-as, classifica-as, inscreve-as, põe-lhes rótulos, procura exemplares; expõe-nas em museus; elas entram na nomenclatura; ela os qualifica moluscos, invertebrados, raiados; verifica-lhes as fronteiras; um pouco além os calamares, um pouco aquém os depiários; para estas hidras da água salgada acham um análago na água doce, o argironete; divide-as em grande, média e pequena espécie; admite mais facilmente a pequena espécie que a grande, o que é, em todas as regiões, a tendência da ciência, a qual é mais microscópica que telescópica; olha a sua construção e chama-os cefalópodes; conta as suas antenas e chama-os octópodes. Feito isto, deixa-os assim. Onde a ciência os larga, a filosofia os retoma.

 

*

 

A filosofia estuda por sua vez esses entes. Ela vai menos longe e mais longe que a ciência. Não os disseca, medita-os. Onde o escalpelo trabalhou, imerge a hipótese. Procura a causa final. Profundo tormento de pensador. Essas criaturas o inquietam quase sobre o criador. São as surpresas hediondas. São os perturbadores do contemplativo. Ele as verifica desvairado. São as formas intencionais do mal. Que fazer diante dessas blasfêmias da criação contra si própria? A quem deve ele queixar-se?

 

*

 

Esses animais são fantasmas e monstros, a um tempo.

 

*

 

Esses prolongamentos de monstros, no invisível ao princípio, no possível depois, foram suspeitados, vistos talvez, pelo êxtase severo, e pelo olhar fixo dos magos e dos filósofos. Daí a conjetura de um inferno. O demônio é o tigre do invisível. A besta feroz das almas foi denunciada ao gênero humano por dois visionários, um que se chama João, outro que se chama Dante.

 

*

 

Todo animal feroz, como toda inteligência perversa, é esfinge.

 

*

 

Uma rede chinesa, roubada na última guerra, no palácio do império da China, representa o tubarão comendo o crocodilo, o qual come a serpente, a qual come a águia, a qual come a andorinha, a qual come a lagarta.

 

*

 

Toda a natureza devora ou é devorada. As presas mastigam-se umas às outras.

 

*

 

A explicação dizem ser esta: a morte exige a inumação. Esses vorazes são coveiros.

 

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Todas as criaturas entram umas nas outras. Podridão é alimentação. Assustadora limpeza do globo. O homem, carnívoro, também é coveiro. A nossa vida é feita de morte. Tal é a lei terrífica. Somos sepulcros.

 

CAPÍTULO III

OUTRA FORMA DE COMBATE NO ABISMO

 

nenhum seio ousaria aleitar

 

CAPÍTULO IV

NADA SE ESCONDE, NADA SE PERDE

 

Os misteriosos encontros com o inverossímil que chamamos alucinações existem na natureza. Ilusões ou realidades, as visões aparecem.

 

*

 

O olhar de um homem audaz, em tais ocasiões, quer saber das coisas a fundo.

 

*

 

Via-se, debaixo dessa porção de tentáculos e escamas, o crânio com as estrias, as vértebras, os fêmures, as tíbias, os longos dedos nodosos, com unhas. As costelas estavam cheias de caranguejos. Tinha palpitado ali algum coração. Os buracos dos olhos estavam atopetados de bolor marinho. Algumas conchas tinham deixado a sua baba nas fossas nasais. Não havia nesse recanto da caverna nem sargaços, nem ervas, nem sopro de ar. Nenhum movimento. Os dentes riam. [Osório diz: Família da Maria Só, lá de Maraã]

 

CAPÍTULO V

HÁ LUGAR PARA ALOJAR-SE A MORTE NO INTERVALO QUE SEPARA 6 POLEGADAS DE 2 PÉS

 

Sinistras justiças.

 

CAPÍTULO VI

“DE PROFUNDIS AD ALTUM”

 

natureza, mãe quando quer, algoz quando lhe apraz.

 

CAPÍTULO VII

HÁ UM OUVIDO NO IGNOTO

 

O vento, que era tépido ao princípio, tornou-se cálido.

 

TERCEIRA PARTE

 

DÉRUCHETTE

 

LIVRO PRIMEIRO

NOITE E LUA

 

CAPÍTULO PRIMEIRO

O SINO DO PORTO

 

tocar a recolher, tendo conservado o hábito de apagar cedo as luzes.

 

*

 

O pesadelo era o descanso do desespero.

 

*

 

A oração, enorme força própria da alma, é da mesma espécie que o mistério. A oração dirige-se à magnanimidade das trevas; a oração contempla o mistério com os olhos da sombra, e, diante da fixidez poderosa desse olhar súplice, sente-se um desarmamento possível no ignoto.

 

*

 

Essa possibilidade entrevista é já uma consolação.

 

*

 

A melancolia é a ventura de ser triste.

 

*

 

Daí vinha a dúvida a muitos espíritos. Onde não há motivo, parece que não há ato.

 

*

 

Nada mais triste do que pensar em decair.

 

*

 

Parece simples estar arruinado. Golpe violento; brutalidade da sorte; é a catástrofe uma vez por todas. Seja. Aceita-se. Tudo está acabado. Fica-se arruinado. Está dito, morreu. Qual! Vive-se. É o que no dia seguinte começa-se a sentir. Por quê? Por alfinetadas. Passa um homem sem tirar o chapéu, chovem as contas das lojas, ri-se um inimigo. Ri-se talvez do último trocadilho de Arnal, mas é o mesmo, o trocadilho pareceu-lhe mais engraçado, exatamente porque estás pobre. Lês a tua decadência até nos olhares indiferentes; as pessoas que jantavam em tua casa acham demasiado os três pratos da tua mesa; os teus defeitos saltam aos olhos de todos; as ingratidões, não tendo que esperar mais nada, tiram a máscara; todos os imbecis predisseram o que te acontece; os maus dilaceram-te, os piores lamentam-te. E mais cem pormenores mesquinhos. A náusea sucede às lágrimas. Bebias vinho, beberás sidra. Duas criadas! Uma seria demais. Devia-se despedir esta, sobrecarregar aquela. Há flores demais no jardim; planta antes batatas. Davas flores aos amigos, vende-as agora no mercado. Quanto aos pobres, já não deves pensar neles; também não és pobre? As toaletes, questão pungente. Diminuir uma fita a uma mulher, que suplício! Recusar o enfeite, a quem te dá a beleza! Ter ares de avarento! Talvez que ela te diga: “Pois que! Tiraste as flores do meu jardim, e agora as tiras do meu chapéu!”

 

*

bigorrilhas. [Osório diz: Pessoa  incômoda. Pessoa que se considera ter pouca importância ou ser desprezível. = MEQUETREFE, ZÉ-NINGUÉM]

 

*

 

Há soluços no pensamento.

 

CAPÍTULO II

AINDA O SINO DO PORTO

 

cestos de gávea

 

*

 

a noite esfuma tudo quanto desenha e o luar faz tudo indeciso.

 

*

 

As estrelas são feitas tanto para o coração humano de um pobre, como para o coração de um milionário.

 

*

 

Estava desvairado. O que ele sentia não cabe dizê-lo em palavras; a comoção é sempre nova e as palavras já serviram muito; daí vem a impossibilidade de exprimir a comoção. Existe o abatimento do encanto.

 

LIVRO SEGUNDO

RECONHECIMENTO EM PLENO DESPOTISMO

 

CAPÍTULO PRIMEIRO

ALEGRIA CERCADA DE ANGÚSTIA

 

pascácios. [Osório diz: Que ou quem se considera ter pouca inteligência. = LORPA, PATETA, TOLO]

 

*

 

ao princípio

 

Fim.

 

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