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Poesia: deleite-se ou delete-me (18.11.16).

 

Poesia: deleite-se ou delete-me (18.11.16).

 Proibido   beto

                                                                           

                                        Obrigado ao Beto pela foto!

Maraãvilhosos,

Histórias de Maraã.

Contei a seguinte a uma amiga:

Ramiro era homem alto, o rosto bexigoso, com poucos fios de barba e uma barriga que quase sempre apontava para um futuro crescimento, embora não passasse disso. Algo que o marcava profundamente era a delicadeza de suas mãos, como se ele tivesse nascidoporteiroda prefeitura de Maraã, sua profissão quando o conheci. Eram mãos e dedos longos, mas o conjunto era fino como uma faca. Isso mesmo, como uma faca, pois do início da palma da mão, junto ao pulso, ela ia afinando em direção aos dedos, que estavam sempre todos muito juntos uns dos outros, como se fossem sobrepostos. Tal delicadeza podia ser melhor observada quando ele jogava baralho, ao segurar as cartas ou, jogavasinuca(bilhar), quando colocava a mão direita para apoiar o vai e vem do taco. Ou, ainda, quando segurava o cigarro entre o médio e o indicador.

Dona Iracilda tinha pele muito branca, que herdara de seus ancestrais cearenses, a qual contrastava com a pele meio amarelada de Ramiro, seu esposo. Tinha estatura elevada, cabelos longos, olhos de um castanho muito claro, nariz alongado, em cujo final a cartilagem levantava abruptamente, sem deixar de ser belo, formando bem na extremidade um pequeno vale entre as narinas. Sua boca rosada não permitia que quase se vissem seus dentes, sempre encobertos pelos finos lábios que tomavam a forma da letra o, em seu eterno biquinho quando falava. Sua voz era pausada e grossa e quem apenas a ouvisse falar, sem vê-la, teria sua voz pela voz de um homem. Era extremamente mal-educada” (malcriada ou ciumenta, ou tudo junto!), tratava seu marido sempre porcorno,f.d.p,miranha(uma etnia indígena da região; e ser chamado de índio, no Amazonas, é ofensivo) e outros sinônimos nada carinhosos. Aos impropérios, ele não reagia, apenas sorria, não se sabe de quê.

Ramiro não era tão malcriado ou espirituoso quantoseuMozart Bessa, um comerciante que viaja pela nossa região. Ele sofreu um derrame e ficou com sequelas. Certo dia, D. Nilza, sua esposa, olhando para ele e lembrando seu passado de namorador, disse:É Mozá (como se pronunciava), tu agora fudido’”. Ao que ele respondeu:É, mas antes de fudidoeu tef---muito, e caiu na gargalhada.

Mesmo o casal aparentemente não se entendendo em público, em particular isso não ocorria, pois tiveram vários filhos: Cirene, Cildete, Ciran, Cirlene, Centemar e Júlia (tiveram mais alguns depois que com eles perdi contato), mesmo eu pensando que a Júlia, pela mudança noC, como inicial de todos os nomes, seria o final da carreira procriadora do casal. Não o foi.

Ramiro não tinha grandes atrativos capazes de justificar o possível ciúme que Iracilda demonstrava nutrir. Nunca vi possívelescapulidadele em Maraã. Sua rotina era: casa-prefeitura-casa, sempre, exceto aos domingos, quando ia para a beira (margem) do campo de futebol acompanhar o seu Beira-Rio, porém sempre estava acompanhado pelos filhos, de onde voltava para casa assim que a partida se encerrava, pois a vitória, ou derrota, era comemorada no pequeno bar que ele mantinha em sua própria residência. Bar que, por sinal, veio a existir quando ele se mudou da Avenida Castelo Branco, a rua da frente, para a Desembargador João Meireles, a rua detrás.

No salão do bar, tinham duas mesas de bilhar (sinuca), em volta das quais tanto Ramiro quanto nós costumávamos nos divertir em campeonatos cujos prêmios, de tão insignificantes, não lembro mais, geralmente era pouco dinheiro.

Para diversificar a diversão, depois de um tempo, Ramiro se reunia com outros para jogar baralho,pif-paf, quando, também, costumávamos apostar pequenas quantias. Joguei com eles algumas vezes, tinha uns 13/14 anos, mas não era muito fiel, preferia namorar, ou, pelo menos, tentar.

Tanto quando estava na sinuca ou no baralho, estivesse presente quem estivesse, o tratamento de sua esposa era sempre o mesmo:cornoe/ouf.d.p. Ele apenas sorria.

Ramiro costumava se soltar quando chegava em Tefé. Ao contrário de sua rotina em Maraã, longe de Dona Iracilda ele se entregava aos prazeres da bebida, do jogo de sinuca e de baralho, uma vez que junto à casa de sua irmã, D. Maria Grande, esposa do seu Joaquim Grande, sobre o qual falamos (era o pai do Hélio Rodrigues), tinha o bar da família, onde existiam também mesas de bilhar e, no final da tarde, na calçada, era armada a mesa para o dominó. Creio, ainda, que ele, no avançado da noite, também ia procurar as moças que vendem prazer na Rua do Canecão, a zona do baixo meretrício tefeense, uma vez que essa era prática comum entre os homens de Maraã quando vinham para Tefé, e eu ouvia de suas conversas nos dias e noites seguintes aos seus encontros sexuais.

Não sei por que motivo Dona Iracilda desconfiava do Ramiro com uma mulher casada, que, na época, realmente, dentre as nativas e, acredito, mesmo entre outras de outros locais, era de tirar o fôlego! Estatura mediana, pele de um moreno bronzeado, cabelos longos, negros e levemente encaracolados, nariz mediano em ângulo perfeito com seus lábios levemente avermelhados, seios protuberantes e, aparentemente, muito sólidos, corpo franzino e bem delineado, especialmente realçado quando vestia um vestido de chita que deixava bem desenhada sua bela cinturinha, em contraste com suas nádegas proporcionais em sua graciosidade, deixando à mostra seu bem torneado par de pernas. Era, assim, a mulher! Muita areia para os caminhõezinhos de seu marido e o de Ramiro, embora este, ao que até hoje eu saiba, tenha namorado com ela na cabeça de D. Iracilda.

Quando íamos para Tefé, ficávamos hospedados no próprio barco e eu, desde muito pequeno, cerca de dois anos, era levado por meu pai em suas viagens, para onde quer que ele fosse. Certa vez estávamos por e depois de um dia inteiro caminhando pelas ruas, no primeiro quarto da noite, após o jantar, meu pai me levou para o barco para eu dormir também. Deitei em minha rede e ele deitou-se na dele, como se fosse dormir, certamente para me induzir ao sono... e ao erro. Embora não fosse muito cedo, eu não conseguia adormecer. Pouco tempo depois, pensando ele que eu dormia, levantou-se, olhou-me e, como eu fingisse um sono que não existia, vi quando ele desembarcou novamente. Levantei-me e o segui.

Nessa época eu usava cabelos compridos, pois quando eu era jovem meus cabelos eram extremamente duros (de espetar caju, como diziam, pois se um caju caísse na minha cabeça, como a laranja caiu no turbante do Alladin ou a maçã na cabeça de Newton, ficaria espetado). Como não usava gel, ou tiara (isso seria coisa de mais fresco [viado] ainda do que o simples fato de usar cabelos longos), tinha que, constantemente, com um movimento de cabeça, jogar para trás os cabelos que caíam sobre o meu rosto.

Seguia meu pai a uma distância segura e sempre me escondia quando ele olhava para trás, o que, naquela noite, ele fez com frequência, como a desconfiar de que realmente estava sendo seguido. Ele caminhou bastante, indo em direção a onde ficavam os mais humildes salões de festa da cidade. pelas tantas, numa rua escura, vi que ele parou. Ao parar, estava junto a uma mulher que, aparentemente, o estava esperando no local. Em minha luta para identificá-la, colocava minha cabeça com um leve movimento do pescoço para fora do alinhamento do poste, detrás do qual estava escondido. Sempre que olhava, meus cabelos vinham para sobre o meu rosto e eu, com o movimento do pescoço, jogava-os para trás. Não percebi, ou se percebi não considerei, que meu pai estava no escuro, mas eu estava sob a luz do poste. Assim, não foi difícil, pelo meu movimento de cabeça, para ele me identificar. Quando me identificou, saiu caminhando em minha direção. Nessa hora, eu tinha identificado sua companhia: era a mulher causa do ciúme de Iracilda. Comecei a fugir dele andando um pouco mais rápido e depois corri em direção ao barco. chegando fui para a minha rede, me acordando apenas no dia seguinte e procurando agir como se nada tivesse acontecido.

Quando voltamos para Maraã, inventei de contar o ocorrido para D. Iracilda, que era conhecida, também, por falar mal de todos. Era, juntamente com o papai, a imprensa local, na falta de outra das tradicionais. que ela, de propósito ou não, inverteu o que eu lhe dissera e passou a dizer que a mulher estava também com o seu esposo, Ramiro. Isso ela gritava a plenos pulmões, especialmente quando a pessoa referida passou na frente de sua casa rumo à margem do rio, para lavar roupa.

“- Vagabunda, tava ‘saindo’ com o Ramiro em Tefé! F.d.p. OOsorinhoviu.

Estes e outros impropérios irromperam daquela boca que não conhecia discrição.

O fato logo foi levado ao conhecimento de meu pai. Este chegou em casa e gritou me chamando. eu estava, escondido, diante do escândalo causado por D. Iracilda. Pela voz de meu pai, percebi que ele ia me dar uma daquelas suas raras, porém machucantes e profundas, surras, que depois de eu muito provocar, ele costumava aplicar.

Eu me levantei e fui ao seu encontro. Ele estava com o cinturão na mão. Eu corri, ele apanhou um martelo e disse:

- Se correr, eu vou te matarisso com o martelo em ponto de arremesso. Um verdadeiro Thor.

Estando o martelo prestes a ser lançado e como eu estava muito próximo a ele, resolvi me entregar. Papai não me bateu, apenas pegou na minha orelha e me fez sentar num pequeno banco de madeira. Empunhou uma tesoura e com ela cortou bem rente os meus longos cabelos bem no centro da minha cabeça. Fiquei, hoje sei, igual àquelas imagens de Santo Antônio. Ou seja, ele foi direto naquilo que eu, na época, tanto prezava: meus longos cabelos, que disfarçavam meus cabelos duros (de porco-espinho, como dizia a meninada), dos quais eu, infelizmente, tanto me envergonhava.

Quando ele estava terminando seu trabalho, minha mãe, que lavava roupa na beira do rio, chegou em casa, avisada por algum de meus irmãos. Ela tentou evitar a desgraça, mas esta estava consumada. Depois de alguma discussão, na qual mamãe colocava papai no seu devido lugar:não podia punir quem falava a verdade, no caso, eu, ela tomou uma decisão, raspou minha cabeça, ou o resto de cabelos que ainda sobrava. Fiquei completamente careca. Esse foi um dos meus piores martírios, pois passei a ser motivo de chacota e do que se chamava demela, que consistia no seguinte: molhar os dedos indicador e médio com saliva e aplicar potente golpe na cabeça dos carecas. Quase não brigava por causa disso, porque quem aplicava os famososmelaera, geralmente, pessoa maior que eu e para a qual eu não era páreo. Os menores não se atreviam. Mas o pior não era isso, era a vergonha frente às possíveis namoradas. Na época, não era moda ser careca, muito pelo contrário, a moda era usar cabelos longos e, com isso, eu me sentia profundamente triste e discriminado. Também não tinha consciência que apenas estava pagando o que fizera com tantos outros garotos: aplicar-lhesmela.

Mamãe percebeu meu sofrimento e confeccionou um chapéu vermelho para encobrir minha vergonha. A emenda continuou igual ao soneto, que agora o motivo da alegria de todos era tirar o meu chapéu e, quando tinha mais de um, jogá-lo de um para o outro, enquanto eu corria na direção de um deles (faziam-me deperu, como se dizia). Era horrível, principalmente quando tinha uma paquera por perto e ela também caía na gargalhada. Pedi, então, à minha mãe, que colocasse um elástico, o qual prenderia o chapéu em volta do meu queixo. Isso diminuiu a perturbação, embora não a tenha eliminado, pois, agora, bastava baixar o chapéu para trás ou para frente e minha careca ficava à mostra. Recebi, no período, vários apelidos. O mais marcante foi o depica-pau(oupinica-pau, como diziam os meninos de Maraã), por ter essa ave a cabeça vermelha, tal qual meu chapéu. Felizmente eles não conheciam a história da Chapeuzinho Vermelho, caso contrário...

Nesse e em outros tempos, tive também vários outros apelidos, todos eles ligados ao fato de eu ser bastante sardento na juventude. Meus traumas com as sardas cessaram definitivamente quando, adulto, li o seguinte poema de Mário Quintana:

A mocidade, dizem que não cria ferrugem.

Mas e as tuas sardas, sereiazinha,

as tuas maravilhosas sardas?

Para a gente as beijar uma por uma... (...)

Meus apelidos decorrentes das sardas eram:maracajá do Brasil(um felino igual à jaguatirica), não me pergunte, pois não sei responder, a razão do... do Brasil, cujo efeito, pelo Brasil ser grande, era aumentar meu sofrimento.Ovo de codorna,sabão cutia(sabão cujas barras/pedras eram salpicadas de pintinhas pretas), isso quando não diziam que minha mãe, quando nasci, ao invés de usar talco, usou canela no meu rosto. Era odioso. Ah, sim, tinha ainda o famosoferrugem. Isso doía mais quando dito perto de uma pretensa paquera ou mesmo por ela.

- Época boa, não existia o tal bulling!

- Ou se existia, comigo não funcionou!

- Como você diz, seu complexo é de superioridade!

- Isso mesmo!

- Prossiga, então.

- Felizmente os cabelos voltaram a crescer eSansãovoltou a ser o que era!

...

- Antes disso, cheguei a ter um namorico com uma filha do casal Ramiro e Iracilda, a Cildete que, por sua estatura, era chamada degirafa, mas eu admirava mesmo era a Ciran, que era a mais bonita, mas ela nunca me deu bola. Namorava o França Pachola, mas casou com um rapaz apelidado de Presidente! Este é irmão da Argentina Almeida, sobre quem te falei.

- A Maraã masculina, mulher macho sim sinhô!

- Exato!

- Continue, por favor, não quis atrapalhar!

- Você nunca atrapalha!

- Olha que eu acredito!

- Fique a vontade!

- Não nos percamos, continue.

- Certo dia, soube, Ramiro vendeu tudo o que tinha e foi morar no município de Japurá. Mesmo estando morando em Manaus, não deixei de ficar triste, pois achava que aquela família estava enraizada em Maraã, como estas lembranças estão enraizadas em meu ser.

Anos mais tarde, soube que Iracilda continuava destilando o mesmo tratamento ao seu paciente esposo.

Ramiro, quando não tinha explicação para algo, costumava dizer que aquilo ocorreradevido os ariolites, que até hoje não sei o que é e da boca dele jamais saberei, pois soube que faleceu recentemente. Uma pena!”.

Saudade de todos!

Abraços,

Osório

POEMEMOS:

 

 Múcio Góes

Obrigado Cris Lima pelo encaminhamento do poema.

 

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