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Teoria do fogo, Lavoisier e a "Teoria do Flogisto".

 

Fogo

Arquitetos de ideias

Ernest R. Trattner

4. Lavoisier

 

TEORIA DO FOGO

 

MAIS uma vez temos de retrogradar aos gregos, àqueles sábios antigos que tantas coisas meditaram e adivinharam. A ciência cresce por acumulações, e é sempre útil contemplar a lenta conquista de cada um de seus triunfos. De inícios modestíssimos têm-se evolvido resultados magníficos.

A teoria do fogo ilustra os progressos do esforço cumulativo.

 

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Já no quinto século A. C., vemos que certos filósofos pitagóricos, especialmente Heráclito acreditavam ser o fogo a matéria básica e princípio do universo. De acordo com esse prístino conceito, a combustão consistia numa redução do corpo à sua forma elementar. Ensinavam os pitagóricos que, durante a queima, uma estrutura complexa é transformada, pela ação do fogo, em outra de constituição mais simples. A ideia de que um corpo diminue ao ser queimado implica que ele perdeu alguma coisa. Considere-se uma vela. Ao queimar-se esta, decresce-lhe o tamanho; aparentemente, uma parte do que estava contido na vela desapareceu. Esta crença numa perda persistiu até o século XVIII, corporificando-se numa alentada teoria que iludiu três gerações de cientistas. Platão, Aristóteles, Empédocles e outros pensadores de menor nomeada expenderam suas opiniões sõbre o fogo, mas as explicações dadas por eles não se baseavam na experimentação. Ponderavam, é verdade, sobre a natureza de fenômenos tais como a luz, o calor, o movimento e a eletricidade. Aqui e além, nos seus livros, depara-se-nos uma ou outra ideia que é como um relâmpago de argúcia e penetração genial. Conheciam-se, entanto, muito mal esses agentes para que os sábios da antiguidade pudessem formar deles um conceito adequado. Em particular, os filósofos não podiam estudar as relações mútuas desses fenômenos, simplesmente porque nenhum deles suspeitou jamais da existência de tais relações.

 

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No capítulo anterior vimos que o fogo era considerado um dos quatro elementos. Sob o nome de fogo, os filósofos antigos e medievais reuniam tudo que participasse, real ou aparentemente, da natureza da chama. O fato de surgirem chamas dos corpos em combustão levou-os a supor que o fogo e suas manifestações fossem coisas elementares, menos palpáveis do que a água ou a terra, mas não obstante materiais.

A verdadeira natureza do fogo, porém, não foi compreendida por eles. Quando se davam ao trabalho de considerar este assunto, ou lhe atribuíam uma significação mística e semi-religiosa, ou viam-no com os olhos do chamado senso comum: que o fogo é uma substância material refinada, uma espécie de matéria extremamente leve, universalmente espalhada pela natureza. Em proporções várias e desconhecidas, a “matéria-logo” entrava na composição intima de todas as coisas. Esta concepção material, que via no fogo uma substância, foi a que vigorou durante toda a longa e tenebrosa era da alquimia, em que a teoria dos quatro elementos teve papel predominante.

É realmente assombroso, quando refletimos nisso, que o fogo descoberto pelos homens nos primeiros estádios da sua cultura, permanecesse um mistério absoluto até o século XVIII. Isto, está claro, não quer dizer que o homem não conhecesse o uso do fogo. Pelo contrário, a domesticação deste fenômeno foi uma das primeiras conquistas da humanidade, e um feito com justiça celebrado em inúmeros mitos e lendas que figuram em todos os folclores primitivos. Prometeu, indo arrebatar o fogo ao empíreo (região do fogo), é o símbolo dessa conquista.

 

Vai, porém, grande diferença de conquista a conhecimento. Um homem pode ser exímio na direção de um automóvel, conservando-se ao mesmo tempo em absoluta ignorância dos princípios mecânicos que presidem à construção e funcionamento do veículo. Durante séculos incontáveis o homem utilizara-se do fogo para cozer, para aquecimento, para iluminação, como sinal e para fins rituais. O fenômeno amalgamou-se-lhe tão intimamente na vida quotidiana, que veio a ser olhado como uma coisa trivial que não necessitava explicação.

O fenômeno da queima ou combustão é talvez o mais comezinho, o mais espetacular e o mais significativo dos processos químicos. Quando, com o progresso do saber, veio finalmente a fazer-se indispensável uma explicação científica do fogo e dos fenômenos que lhe são conexos, a melhor que se achou foi o flogisto*. Foi a solução dada pelo prof. Georg Ernst Stahl (1660 - 1734). Sendo embora um erro, ela tem lugar na história da química, como a primeira teoria elaborada por esta ciência em sua marcha triunfante para a verdade.

 

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Se o leitor quer saber o que foi a teoria do flogisto, pergunte a si mesmo: Quando uma coisa queima, que é que acontece? O prof.Stahl tentou uma explicação, em que fracassou lamentavelmente. Entretanto, essa solução abortada é um dos mais interessantes ensaios de teoria nos anais da ciência.

Stahl nasceu em Anspach, cidadezinha bávara situada uns 150 quilômetros ao norte de Munich. Os assuntos a que se consagrou particularmente foram a medicina, a química e a astronomia, vastos campos de conhecimento que começavam então a sair das brumas medievais. Leitor onívoro, Stahl acumulara já enorme provisão de saber quando recebeu da universidade de Iena o diploma de médico. Tinha 23 anos apenas, mas ninguém almejava tão ardentemente dilatar as fronteiras da ciência. Aos vinte-e-sete, esse fértil e versátil teorista tornava-se médico da corte em Weimar. Já era um veterano das batalhas do pensamento. Criadores de teorias, às dezenas, têm guindado ao plano de leis naturais coisas que não passavam de hipóteses infundadas. Fizeram-no, entanto, à custa de esforços e sacrifícios enormes. Isto se aplica, indubitavelmente, a Stahl e à sua teoria do flogisto.

O que bem cedo atraiu Stahl para o estudo do fogo foi o genuíno interesse que lhe comunicara em sua juventude aquele excêntrico mas arguto professor de química, Johannes Joachim Becher (1635-1682), autor de um curioso livro dedicado a Deus a quem ele chamava o Onipotente Químico - e escrito num singular estilo, "familiar e não obstante incisivo, que deixava o leitor simpatizante em dúvida sobre se estava lendo um autor ímpio, ou apenas irreverente, ou ainda deveras, se bem que fantasticamente, religioso." Dotado ele próprio de uma personalidade fogosa, Becher imprimiu um fascínio extraordinário ao problema da combustão, que ocupava posição central no seu pagode fantástico de especulações químicas. Mais alquimista do que químico, este extravagante adorador do fogo propôs uma teoria pessoal que iria constituir o ponto de partida da doutrina flogística de Stahl.

Este foi, porém, um pensador original, e a sua dívida a Becher é muito menor do que se tem afirmado. Descobrir predecessores não basta para explicar a gestação de uma ideia no espírito de um teorista. O encadeamento histórico pode, às vezes, resultar num erro grosseiro. Considere-se o exemplo de Dalton, Acentuar que Gassendi, Boyle e Newton acreditavam na estrutura granular da matéria é, talvez, dar uma versão ilusória do que se passou no espírito de Dalton. Somente depois de haver trabalhado por muitos anos, foi que este lançou mão do subsídio deixado por outros pensadores. Mesmo então, fê-lo quanto ao aspecto físico, e não químico, do problema. O mesmo se aplica a Darwin. Este conhecia muito mal os seus numerosos predecessores; havia já muitos anos que a teoria da evolução tomara forma em sua mente quando ele se deu conta de que outros se lhe haviam antecipado, em caminhos paralelos ao seu. Foi Stahl o criador da teoria flogística, e não Becher. Foi o seu autor, porém não o autor de muitas ideias extravagantes que ao depois se lhe agregaram.

 

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Segundo Stahl, era o flogisto um princípio inflamável que se desprende de uma substância quando esta é queimada. Quanto mais inflamável a substância, mais flogisto supunha-se que ela continha. Ao que parece, Stahl não concebia o flogisto como dotado de peso. (Foram os seus sucessores que formaram este conceito.) Imaginava-o como um fenômeno semelhante à luz, um agente que produzia efeitos variados, sem todavia possuir peso. Muitas coisas diferentes podem ser queimadas, tais como a madeira, metais, carvão, papel, pano matérias que diferem grandemente umas das outras, mas que têm em comum a propriedade de serem combustíveis. Para Stahl, isto só tinha uma explicação: essas substâncias diversas participavam todas de um princípio comum, a que ele deliberou chamar flogisto,

Deste seu hipotético “princípio do fogo” dizia estar impregnada toda substância combustível. Se queimarmos, por exemplo, um metal ou pedaço de madeira, a cinza que fica como resíduo é a substância natural, desprovida do seu flogisto. Stahl provou cabalmente, no seu modo de ver, que o enxofre é um composto de flogisto e ácido sulfúrico. E eis como o fez: tomou carvão (que supunha rico em flogisto), e com ele aqueceu ácido sulfúrico, tornando a obter enxofre. Este experimento dava-lhe uma explicação satisfatória da sua teoria. O fogo, ou a chama, foi portanto considerado como sendo flogisto livre - qualquer coisa aprisionada no seio da matéria e libertada na combustão, porque a substância que o continha sofria um processo de redução.

Algumas teorias passam por um período de angustiosa provação antes de serem aceitas. Usualmente, são estas as verdadeiras. Por singular ironia, as doutrinas falsas parecem granjear uma popularidade assombrosamente rápida. Apenas havia Stahl anunciado o princípio do flogisto, que os expoentes da química em toda a Europa apressaram-se a clamar a sua adesão. A interpretação da combustão oferecida por ele (como equivalente a uma perda de flogisto) parecia resolver um sem-número de dificuldades, além de coordenar muitas observações que até então haviam ficado isoladas. Stahl foi o grande herói do dia. Ofereceram-lhe a cadeira de medicina, química e astronomia da Universidade de Halle, e com o avultar de sua fama veio-lhe o cargo definitivo, que foi o de médico particular do rei da Prússia, em Berlim.

Na realidade, a teoria de Stahl não era mais do que o canto de cisne da alquimia. Posta no cadinho da observação, a sua aparente clareza foi-se tornando cada vez mais turva. Isto, como é de ver, não se patenteou desde logo pela simples razão de que as velhas ideais só dão de si muito de vagar, pois andam intimamente unidas a atitudes de aversão ou preferência. Confrontados com fatos que tinham sido esquecidos no ilegítimo entusiasmo pela teoria, os adeptos de Stahl inventaram toda sorte de absurdos. Não fora exatamente isso o que sucedera no caso da teoria ptolemaica? À medida que a observação descobria mais e mais fatos incompatíveis com aquela antiga doutrina, não iam os seus defensores enastrando-a de piedosas complicações? [Osório diz: com a Bíblia ocorre o mesmo processo. Ela sempre é adaptada na tentativa de corrigir suas falhas. É, portanto, um livro em constante mutação!] Primeiro tentaram coser as ideais novas no tecido antigo, resultando dar uma mescla heteróclita e disforme. Obstinaram-se depois em remendar o erro ptolomaico, em vez de procurarem lisamente saber se, em fim de contas, a sua base se firmava na verdade. Os flogisticistas, do mesmo modo, perderam seu tempo em consertar a teoria de Stahl.

Para exemplificar, consideremos um ponto particular. Para os flogisticistas, todos os metais eram substâncias compostas, formadas da cal (cinzas) do metal, mais flogisto. Quando se queimava um metal suponham eles libertava-se o flogisto encerrado 110 mesmo, ficando a sua cal. Reparou-se, todavia, em que depois de calcinado (queimado) um metal, a sua cal pesa mais do que a substância primitiva. Como explicar isto? Segundo a teoria de Stahl, a perda de flogisto devia reduzir o peso do metal queimado. Se as balanças mostravam (e por certo o faziam!) que a cal pesava mais, a inferência mais lógica seria que a cal devia ter agregado a si alguma coisa, ao invés de perdê-la.

Os mestres da flogística responderam a este argumento por subterfúgio, de duas maneiras. Primeiro, declararam que a variação de peso era assunto de somenos importância, indigno de atenção. Depois, engendraram a ideia do peso negativo, explicação baseada no princípio da levidade". Sgnificava isto que o flogisto tornava os corpos mais leves (do mesmo modo que as bexigas usadas pelos nadadores), e assim, a sua extração de um corpo deixava o resíduo mais pesado.

Sabe-se hoje, está claro, que a interpretação de Stahl e seus adeptos era precisamente o inverso da realidade: em lugar de perder substância ao ser queimado, o metal agrega oxigênio, que lhe aumenta o peso, é por isto que a cal pesa mais do que o metal. À luz do que ficou provado posteriormente, patentcou-se a absurdidade das conclusões de Stahl e dos flogisticistas. O avanço da ciência consiste em se afastar gradualmente de pressuposições infundadas. A teoria proposta por Stahl era pouco mais que uma obra de pastelaria. “Meu filho", escreveu Anatole France, "cuidado com os pastéis. Os pastéis são fictícios, adventícios. São uma massa inflada que não consegue esconder a pobreza do recheio.”

 

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Ao aquilatar a obra de um teorista, deve-se ter sempre em conta o que se sabia no seu tempo, e o uso que ele fez desse saber. É esta, sem dúvida, a única maneira justa e caridosa de julgar qualquer homem de ciência. Considerando-se a época em que viveu, Stahl foi, na verdade, um pensador engenhoso e penetrante. Como outros tinham feito antes dele, tirou quanto pôde dos limitados conhecimentos de que dispunha. No entanto, o dano que causou foi enorme. Stahl foi um guia e um desencaminhador da ciência de seu tempo. Sua teoria mistificou os investigadores por mais de cem anos. Só depois de destruída foi que se percebeu o que ela era: um monumento de engenho mal empregado. Enquanto existiu, foi uma gigantesca pedra de empeço para os espíritos mais aptos. Por fortuna, sempre houve uns poucos químicos bastante atilados para não se enredarem nos dogmas flogísticos, mas na sua generalidade o mundo científico deixou-se entravar, e o seu avanço foi retardado.

Porque se mostravam tão simplórios os mestres da química? Difícil é dizê-lo. Talvez possamos aventurar esta explicação: cada época é caracterizada por um corpo de crenças, a que se associa um complexo de sentimentos. Isto implica incapacidade de examinar e rejeitar certos modos de pensar que têm raízes profundas na própria estrutura do espírito. Parecia tão verdadeiro, tão óbvio, tão imediatamente acessível ao senso comum, que uma vela ao arder desprende de si uma chama! E assim, quando Stahl ligou a combustibilidade à presença, no corpo combustível, de um elemento constituinte chamado flogisto, o mundo acolheu de braços abertos a sua explicação. O princípio do flogisto afigurava-se uma coisa axiomática, como o venerável princípio do círculo perfeito da astronomia ptolomaica. O postulado fundamental de que o mundo, tendo sido criado por Deus, deve por conseguinte ser perfeito, combinado com a ideia da perfeição da simetria, acarretou a crença dogmática de que os planetas deviam forçosamente mover-se em círculos. Pensar de outra forma seria pura heresia. Foi só no fim da vida que Kepler se libertou do conceito do círculo como única órbita possível aos planetas. A ciência necessitou de quase um século para se desembaraçar do flogisto. Efetuada essa emancipação, inaugurou-se uma série de descobrimentos, infinita em variedade e extensão.

 

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Dos fumos dessa guerra secular de argumentos surgiu aquele semideus da ciência francesa, Antoine Laurent Lavoisier, cuja obra já foi mencionada sumariamente no capítulo sobre John Dalton. Foi ele quem ultimou a demolição da teoria flogística, mostrando ao mundo que as ideias de Stahl não passavam de uma Saará rebrilhante de áridas especulações.

Para Lavoisier, a ciência era ação e não palavras. Aos demasiado verbosos pedia sempre provas do que diziam. “Os químicos fizeram do flogisto um princípio vago”, observava com mordente sarcasmo, “que não tem definição estrita, e, por conseguinte, presta-se a qualquer explicação que se lhe requeira. Às vezes, o princípio é dotado de peso; outras vezes não... É um verdadeiro Proteu que muda de forma a cada instante. Já é tempo de assentar a química em base mais precisas.” E foi o que ele fez. Conduzindo o assalto irresistível dos fatos, desalojou o flogisto da sua praça forte, secundado pelo alcance e a profundeza das suas demonstrações. Submeteu, depois, as velhas hipóteses a um exame dissolvente. Muito antes de haver proclamado ao mundo sua teoria do oxigênio, provara a si mesmo que a doutrina de Stahl era mais uma hipótese vã naquela brenha de argumentos e réplicas que asfixiava a ciência.

Para quem conhece o mundo pelo que este é, maior se torna o assombro de ver aparecer um homem tão excêntrico que tenha a busca da verdade como o interesse supremo da vida. Qual uma rajada de vento fresco, Lavoisier varejou o mundo da química, onde aparecia escandalosamente insensível às ideias bem-amadas de seus coetâneos. Vasculhadas pela tormenta, romperam-se as teias de aranha seculares do medievalismo. Não foi a revelação, contudo, repentina nem inopinada. Os tempos estavam maduros para se formular uma teoria correta do fogo; o de que tinham mister era um gênio com instintos de um caçador de primeiros princípios, com esse faro infalível do cão que amarra a perdiz, esse “abraço robusto com que a imaginação cinge a verdade possível”.

Como Boyle, Lavoisier pertencia a uma família opulenta, e, também como ele, gozou desde cedo a influência de mestres proficientes. O panorama da ciência desdobrou-se diante dele, convidando-o à exploração. Moço dotado de talentos vários, seu espírito precoce absorveu com rapidez as matemáticas, a química, a astronomia e os assuntos públicos da França. Com a idade de 23 anos era uma autoridade em assunto de iluminação e desvanecido possuidor de uma medalha de ouro, distinção especial com que o agraciara o rei em reconhecimento do seu brilhante ensaio sobre a iluminação artificial das ruas de Paris. Aos vinte-e-cinco, era aceito membro da Academia Francesa. “Parece-me que estou vendo vossos olhos, dansarem de júbilo, agora que vosso sobrinho foi eleito para a Academia", escrevia à sua tia Constância uma amiga desta. “Como é esplêndido que na sua idade, quando os outros moços só pensam em divertir-se, ele tenha trazido grandes contribuições para o progresso da ciência e conquistado uma posição a que só chegam em geral, com enormes dificuldades, homens de mais de cinquenta anos!”

Membro da Academia, Lavoisier combinou uma vida pública e uma carreira científica de energia infatigável e constante atividade. Foi logo nomeado em diversas comissões, que pesquisavam assuntos variados. Entre estes salientava-se a questão da água potável para a cidade de Paris. A água, sob todos os aspectos, fora sempre para ele objeto de estudo absorvente. Seus vastos e acurados conhecimentos neste particular constituem um de seus muitos títulos à celebridade. A par da água, os alimentos; pois Lavoisier é considerado com justiça o pai da ciência da nutrição. Mas não eram só estes os tópicos de interesse público que reclamavam sua atenção. Paris carecia de bombas de incêndio, cujo emprego foi preconizado pelo previdente Lavoisier. Apresentou um orçamento à Academia, incluindo o custo integral da fabricação e instalação desses aparelhos, bem como uns diagramas muito exatos, que demonstravam a eficiência dos diferentes modelos de bombas. A perquirição científica de todas as coisas foi nele uma verdadeira obsessão demoníaca, levando-o a devotar-se a uma vertiginosa variedade de assuntos: o cultivo da couve, a exploração de minas de carvão, a decomposição do salitre, a fabricação do amido, os fósseis, a indústria de tapeçarias, a gravação, a tinturaria, o tabaco, os azeites, as graxas, a mármore, as fossas sanitárias, a fabricação de vidro para espelhos, os combustíveis, a nutrição dos vegetais... A lista é por demais longa.

Precisava dinheiro, cada vez mais dinheiro, para poder dedicar todo o seu tempo à ciência, aprestar laboratórios, custear experimentos, adquirir materiais caros e montar ele mesmo os seus aparelhos, por mais dispendioso que isto lhe saísse. Sendo, como era, um moço rico e independente, estes projetos não seriam castelos no ar. Mas Lavoisier dava-se conta de que os seus rendimentos não bastavam.

 

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A poucos dias da sua nomeação para a Academia, Lavoisier ingressou no mundo dos negócios, com o intuito de acrescer os seus haveres. Comprou sociedade na Ferme, empresa de financeiros que, mediante uma quantia certa, fixada sexenalmente e paga todos os anos adiantadamente ao governo, tinha o privilégio de cobrar os impostos nacionais da França. A história da companhia remontava ao século XIV; fora primeiro organizada para acudir a uma emergência temporária do governo, continuando subsequentemente a prover importante e permanente necessidade. Conforme ao seu modo de proceder característico, antes de entrar na Ferme Lavoisier fizera um estudo pormenorizado da sua história, suas operações e seu lugar na estrutura econômica geral do país. Também sabia - demasiado bem o sabia! - que a Ferme era odiada por toda a gente, não só porque o povo vê com desagrado os exatores em geral, mas também por causa das corrupções, verdadeiras e imaginárias, que de tempos a tempos expunham a companhia à malquerença pública. Os colegas de Academia de Lavoisier, na maioria, censuravam a sua aliança com essa corporação. E estavam acertados, embora fossem inatacáveis os motivos que inspiravam a Lavoisier.

De-fato, o jovem cientista acalentava projetos de utilidade para a sua pátria. Queria exercer sua influência para obstar aos abusos: membro das comissões da Ferme, poderia sugerir expedientes que acarretariam verdadeiras reformas, redundando no bem de todos. Demais, a Ferme daria vasto campo para a sua capacidade administrativa e zelo científico - problemas de agricultura, constituição dos solos, alimentos, animais, habitações, toda sorte de manufaturas, substâncias químicas, transportes. Que perspectiva de interesses práticos a aguçar-lhe o apetite! Podia um moço almejar coisa melhor? Lavoisier levava muito a sério as suas funções na Ferme.

O trabalho era árduo. O jovem atacou-o com energia e entusiasmo. Não lhe faziam mossa as longas viagens em várias regiões da França, que lhe davam ensejo de entremear os negócios com observações científicas de vária sorte. Cada vez que ele voltava a Paris para fazer um relatório, seus associados notavam-lhe o progresso, o domínio do assunto, a crescente habilidade administrativa.

No curso desses trabalhos na Ferme, Lavoisier formou estreita amizade com um colega muito mais velho, o rico e influente Jacques-Alexis Paulze, cuja formosa filha Marie andava então na primeira adolescência. Era bem conhecida em Paris a casa de Paulze como lugar de encontro de financistas, homens de Estado e economistas. Personalidades como Turgot, Condorcet e Pierre Samuel Dupont de Nemours eram vistas ali em frequentes e importantes discussões, de que se sabia haverem nascido os planos da Repartição de Estatística sobre os impostos e o comércio.

E Antoine Lavoisier começou a ir à casa de Paulze - um fausto acontecimento para Marie. Ambos eram formosos, ela de estatura baixa e com apenas quatorze anos, ele alto, atraente e com vinte-e-oito. Enamoraram-se um do outro, ocorrência que fez as delícias de monsieur Paulze. O financista pedira aos céus que sua prendada filha pudesse escapar assim das mãos de outro pretendente, o destituído e quinquagenário conde de Amerval. Após breve namoro, Marie Paulze tornou-se Madame Lavoisier a 16 de Dezembro de 1771, numa cerimônia assistida por brilhante reunião de notáveis.

 

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Os noivos foram viver na casa que lhes dera o pai de Lavoisier, na rua Neuve-des-Bons-Enfants. Tinham fartos rendimentos; o dote de Marie quase igualava as posses do marido. Passou aí nessa residência o jovem casal três anos esplendidamente felizes; foi aí que, bem cedo, Marie começou seu aprendizado como assistente, ilustradora, tradutora e secretária de seu marido. Começou também a receber, no estilo da velha França aristocrática, com uma graça sem par que tornou seus salões famosos e únicos no mundo da ciência. Em 1775 morreu o pai de Lavoisier, e nesse mesmo ano era este nomeado diretor das Fábricas de Pólvora do Governo Francês. A nomeação foi obra de Turgot, que agira inspirado pelo próprio Lavoisier: tinha este alvitrado que o governo encampasse a fabricação da pólvora, a fim de reduzir os custos e obter o produto nas condições desejadas. Até então, a indústria estivera entregue a particulares, que cobravam preços exorbitantes do governo, fornecendo pólvora de qualidade inferior. Turgot rescindiu esses contratos e criou a Régie des Poudres, uma poderosa comissão administrativa composta de quatro homens competentes. Lavoisier foi nomeado diretor. A escolha desse moço para um posto de tamanha importância recebeu ampla aprovação, em particular de Dupont de Nemours, que disse de Lavoisier: “É um homem tão conhecido por seus relevantes trabalhos de química, ciência indispensável num cargo dessa sorte, como pela energia, a competência e a honestidade de que tem dado provas na administração do fisco.”

Foi um venturoso dia para os Lavoisier aquele em que se instalaram no Arsenal. Turgot designara-lhes para residência particular uns aposentos do vasto edifício. Seria esta a morada do casal durante dezessete anos, até que a Revolução Francesa os viesse desalojar dali. Foram dezessete anos cheios, atarefados com os deveres do Arsenal, da Ferme, da Academia, não faltando também trabalhos científicos de vária natureza a ser relatados, dados a coligir, experimentos a realizar e teorias a ser minuciosamente elaboradas. Lavoisier fazia tudo isto nos intervalos de seus pareceres técnicos ao governo, das sessões das Comissões de Agricultura e de Pesos e Medidas, ao mesmo tempo que entretinha volumosa correspondência com pessoas espalhadas pelos quatro cantos da terra, e escrevia um livro que iria revolucionar a química. Múltiplas ocupações de um super-homem.

Uma das primeiras coisas que fez, ao estabelecer-se no Arsenal, foi organizar um laboratório particular, em que lhe servia de assistente a esposa. Com dinheiro de seu próprio bolso, montou as oficinas com aparelhos custosos; feito isto, franqueou as portas da casa a todo homem de ciência que quisesse comunicar-se com ele e aprender com os seus experimentos. Com o recrescer da fama de Lavoisier, seu laboratório fez-se ponto de encontro dos grandes vultos da ciência, que vinham de terras distantes para vê-lo: Priestley da Grã-Bretanha, Benjamin Franklin de América, Ingenhousz da Áustria, Fontana da Itália.

 

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Moço que era, Lavoisier animava outros moços a visitar-lhe o laboratório, assistir às suas demonstrações e por vezes a auxiliá-lo. Pierre Dupont, compreendendo o valor da oportunidade, obteve de Lavoisier que lhe admitisse o filho, Eleuthère Irénée Dupont, como assistente remunerado no Arsenal. Esse dia marca a origem da riqueza dos Dupont; porque Eleuthère, foragido de Paris na Revolução, passar-se-ia para os Estados-Unidos, com aperfeiçoados conhecimentos sobre a fabricação da pólvora, colhidos no laboratório de Lavoisier. Percebeu logo que o produto manufaturado pelos americanos era muito inferior, e, em consequência, resolveu dedicar-se a este ramo de negócios. Fundou, em 1802, em terras de Delaware, próximo ao sítio da atual cidade de Wilmington, a firma E. I. Dupont de Nemours.

Como as oficinas de Lavoisier eram dotadas dos melhores e mais modernos instrumentos, muitos jovens cientistas, franceses procuravam-nas para realizar trabalhos seus ou fazer experimentos sob a direção dele. Era-lhes Lavoisier a inspiração. Além de generoso de seu tempo e dinheiro, (em 1781 morrera-lhe a tia, mlle. Punctis, deixando-lhe todos os seus bens), mostrava uma simpatia ao mesmo tempo penetrante e atenta. Relembrando esses primeiros tempos do Arsenal, escreveu madame Lavoisier muitos anos depois: “De manhã reuniam-se no laboratório alguns seus companheiros de ciência e diversos mancebos, desvanecidos por tomarem parte em seus trabalhos. Pediam que lhes levassem ali as refeições. Discutiam pontos de ciência, e foi nessa atmosfera que se desenvolveu a teoria que imortalizou o seu autor. Ali, naquele laboratório, até ser condenado à morte pelos terroristas da Revolução, Lavoisier encarnou a sede de verdade do filósofo, o esforço do artista pela auto-expressão, a luta do explorador com a natureza, a obsessão de descobrimento do prospector e a ânsia do idealista pela suprema excelência.

 

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Como foi que Lavoisier demoliu o grandioso edifício erigido por Stahl e os flogisticidas? O primeiro golpe, desfecharam-no os seus experimentos sobre a calcinação dos metais. Stahl afirmara que um metal era uma substância composta de sua cal, mais flogisto, e seus adeptos aditavam a isto o absurdo de que o flogisto tinha peso um peso negativo, que fazia o metal pesar mais depois de ser queimado! Essencialmente, a teoria de Stahl sustentava que ao calcinar-se um metal este se convertia em cinza, desprendendo flogisto durante o processo.

A experimentação é a linguagem com que o homem de ciência interpela a natureza. Lavoisier queria uma resposta. Começou por examinar todas as fases do processo de calcinação, durante o qual se supunha que o flogisto era expelido. Em todas as tentativas anteriores para explicar o fenômeno da combustão, o que se visava era demonstrar a perda de qualquer coisa. Para os flogisticistas, a queima era um processo de decomposição. Mas, longe de verificar que o flogisto, ou o que quer que fosse, era expelido, Lavoisier descobriu justamente o contrário: o metal absorvia alguma coisa, e era esta alguma coisa que fazia as suas cinzas pesarem mais. Dez onças de chumbo pesavam mais de dez onças, após serem queimadas e reduzidas a cal. Deveriam, em realidade, pesar menos, si o flogisto fosse uma substância material.

Graças a repetidos experimentos, a cuidadosas pesagens de seus reagentes e produtos de reação durante um período de onze anos, Lavoisier concluiu por ser o oxigênio essa “alguma coisa” absorvida - oxigênio que era tirado diretamente do ar. A cada passo media ele as quantidades das substâncias com que trabalhava. Certificou-se de que, ao serem queimados no ar, os metais, o enxofre, o fósforo, o carbono e substâncias similares aumentavam de peso, proporcionalmente ao volume de oxigênio que retiravam da atmosfera.

Estes experimentos sofreram as fantasias descomedidas dos flogisticistas. Já não podiam eles exigir de homens sérios a fé na existência de uma substância hipotética que não podia ser separada, isolada nem pesada. Lavoisier mostrou que o flogisto e suas propriedades puramente imaginárias não resistiam à prova do laboratório. A prolongada guerra contra o flogisto encaminhava-se, pois, para a vitória, não obstante o fato de ser a teoria de Stahl suficientemente aceita e suficientemente dramática para que os ânimos se acalorassem. Quando, em 1789, Lavoisier publicou o seu Tratado Elementar de Química, o mundo aprendeu que o conceito do flogisto, com todos os seus acessórios, era desnecessário, e, de mão dada com o peso negativo, ele desapareceu lentamente do campo da ciência.

Introduzindo na química a balança como instrumento de precisão, Lavoisier assentou a nova disciplina sobre os fundamentos quantitativos definidos de uma ciência exata. Vibrava, ao mesmo tempo, o golpe de misericórdia em todo aquele sistema de métodos arcaicos. A aplicação da balança aos processos químicos era a condenação inapelável da teoria de Stahl. Com a sua aguçada lógica, Lavoisier compreendera desde o início que nenhum progresso era realizável sem a possibilidade de pesar tudo o que toma parte nos processos químicos. “Costumo dizer”, declarou uma vez lorde Kelvin, “que quando podemos medir aquilo de que falamos e exprimi-lo por meio de um número, conhecemos alguma coisa do assunto; mas, quando não o podemos medir nem expressar com números, os nossos conhecimentos são fracos e pouco satisfatórios. Podem significar uma entrada em relações com a matéria, mas, seja ela qual for, achamo-nos ainda, em tal estádio, mui atrasados no caminho da ciência."

O peso e as proporções, expressos numericamente, formavam a base e a contraprova de todos os experimentos realizados no laboratório de Lavoisier. Não se deixava margem ao acaso ou a hipóteses vagas. De cada quantidade ganha ou perdida tomava-se conhecimento exato. Eis porque os resultados foram tão precisos... e tão revolucionários. Graças aos esforços de Lavoisier, a balança é hoje o instrumento simples mais essencial à química científica. A exatidão crescente de todo conhecimento químico, inclusive a assombrosa precisão a que podem alcançar as nossas balanças modernas, que acusam diferenças de um cento-e-cinquenta-milésimo de miligramo, deve-se em sua origem, mais que a qualquer outro, a esse francês do ancien régime.

 

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O criador de teorias é um homem dotado de uma combinação rara de talentos. Deve alcançar grande perfeição em diversos terrenos e precisa reunir faculdades intelectuais que não costumam andar de companhia. Há de ele tomar os conhecimentos existentes na sua época, redescobri-los, reinterpretá-los e sintetizá-los. Há de negar-se a viver no passado, se bem que deva resignar-se a buscar ali luzes para aclarar o caminho do futuro. Deve ser, sobretudo, um experimentador, "para substituir a honesta descrição dos fatos a uma explicação falaz da natureza. Em Lavoisier, a França produziu um destes gênios da teoria.

Depois de explicar a combustão, ele dedicou-se à respiração. Há milênios que os homens sabem que possuem pulmões, em comum com os outros animais, e que a respiração consiste em inalar e expelir o ar. Mas, em quanto ao que se passa dentro dos pulmões e ao que estes retiram do ar, tudo se ignorava. Por meio de experimentos, estribados na sua própria teoria do oxigênio, Lavoisier mostrou que a queima e a respiração são processos congêneres - uma, uma oxidação rápida, a outra, lenta, ambas produzindo um aumento de peso, igual ao peso do oxigênio que entrou na combinação. A respiração, em outras palavras, é uma forma de combustão. Ademais, combustão e calcinação são dois termos diferentes para expressar a ideia geral de oxidação. [Osório diz: “parafraseando” que: “Há milênios que os homens sabem que possuem mentes, em comum com os outros animais, e que o pensar consiste em ter ideias/pensamentos. Mas, em quanto ao que se passa dentro do cérebro e ao que este produz enquanto ideias, tudo se ignora.]

 

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Antes do advento de Lavoisier podia definir-se a química como “uma congérie [Osório diz: profusão ou caos, como está mais abaixo] de fatos mal concatenados por uma teoria falsa da combustão.” Com suas demonstrações, ele pôs em ordem os dados embaralhados da química, fazendo dela uma verdadeira ciência (conhecimento organizado). Devíamos aprender a ver nas teorias científicas, não só os resultados, mas os caminhos de acesso a estes. A grandeza de Lavoisier consiste, mais que em sua originalidade, na faculdade de redescobrir e reinterpretar fatos. Outros químicos terão posição mais alta como descobridores originais - tais são Priestiey, Cavendish e Black. Mas nenhum pensador de sua época o eclipsou como teorista. Tem já decorrido quase um século e meio depois que Lavoisier deu ao mundo os muitos e laboriosos frutos de seus trabalhos. Desde aquele dia do ano de 1794 em que o guilhotinaram, muitos químicos eminentes têm surgido para trazer a sua contribuição. Mas, sem embargo da vultosa obra de seus sucessores, o espírito de Lavoisier domina a química moderna: é o seu luminar.

Acontece sempre que diversos sábios se aproximam muito de uma verdade, antes de aparecer aquele que a conquistará para a ciência. Bryan e William Higgins estiveram bem perto da teoria da estrutura atômica da matéria, antes de publicar Dalton as suas explanações. É certo que Alfred Russel Wallace chegara a formular a teoria da evolução precisamente quando Darwin se preparava para lançar o seu trabalho. Ninguém, tão pouco, que esteja ao par desses fatos, poderá negar que Augustin Fresnel na França, só e desajudado, formou a ideia de que as ondas luminosas são uma vibração transversal do éter, ao mesmo tempo que o Dr. Thomas Young chegava na Inglaterra à mesma conclusão. As teorias são, muitas vezes, píncaros que escalam, por caminhos diversos, pensadores independentes e que se ignoram. Em cada caso, no entanto, é um só indivíduo o que conquista a vitória final. Os predecessores e contemporâneos de Lavoisier ajudaram a preparar o terreno; mas a coordenação das ideias que fez com que a lei e a compreensão se sobrepusessem ao caos, foi uma expressão do seu próprio gênio criador.

Porque não foi Joseph Priestley (1733-1804), em vez de Lavoisier, quem deitou abaixo o florista estabelecendo a teoria verdadeira da combustão? Porquanto, justiça seja feita, foi Priestley o legítimo descobridor do oxigênio. Numa visita feita a Lavoisier, em Paris, expusera ele ao químico francês certos dados novos relativos ao ar. Com a ajuda destes, Lavoisier achou o caminho da explicação correta. Por que foi o francês bem sucedido onde outros viram malogrados os seus esforços? A resposta que o espírito arquitetônico, uma mente capaz de elaborar fatos, e figuras, do mesmo modo que um arquiteto elabora planos e especificações. Priestley captara o fato bruto: o "ar deflogisticado”, que nas mãos de Lavoisier se apurou em "oxigênio”. O que, no espírito de Priestley, era desconexo, tornou-se no de Lavoisier um sistema coerente. O tino de descobridor daquele não pode equiparar-se ao engenho teórico deste.

É na elaboração da matéria prima dos fatos para formar o produto acabado de uma teoria que entra o fator pessoal do teorista. Com razão protestou Lavoisier contra a tentativa feita para lhe arrebatar as honras de seu feito ou reduzir-lhe o mérito de intérprete da natureza. Planejara, em seu espírito, um templo grandioso, cada um de cujos blocos duradouros ele mesmo lavrara, ao suor de onze anos de intenso labor. “Essa teoria”, declarou com ênfase, “não é, como lhe ouço chamar, a teoria dos químicos franceses, mas a minha. É uma propriedade que reivindico dos meus contemporâneos e dos pósteros”.

 

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Tão longe ficou Joseph Priestley de pressentir sequer a nova teoria ou de compreender a vasta significação do seu descobrimento, que até o seu último dia foi um firme defensor do flogisto. Ao tempo de sua morte, a maioria dos químicos havia abandonado a doutrina de Stahl. Mas Priestley, com as costas à parede, lutava ainda denodadamente pela causa perdida. Um de seus últimos atos memoráveis foi o de escrever um livro refutando Lavoisier. Intitulava-se o volume Doctrine of Phlogiston Established (A doutrina do flogisto estabelecida, 1800).

As doutrinas e crenças perimidas são como as mandrágoras, essas plantas vivas fabuladas pelos antigos, que soltavam gritos de dor ao serem laceradas. Deve-se, contudo, levar ao crédito de Priestley a sua recusa de transigir. Aqueles que acendiam uma vela a Deus e outra a Satanás, olhava-os ele com justo desprezo. Numa carta escrita a Priestley, um certo Dr. S. L. Mitchell, da Universidade de Colúmbia, envidava “Uma Tentativa para Acomodar as Disputas dos Químicos a respeito do Flogisto”. Estava disposto a admitir como verdadeiro muito do que ensinava Lavoisier, porém não queria largar mão do flogisto. Mitchell terminava sua carta com certo humorismo: “É possível que estes meus esforços sejam vãos; ou, se eles fossem capazes de operar um acordo entre as partes, eu poderia repetir-vos em fim de contas as palavras de Prior em sua “Alma”:

 

"For Dictc if we could reconcile

old Aristotle with Gassendus,

How many would admire our toil!

And yet "how few would comprehend us."**

 

Em resposta a Mitchell, Priestley escreveu agradecendo “a engenhosa e bem-intencionada tentativa de promover a paz entre as atuais potências beligerantes da química. Mas receio que hajais laborado em vão. A meu ver, não há concerto possível entre os dois sistemas”. E Priestley, dentro do seu erro, tinha razão.

Voltemos a Lavoisier.

A opinião de Justus von Liebig, um dos vanguardeiros da química do século XIX e fundador da química industrial alemã, representa uma apreciação idônea e conscienciosa. “Ele”, diz Lebig, “não descobriu nenhum corpo novo, nenhuma propriedade nova, nenhum fenômeno natural até então ignorado. Todos os fatos que estabeleceu eram consequência necessária dos trabalhos de seus predecessores. O seu mérito, a sua glória imortal, consiste nisto: em haver infundido no corpo da ciência um novo espírito. Mas todos os membros desse corpo já existiam e estavam corretamente articulados." [Osório diz: todas as palavras já foram escritas e, praticamente, todas as ideais já postas, mas a literatura continua sendo inovada!]

 

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Lavoisier foi um desses homens raros que sabem associar os fatos em combinações novas. Além de rever e estender os conhecimentos de seu tempo, modificou-lhes os postulados - a base teórica. Por que? Porque possuía uma visão clara: “pensées de la jeunesse, exécutées par l'âge mûr(“pensamentos da juventude, executados pela meia-idade). Considere-se um fato simples, como a combustão ordinária. Lavoisier tratou-a de modo fundamente diverso de todos os seus predecessores. Sabia-se, desde séculos, que nenhuma lâmpada, nenhuma vela, nenhuma chama pode arder sem ar. Stahl não o ignorava; sabia, por exemplo, que a própria fuligem (tida por ele como sendo flogisto quase puro) não podia arder na ausência do ar. Stahl, que nunca deixara de afeiçoar os fatos pelos moldes de suas hipóteses dogmáticas, explicava isto com a suposição de que o flogisto não podia separar-se de uma substância a menos que tivesse um lugar qualquer para onde ir. Tanto ele como os seus sucessores consideravam o ar uma sorte de esponja que absorvia o flogisto. Uma vela posta dentro de um vaso fechado arde durante algum tempo, apagando-se ao cabo. Os flogisticistas explicavam isto dizendo que o ar (tal como uma esponja) só podia conter certa quantidade de flogisto. Uma vez saturado, nada mais podia arder dentro dele. Lavoisier mostrou que esta explicação era ridícula por não levar em consideração que o volume do ar diminui durante queima. O mesmo quanto à calcinação: o volume do ar diminui, e o aumento do metal é igual à quantidade de ar desaparecido.

Ao compararmos a obra de Lavoisier com as tentativas de seus predecessores, vemos avultar os seus feitos em solitária grandeza. Quando começou a fazer experimentos no laboratório, o conhecimento das leis da natureza era mesquinho e incompleto. Ao morrer, deixava à química um inapagável legado de precisão, que tem iluminado todo o reino da ciência moderna. Nenhum teorista, vivo ou morto, merece mais do que ele o nome de experimentador no sentido que lhe dava Cláudio Bernard quando dizia: “Para ser digno desse nome, o experimentador deve ser ao mesmo tempo um teorista e um prático”.

 

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Não menos grandiosa que sua teoria do oxigênio é a incomparável generalização de Lavoisier conhecida como a lei da conservação da matéria - um subsídio imperecível.

A ideia da conservação da matéria fora entretida vagamente pelos antigos filósofos gregos. Arguia Empédocles, por exemplo, que no universo não há criação, nem tão pouco destruição dos elementos básicos, mas apenas combinações e transformações. Introduzida a importância do peso na ciência que cultivavam, todos os químicos admitiram mais ou menos tacitamente que, no decurso de uma reação, a soma dos pesos dos reagentes era igual à soma dos pesos das substâncias resultantes. Em outras palavras, a-pesar-de que as substâncias primitivas aparentavam desaparecer, dando lugar a outras novas, o peso total permanecia o mesmo, em cada operação, do começo ao fim.

Lavoisier realizou experimentos escrupulosos para demonstrar a verdade do seguinte: (a) não há nada, no começo, que não tenha o seu equivalente exato no fim; (b) o peso é, na natureza, uma coisa imutável; (c) nenhuma matéria se perde, porquanto toda ela pode ser acompanhada em suas transformações, de que o peso dá conta. Com o argumento irretorquível da balança, demonstrou que toda reação química é expressável por meio de uma equação, e, sejam quais forem os processos químicos que alteram as substâncias reagentes, a quantidade total destas não muda.

Eis aqui como se formula o princípio: a matéria não pode ser criada nem destruída.

 

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Se houvera escapado ao patíbulo revolucionário, Lavoisier teria dado a solução de alguns problemas que assoberbavam a química dos seus dias. Projetara ele uma série de experimentos, com sua mulher por assistente, e que deviam estender o domínio do saber humano. Sua esperança, visionava um império sobre os agentes naturais, muito além do que sonhavam poetas e videntes. Contava cinquenta-e-um anos apenas, no viço do seu gênio científico, quando foi sacrificado pelos terroristas da Revolução.

Os chefes do proletariado revolucionário da França viram em Lavoisier, não o homem de ciência, mas o comissário da odiosa e detestada Ferme. Fizeram constar que ele fingia apenas de sábio. Não era porventura um rico, um homem que recebera duas heranças, que se casara com uma mulher rica e filha desse plutocrata influente, Jacques-Alexis Paulze? Não era ele quem tinha proposto a construção de uma muralha em derredor da cidade de Paris, afim de impedir o contrabando? Lavoisier orçara em um quinto a quantidade de mercadorias que entravam em Paris por vias ilegais. Sua ideia era, pois, judiciosa; mas a tentativa de murar Paris tornou-se logo impopular. O projeto foi interpretado como um plano da Ferme para aprisionar o povo francês dentro da sua capital, e, o que era ainda mais odioso, para roubar o ar puro à cidade! Para os revolucionários, Lavoisier era o indivíduo privilegiado, pertencente às camadas superiores da sociedade, o lacaio da nobreza irresponsável, membro da Academia (também governada pelo rei e por seus áulicos) e diretor das Fábricas de Pólvora - tudo isto por amor ao ganho.

Havia muito tempo que esse despeitado e sanguinário agitador das turbas parisienses, Jean-Paul Marat (1743-1793) observava Lavoisier com envenenada inveja. Marat escrevera em 1780 um tratado de química, destituído de mérito, que apresentara à Academia. Lavoisier formava parte da comissão que o rejeitara, a pesar de uma notícia falsa do Journal de Paris, que anunciava a aprovação do livro. Marat, que publicava agora um pasquim virulento, chamado L'ami du peuple, encanzinava-se brutalmente contra Lavoisier: “Denuncio-vos o corifeu dos charlatães, o sieur Lavoisier, filho de um açambarcador de terras, discípulo do especulador genebrino, fermier général, diretor das pólvoras e do salitre, governador do banco de descontos, secretário do Rei, membro da Academia das Ciências...” assim rezava o artigo de janeiro 1791. E ainda mais: crer que esse senhorzinho, que usufrui uma renda de 40.000 libras, e cujo título único à gratidão pública é o de haver aprisionado Paris vedando-lhe o ar puro, dentro de um muro que custou 33 milhões aos pobres, e o de ter mudado a pólvora do Arsenal para a Bastilha na noite de 12 para 13 de julho, haveis de crer que ele está enfronhado numa cabala para conseguir que o elejam administrador do departamento de Paris ?... Oxalá o tivessem pendurado de um poste público no dia 6 de Agosto”.

 

"Haveis de

 

Por decreto da Assembleia Nacional, de 20 de março de 1791, foi suprimida a Ferme. Pouco depois demitia-se Lavoisier do Arsenal, mudando-se para o n.º 243 do Boulevard de la Madeleine. Vivia em constante temor por sua existência, apesar de que estivera lançando mão de sua fortuna particular para conservar a Academia em pé. Nas revoluções, os fatos sucedem-se com rapidez. O rei foi guilhotinado em janeiro de 1793. A 17 de agosto eram interditadas as portas da Academia, e poucos dias depois dava-se busca à moradia de Lavoisier.

A supressão da Ferme não pusera fim aos seus infortúnios. Nem o seu renome de cientista, nem os serviços prestados ao Estado logravam fazer esquecer a certa classe de gente que ele fora um membro daquela execrada companhia de exatores. Havia muito tempo que se denunciava a Ferme como uma caverna de salteadores que despojavam o povo; agora, no referver da sublevação social, era chegada a hora da sevícia (em grande parte injustificada). Um discurso furioso, pronunciado na Convenção Nacional, açulou o povo contra a companhia. Ordenou-se a prisão de seus funcionários, chamados os Fermiers Généraux. O apelo de Laivoisier ao Comité du Salut Public não teve resposta e ele foi arrastado para a fria e apinhada prisão de Port-Libre, junto com os seus consócios da Ferme, inclusive o sogro, Paulze.

Lavoisier escreveu a Marie. Separava-os agora o braço cruel da Revolução. Ele aconselhava-lhe que poupasse suas forças, não se gastando em tentativas inúteis para lhe devolver a liberdade. Não obstante o desconforto da prisão, fazia-lhe saber que estava preparando suas memórias sobre química. Diversos apelos foram feitos para que soltassem Lavoisier, mas todos em vão. Podia-se, sem dúvida, fazer mais ainda em favor dele, mas os seus amigos, temendo por sua própria segurança, negaram-se a agir. Por fim, madame Lavoisier fez uma tentativa derradeira para salvar o marido do Tribunal Revolucionário, transgredindo a lei que vedava aos ex-nobres a entrada em Paris - mas embalde.

O decreto de 5 de maio de 1794 mandava que os Fermiers Généraux fossem conduzidos perante o Tribunal Revolucionário. Na manhã de 7 de maio esses homens foram submetidos à inútil formalidade do interrogatório, um espetáculo de sórdida hipocrisia. No dia seguinte, às dez horas, foram trazidos à presença do mesmo tribunal, presidido por Coffinhal. O júri, sem perda de tempo, declarou os réus culpados. Conta-se que Coffinhal disse nessa ocasião a Lavoisier: “La République n'a pas besoin de savants" (A República não precisa de sábios).

Os Fermiers Généraux foram decapitados numa guilhotina erguida na Praça da Revolução. Paulze foi o terceiro, Lavoisier o quarto. Morreram a 8 de março de 1794 e seus corpos foram jogados a covas anônimas, no cemitério de Errancis.

 

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Dois anos após a sua morte, os franceses revogaram a sentença de Coffinhal. É verdade que já não se podia restituir a vida ao corpo mutilado de Lavoisier, mas a nação procurou expiar solenemente o seu erro com uma impressionante cerimônia fúnebre. Pronunciaram-se em público orações em sua honra, e os amigos franceses e estrangeiros choraram-lhe a morte. “O maior crime da Revolução Francesa não foi a execução do rei, mas a de Lavoisier”.

Por ocasião de sua morte trágica, estava Lavoisier preparando uma edição de suas obras coligidas, com o auxílio de sua esposa e fiel colaboradora, tanto na esfera literária como na científica. Fora um casamento ditoso, comparável à felicidade fecunda desse outro grande teorista francês, Luís Pasteur, e sua companheira de trabalhos. Foram mulheres excepcionais, essas esposas de teoristas clássicos.

O justamente famoso Tratado Elementar de Química de Lavoisier, que aparecera cinco anos antes da sua execução, contém uma série de diagramas e ilustrações, desenhados e gravados pela bela e talentosa Marie. Esse casamento foi, na verdade, uma associação fora dos moldes habituais. Ficando viúva, ela dedicou-se a reunir sozinha os papéis do marido, e os deu à luz do público sob o título Mémoires de Chimie (1805).

Era um terno tributo ao morto.

 

Fonte: Arquitetos de ideias, Ernest R. Trattner, tradução de Leonel Vallandro, Globo, Porto Alegre, 1944, p. 96/116.

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* Este termo provém de uma palavra que quer dizer queimado.

** Ah! meu caro, se pudéssemos reconciliar o velho Aristóteles com Gassendi, quanta gente havia de admirar a nossa obra! Mas quão poucos nos iriam compreender!