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Verdades criadas a partir de mentiras

Escritor argentino questiona o significado de tomar a obra de outra pessoa e o de assumir uma identidade alheia

A verdade é movediça na ficção de Alberto Manguel - em Todos os Homens São Mentirosos (tradução de Josely Vianna Baptista), lançado agora pela Companhia das Letras, o misterioso suicídio de um escritor argentino é tema da reportagem, 30 anos depois, de um jornalista francês, que entrevista quatro pessoas e recolhe depoimentos contraditórios, ora elogiosos, ora depreciativos, sobre o ilustre defunto.

Entre equívocos e mentiras, Manguel constrói com maestria um romance que dá nova vida ao passado. Esse jogo de espelhos será um dos temas de sua conferência, no domingo, na Festa Literária Internacional de Pernambuco, a antiga Fliporto, que começa hoje em nova sede, Olinda (veja no quadro).

 

A ideia do livro surgiu há alguns anos, a partir de uma história verdadeira, ocorrida nas prisões de Cuba: dois escritores dissidentes estavam encarcerados quando um conseguiu escapar e fugir para Miami, onde publicou um livro logo incensado pela crítica. O drama começou quando o outro autor, que ainda estava preso, morreu e sua viúva publicou cartas provando que o famoso romance era, na verdade, de sua autoria e que o ex-colega de cela havia roubado a ideia.

Foi o ponto de partida para Manguel criar a figura de Alejandro Bevilacqua, misterioso autor de um único livro, El Elogio da la Mentira, comparável ao melhor Thomas Mann, mas cujo lançamento à sua revelia o leva ao suicídio em Madri, cidade que escolheu como exílio - na verdade, a polícia também considera acidente e assassinato como hipóteses prováveis.

Passados 30 anos, o assunto renasce com o interesse de um jornalista e o primeiro dos quatro narradores ouvidos por ele se chama justamente Alberto Manguel - um interessante jogo literário em que o verdadeiro Manguel cria uma espécie de alter ego.

Os depoimentos seguintes são de Andrea, uma amante de Bevilacqua, e de um ex-companheiro de prisão, ambos descrevendo o escritor de formas completamente distintas. O último depoimento é surpreendente, pois é o editor do finado autor que apresenta revelações inacessíveis aos vivos. Explica-se: ele também está morto e não traz comentários favoráveis ao prestígio literário de Bevilacqua.

O famoso suicida, aliás, apesar de despertar diferentes reações entre os narradores, revela-se um homem fascinante. "Bevilacqua tinha uma espécie de graça natural, uma elegância simples, uma presença anônima", descreve o primeiro depoente. "Magro e alto como era, movia-se lentamente, como uma girafa. Sua voz era ao mesmo tempo rouca e tranquilizadora."

Entre o humor e a angústia, cria-se um jogo de identidades que muito interessa a Manguel, autor de múltiplas vivências - nascido em Buenos Aires em 1948, viveu em Israel e Taiti até se mudar, nos anos 1980, para Toronto, onde se tornou cidadão canadense. Aprendeu a ler por volta dos 3 anos e nunca mais parou. Quando era adolescente, leu em voz alta, durante vários anos, para Jorge Luis Borges, que ficara cego.

Atualmente, vive em um presbitério construído no século 16, que comprou para instalar sua biblioteca de 50 mil livros, em um vilarejo medieval no Sul da França, de onde respondeu, por e-mail, as seguintes questões.

 A literatura utiliza mentiras para dizer a verdade?

Depende do que se entende por mentiras. A "mentira" contada por Homero ou Dante são, em termos de realidade humana, "verdades". A "verdade" de nossos informes de rádio e televisão e dos discursos políticos são, em geral, mentiras. Jean Cocteau dizia: "Sou uma mentira que diz a verdade."

O livro destaca a memória, independente de o personagem ser escritor ou não. Qual é, de fato, a importância da memória?

A memória é o instrumento com o qual valorizamos as criações da imaginação, e essa é o instrumento por meio do qual conhecemos o mundo. Imaginamos (ou transformamos criativamente) o que vemos e sentimos, e depois nos lembramos dessa imaginação como verdadeira. Assim, toda vez que nos lembramos de algo, recordamos a memória de uma memória. Ou seja, à medida que o tempo passa, construímos uma espécie de palimpsesto imaginativo: a isso chamamos experiência vivida ou realidade vivida.

O senhor é um leitor que escreve livros? Ou é mais leitor que escritor?

Sou leitor. Eu me converti em escritor por vaidade, impertinência, por desejo de aventura.

Uma das discussões atuais sustenta que o romance está esgotado, que se deveriam buscar novas formas, algo híbrido em que entram a autobiografia, a reflexão, o ensaio. O que o senhor pensa disso?

A ideia não é nova: Platão já descrevia a utilidade da ficção. E, no entanto, o romance sobrevive, desde a Epopeia de Gilgamesh até hoje. E esse híbrido que hoje dizemos buscar sempre existiu no romance: a autobiografia em Dante, a reflexão em Goethe, os ensaios em Machado de Assis.

O senhor já foi apontado como um escritor ligado à teoria e sempre interessado em repensar as fórmulas literárias. A noção de vanguarda ainda lhe diz alguma coisa?

Espero não ser conhecido assim. Nada me parece mais inútil que a teoria literária, pois repensar fórmulas é outra maneira de estabelecer outras fórmulas. Não, acredito na arte que, em inglês, é chamada de "craft" (ofício) e também na experiência literária julgada, enfim, pelo leitor. A noção de vanguarda implica acreditar que o mais novo é melhor que o antigo, que uma nulidade como Michel Houellebecq é melhor que Kafka... Não acredito no prestígio do novo.

Também se percebe nos seus livros, apesar do bom humor, uma dose de perplexidade e outra de indignação com os rumos da cultura contemporânea. O que se pode esperar da escrita no século 21?

Não sei o que esperar da cultura no século 21. Para início de conversa, tomara que continuemos vivos, o que não é nada seguro, graças ao ritmo que seguimos. Aceitamos a cultura da estupidez, do adestramento do consumo. Espero que tenhamos energia e coragem para nos rebelar, para evitar a desumanização. Mas, para isso, precisamos aceitar viver sob a tensão das dúvidas, das questões abertas. A literatura não resolve nada, apenas expõe nossos problemas fundamentais. Se pudermos atingir esse estado, talvez consigamos sobreviver.

O sentimento de pertencer a um mundo à parte faz bem ou mal aos escritores?

Depende do uso que o escritor faz desse sentimento. Clarice Lispector ou Moacyr Scliar sentem pertencer a um certo mundo e, a partir daí, criam um universo que nos incluem. Já Paulo Coelho, não.

O que perdemos quando passamos do livro em papel para o e-book?

Nada, porque não abandonamos o papel, apenas conquistamos a tela de computador. Ambos são instrumentos que devem conviver lado a lado em nossas bibliotecas.

TRECHO

"Não leve a mal meus comentários: Bevilacqua não era um desses mal-educados que sentam no sofá...

... e depois você não consegue desgrudá-los dali nem com benzina. Ao contrário. Era uma dessas pessoas que parecem incapazes da menor grosseria, e era essa mesma qualidade que tornava tão difícil pedir a ele que fosse embora. Bevilacqua tinha uma espécie de graça natural, uma elegância simples, uma presença anônima. Magro e alto como era, movia-se lentamente, como uma girafa. Sua voz era ao mesmo tempo rouca e tranquilizadora. Seus olhos túrgidos, latinos, eu diria, davam-lhe um ar sonolento e se fixavam na gente de tal maneira que era impossível olhar para outro lugar quando ele falava. E quando estendia seus dedos finos, amarelos de nicotina, para segurar a manga de seu interlocutor, era preciso deixar-se segurar, sabendo ser inútil qualquer resistência. Só na hora da despedida eu percebia que ele me fizera perder a tarde inteira.

Talvez uma das razões de Bevilacqua sentir-se tão à vontade na Espanha, principalmente naqueles anos ainda cinzentos, era que sua imaginação parecia estar sempre ligada não à realidade concreta, mas à aparente. Na Espanha, não sei se concorda comigo, tudo quer se render à evidência: em cada edifício se põe um letreiro, em cada monumento sua placa. Claro que os conhecedores autênticos sabem que uma cidade-aldeia como Madri é outra coisa, oculta, velada; que as placas são falsas e o que os turistas veem é apenas mise-en-scène. Mas por algum motivo estranho as sombras que seus olhos lhe revelavam tinham para ele uma virtude maior que a de sua memória ou a de seus sonhos, e embora ele tivesse sofrido, década após década, as falsificações da política e os embustes da imprensa em nossa terra natal, acreditava com uma fé surpreendente nas falsificações da imprensa e nos embustes da política de sua terra de adoção, argumentando que aquelas eram mentiras, e estes fatos verdadeiros."

Fonte: OESP, 12.11.10

Comentário do blogueiro: o trecho acima destacado prova a tese de Barbara Cassin sobre os Sofistas.