A trindade maléfica
por Delfim Netto
Três defeitos sempre acompanharam o capitalismo: a extrema pobreza, a desigualdade na distribuição de renda e a instabilidade dos ciclos econômicos
Em 1948, o curso de Introdução à Economia Política na FEA/USP era ministrado por um modesto, inteligente e bem preparado professor, o senhor Paul Hugon, que a Universidade de São Paulo havia importado da França. Suas aulas em franco-português davam ênfase não apenas à técnica (rudimentar na escola francesa), mas também ao ambiente econômico, dentro do qual a técnica operava: as suas instituições, a sua situação geográfica e, principalmente, a história de economia política, sobre a qual ele deixou um interessante livro. Um dos expedientes didáticos de Hugon era a tradução e entrega aos alunos de pequenos artigos ou capítulos de livros, reproduzidos num processo de “geléia” (então o mais moderno) numa cor lilás. Ele sugeria nas aulas o caráter científico da Economia Política e a superioridade da organização da economia utilizando o mercado e o sistema capitalista, conceitos que ele distinguia.
O primeiro era quase natural, nascido da propensão do homem a trocar. Essa era conseqüência da capacidade de raciocinar e de se comunicar do homem, que tornava possível as trocas. Nunca se registraram, como dizia, cachorros trocando ossos. O segundo, que também tinha a vantagem de não ter sido inventado por nenhum cérebro peregrino, dependia de um Estado forte, moderado nos seus tributos (ele deixou um livro sobre os impostos) e capaz de garantir a propriedade privada e o cumprimento dos contratos.
Para controlar o nosso encantamento sobre as virtudes e as vantagens da organização capitalista da sociedade, ele entregou e discutiu a tradução do capítulo II de um pequeno mas importante livro publicado em 1939, por Geoffrey Crowther: Economia para Democratas. Significativamente, o capítulo intitulava-se A Trindade Maléfica e explorava os três defeitos que desde sempre acompanharam o capitalismo. 1. A sua convivência com a extrema pobreza. 2. A permanência de extremas desigualdades na distribuição da renda. 3. A sua tendência a produzir flutuações no nível de atividade, acompanhadas por flutuações no emprego.
Foi a trindade maléfica que estimulou o pensamento socialista (inclusive o marxista) no século XIX e levou, com seu dogmatismo, à experiência soviética com a centralização absoluta das decisões econômicas para construir, sem nenhuma consideração com o custo humano, o que se supunha ser a racionalidade. Ela terminou, 70 anos depois, da forma que sabemos. Foi esse espantoso choque de realismo que transformou a esquerda, de uma ideologia progressista, em portadora do atraso. Mas a verdade é que as questões colocadas pela esquerda e pelos críticos internos do capitalismo sobreviveram: a exclusão, a desigualdade excessiva e o mal do desemprego continuam a nos perseguir. Elas insistem em exigir respostas adequadas, sob pena de produzir novas aventuras políticas, que, além de não as resolverem, destroem a eficácia produtiva do capitalismo.
No fundo, trata-se de adaptar o funcionamento do capitalismo a uma certa justiça distributiva, para corrigir (com políticas sociais inteligentes) a extrema pobreza e a escandalosa desigualdade. E também reduzir as flutuações do nível de atividade e do emprego (com políticas econômicas adequadas). O problema da justiça distributiva, que vem desde Aristóteles, tem dois enfoques. O mais antigo entendia a pobreza como destino (ou preguiça), cuja solução estava nas mãos da benevolência privada, a caridade. Até hoje, essa ótica domina o pensamento de alguns dos nossos melhores neoliberais. O mais moderno vem desde a Revolução Francesa: o Estado deve garantir um mínimo de subsistência para todos, não como um dever de caridade, mas como um direito do cidadão (que é o que afirma a nossa Constituição).
Talvez tenha sido a vitória dessa última tendência que impulsionou o enorme avanço do pensamento liberal sobre os velhos problemas levantados pela esquerda: a inclusão, a redução das desigualdades e a busca de uma sociedade justa. Muitos economistas crêem ser o último conceito um nonsense, resultado de um resíduo antropomórfico introduzido num processo natural (o econômico), que quer modificar um resultado natural (a situação atual), uma coisa parecida com revogar a lei da gravidade.
A absorção dos velhos problemas colocados pela esquerda foi tão completa, que quase todos os países têm hoje estratégias de inclusão social (EIS). Os organismos internacionais (Banco Mundial, FMI, ONU, entre outros) estimulam agora programas de redução da pobreza (PRP). Positivamente, a classificação esquerda e direita perdeu muito do seu significado e encanto.
Fonte: Revista Carta Capital nº 434, p. 27.
Osório diz: este artigo é muito bom! Todos deveríamos conhecer o seu teor, pois, além de didático, sutilmente, põe o dedo na ferida.
Crises? SEMPRE existirão, pois elas são irmãs siamesas do kapitalismo.
Potanto, crise não é desculpa para fazer ou deixar de fazer qualquer coisa.