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10.4 – Sofística e dialética - diferenças, para Aristóteles.

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

10.4 – Sofística e dialética - diferenças, para Aristóteles.

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

Eis, creio, a argumentação. Partamos, já que ela apresenta menos problema, da relação entre dialética e sofística. A dialética trata "do raciocínio e do raciocínio aparente" (syllogismón te kal phainómenon syllogismón, 16s.): o início dos Tópicos explica como o raciocínio aparente é, ora uma simples aparência de raciocínio (ele é então, para retomar a classificação de J. Bruschwig, "formalmente erístico"), ora um raciocínio efetivo, mas que parte de premissas apenas aparentes, neste caso apenas aparentemente endoxais (ele é então "materialmente erístico") ("são erísticos dos raciocínios que partem de premissas que parecem prováveis quando não o são, ou os raciocínios que parecem somente sê-lo", segundo Tricot). Ora, uma das tarefas que Aristóteles atribui à dialética é precisamente a de fazer a distinção entre o raciocínio aparente — que ela remete à sofística e à erística e da qual trata, por exemplo, nas [p. 119] Refutações sofísticas — e o simples raciocínio: ela é "peirástica", põe à prova. A dialética só trata então do phainómenon, na medida em que se encarrega de diferenciá-lo, como "apenas aparente", do realmente concludente e do realmente endoxal. Dito de outro modo, para ser dialético é necessário ter competência, mas não intenção: a dialética se encarrega disso, uma vez que, crítica, ela só poderia ter, por definição, boas intenções. Ao contrário, a sofística trata do phainómenon, mas só trata dele, preocupada não em distingui-lo, mas em confundi-lo com o real; é aliás por isso que ela mesma é constantemente qualificada de phainoméne (Soph. El, l, 165a 21; 11, 171b 28s.; ver infra). Quando se consideram as coisas do ponto de vista da dialética, o que caracteriza o sofista é sua "intenção": a intenção de fazer se enganar, enquanto que o que caracteriza o dialético é seu "poder": mesmo se num sentido sofista e dialético (e aliás orador) têm o mesmo poder de encontrar argumentos contrários e de tratar do phainómenon; em um outro, apenas o dialético tem um poder crítico, o poder de impedir que nos enganemos. Ou ainda, pode-se bem tomar um sofista por um dialético, mas um dialético enquanto tal não pode ser ao mesmo tempo um sofista.

Mas a diferença entre retórica e sofística é, basta Platão para atestar isso, mais difícil de ser determinada. Pois a retórica não se preocupa antes de tudo com o concludente, mas com o persuasivo. E, olhando mais de perto, a simetria é falsa: "aparentemente persuasivo" não tem verdadeiramente o mesmo sentido que "aparentemente concludente". De fato, o aparentemente concludente é em realidade não-concludente, ao passo que o aparentemente persuasivo permanece persuasivo enquanto persuadir. A diferença deve-se à própria natureza do persuasivo, que é sempre "persuasivo [p. 120] para alguém" (Ret., I, 2, 1356b 28) 22, como à definição da retórica, que não deve fazer a distinção entre o verdadeiro e o aparente, mas apenas buscar, em todos os casos, os meios de persuadir. Por falta de capacidade crítica, não há intenção não enganadora implicada pela, ou coextensiva à, retórica. É precisamente por isso que, dessa vez, pode-se ser simultaneamente orador e sofista. É o que confirma o estudo, no fim do livro II, dos "entimemas aparentes" (cap. 24, l00b 38, 1401a 41): eles existem certamente ao lado dos simples entimemas, exatamente como os silogismos aparentes ao lado dos silogismos. São suscetíveis de uma classificação em lugares análoga, ao menos parcialmente, àquela que propõe as Refutações sofísticas. Mas a diferença de estatuto manifesta-se na conclusão, com a lembrança da techné de Córax e da pretensão ostentada por Protágoras: duas proposições contraditórias parecem em conjunto verossímeis, ou inverossímeis; assim, que um raquítico seja culpado de sevícias é inverossímil, mas que um homem forte o seja, também é inverossímil porque já é sempre verossímil que nós o creiamos culpado; de modo que a inocência é verossímil nos dois casos: simplesmente verossímil, ou verossímil por sua própria inverossimilhança.

E é isso que é tornar mais forte o argumento mais fraco. Sendo assim, os homens, em toda a justiça, tinham dificuldade em suportar a proclamação de Protágoras; pois é falsa, e um verossímil que não é verdadeiro mas aparente, e não se encontra em nenhuma outra arte a não ser na retórica e na erística (1402a 24-28).

22. Acrescentemos que o "para alguém" não significa "para cada indivíduo" (to kath'hékaston, Sócrates, Cálias), mas "para cada gênero de pessoas" (íò toioísde), o que confirma ao mesmo tempo a proximidade com a dialética, e a cientificidade da técnica retórica (Retórica, I, 2, 1356b 28-35);

Para poder fazer a distinção que falta do ponto de vista da competência entre o orador e o sofista, é preciso definir o orador não somente por sua "ciência" — compreendo: a técnica retórica considerada do ponto de vista de seu desdobramento causal (thebreín to pithanón, 2, 1355b 32) —, mas também por sua "intenção", a intenção de perfazer o triunfo natural do verdadeiro e do justo pela técnica, e de ajudar a julgar (hai kríseis) como convém, a separar o aparente do verdadeiro (l, 1355a 21-23; cf. 14-17 e 36-38): "do ponto de vista da retórica seremos oradores ora por nossa competência científica, ora por nossa [p. 121] intenção". É somente quando se apela para a intenção, quando se acrescenta alguma coisa como uma vontade crítica que não pode entrar nos requisitos da techné rhetoriké enquanto tal, mas depende já, parece-me, de uma exigência meta-retórica que se pode distinguir, pela boa e a má intenção, o orador do sofista. O fato de que só se possa tratar de um suplemento, desmentido pelos próprios princípios que fundam a competência, faz efetivamente da retórica uma disciplina menos moral, quer dizer, menos confiável ontologicamente, do que a dialética.

Assim, a retórica brota, por assim dizer, do enxerto ético. Mas ela não poderia ser podada, pois traz frutos tão específicos quanto indispensáveis. Para fazer face ao perigo sofístico, Aristóteles pode somente, no subterfúgio de uma frase, lhe fazer, precisamente, esse enxerto de ética 23.” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 119 a 121).

 

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