Sofística
(uma biografia do conhecimento)
22 – Aristóteles: um “quase” sofista.
Nos diz Guthrie sobre Aristóteles:
“Nasceu na Macedônia.
Aristóteles (…) sua fé na teleologia. (...) "a natureza nada faz sem propósito" (De caelo 291b 13, De an 432b21 etc. ).84 (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 200).
“O idealismo de Platão ocupou o dia, e, uma vez que ele próprio quisera suprimir o ensino de seus oponentes, seus seguidores propriamente o suprimiram; ou pelo menos, como filosofias contrárias se entrincheiraram, ninguém viu razão para preservar o que se considerava geralmente ideias não-ortodoxas e censuráveis. Assim ocorreu, para citar Havelock (L. T. 18), que "a história da teoria política grega, assim como também da política grega, escrita nos tempos modernos exatamente como Platão e Aristóteles teriam querido que fosse escrita".
Ademais, uma vez que muito de suas obras era educacional, do tipo do manual, ficaria naturalmente incorporado nos manuais de mestres posteriores, inclusive Aristóteles, que se poderia dizer que tomou o seu lugar. Aristóteles, além de escrever sua própria Arte da Retórica, compilou um sumário das "artes" anteriores, desde sua origem em Tísias em diante, do qual Cícero escreveu que não só ele explicou lucidamente os preceitos de cada mestre, mas também superou os (p. 53) originais em brevidade e estilo atraente, de sorte que mais ninguém os consultou, preferindo ler Aristóteles como expositor muito mais prático de seu ensino.
Mas, e quanto a Aristóteles, também se deve advertir contra falar de "Platão e Aristóteles" de um só fôlego, 60 como se sua oposição ao empirismo sofístico fosse igual e idêntico. Nos assuntos em que os sofistas estavam primariamente interessados, o ponto de vista de Aristóteles estava de muitas formas mais próximo ao deles que o de Platão.
Pois ele fez distinção explícita entre os fins, e em consequência entre os métodos, da pesquisa científica de um lado e a inquirição dos problemas do comportamento humano de outro. Nos primeiros, deve-se exigir os mais exatos padrões de exatidão, mas estes seriam inadequados para o estudo do material humano, que é empreendido não para fins teóricos mas práticos.
Na Ética ele faz a observação muitas vezes, talvez mais convincentemente ao afirmar que exigir prova lógica estrita de um orador não é mais ajuizado que permitir a um matemático usar das artes de persuasão. [(o carpinteiro não busca a mesma exatidão que o geômetra) (1098a26ss ).]
No campo da ética, o abandono das normas ou modelos morais absolutos e autoexistentes de Platão tinha consequências de longo alcance, pois tornava possível um divórcio entre teoria e prática, conhecimento e ação, que para Platão teria sido impensável. Aristóteles pode escrever (1103b27): "O objeto de nossa inquirição não é saber o que é virtude, mas nos tornar homens bons", ao passo que no modo de ver socrático-platônico "saber o que é virtude" é essencial pré-requisito para se tornar bom. Ele prefere claramente o método de Górgias de enumerar virtudes separadas à exigência socrática de uma definição geral de virtude, que ele chama de autodecepção (p. 54) (Pol. 126a25), e no primeiro livro da Ética, que contém um de seus ataques mais argumentados e eficazes à teoria platônica das formas, encontramos uma defesa da relatividade e multiplicidade de bens quase poderia ter sido escrita por Protágoras. [A brevidade das observações acima pode expó-las à acusação de supersimplificação. Enquanto Aristóteles cria na relatividade da bondade, era apenas no primeiro dos dois sentidos enumerados à p. 157, abaixo, e ele era bastante socrático para combiná-lo com uma crença numa só função do homem como tal, resultando de nossa natureza humana comum e dominando as diversas funções subordinadas de indivíduos e classes. Este e pontos correlates são bem expostos no artigo de Lloyd sobre analogias biológicas de Aristóteles em Phronesis, 1968, em que, porém, fica-se cônscio todo o tempo de figura influente que está no fundo embora nunca mencionada: Protágoras.” [Osório diz: Aristóteles, aí, é totalmente protagórico].] (p. 55) (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 54-55)
Kerferd ensina:
“Cícero, no Brutus (46-47), nos presta mais informações valiosas que extraiu de uma obra perdida de Aristóteles, provavelmente sua coleção de antigos manuais de retórica conhecidos como a Technôn Synagogê:
Protágoras preparava discussões escritas de assuntos importantes, agora chamados lugares-comuns (loci communes). Górgias fazia o mesmo, compondo elogios e invectivas contra determinadas coisas, porque considerava que era especialmente função do orador ser capaz de aumentar o mérito pelo louvor e diminuí-lo de novo pela invectiva. Antífon de Ramnonte tinha composições semelhantes escritas por extenso. [Osório diz: o uso da escrita pelos sofistas!] [Osório diz: foram os sofistas os criadores dos lugares-comuns, e não Aristóteles, como diz o Prof. Tercio]
Não há por que duvidar de que sejam lugares-comuns desse tipo que os alunos de Górgias eram obrigados a apren- [56] der de cor (DK 82B14), em vez de discursos inteiros como às vezes se afirma, e é de se supor que seriam, depois, desenvolvidos em exercícios práticos sob a supervisão do mestre [Osório diz: os lugares comuns].
Isso a que Cícero se refere, em latim, como locus é, em grego, o topos ou "lugar"; no seu sentido mais geral é provável que originalmente significasse a posição ou ponto de vista a partir do qual se ataca o oponente ou se defende a própria tese. Outros, contudo, restringem-no a designar simplesmente o lugar onde o orador encontra um argumento necessário. Aristóteles, no seu tratado Tópicos, apresenta uma espécie de cartilha de dialética, mostrando como se pode defender uma tese tomando como pontos de partida premissas apropriadas que já eram geralmente aceitas [Osório diz: Aristóteles sofista!]. Tópicos são, para ele, linhas de argumento, tais como argumentos tirados dos contrários, argumentos tirados de definições e argumentos tirados de enganos. Sua abordagem é formal, e seus tópicos não são os mesmos que os loci communes a que se refere Cícero. Mas a conclusão do Sophistic Elenchi mostra que ele estava bem consciente da existência deles também, e seu Retórica II, 23 dá exemplos, tais como a citação de Eurípides, do Tiestes: "Se os homens têm o hábito de dar crédito a afirmações falsas, deve-se também crer no contrário, que os homens muitas vezes descrêem do que é verdadeiro". (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 56-57).
Aristóteles sofista!
Quem diz é Barbara Cassin:
“Ao final dessas análises, não é difícil constatar tudo o que o Aristóteles político, antiplatônico, deve à sofística.
O primeiro traço, que pode parecer (voltaremos a isso com Hannah Arendt) o mais grosseiro, mas sobre cuja interpretação se impõe a maior prudência, é a importância do lógos em política. O lógos é, para um sofista, a virtude política por excelência. Ora, Aristóteles apresenta, desde o início de sua Política, duas definições do homem: o homem como "animal de cidade", ou "animal político", e o homem como "animal dotado de logos” (I, 2, 1253a 7-l0). É porque o homem é capaz, não apenas de sons vocais expressivos, mas de lógos, quer dizer, ao mesmo tempo de efeitos convencionais, ou palavras, e de articulação sintática, ou julgamentos, que ele é "mais político" que os outros animais políticos. Todavia o emprego do lógos na Política faz dele menos uma téchcé, uma competência retórica, do que um télos, a finalidade mesma de nossa natureza (VII, 15, 1334bl5)17. Dito de outro modo, uma retórica de tipo sofístico — a mesma que sabe infletir [Osório diz: dobrar, curvar] a decisão dos juízes e as escolhas da assembleia ou, através do elogio, criar valores comuns — tem como objetivo político em Aristóteles nos tornar lógicos in actu; ela deve fazer com que antes de tudo cada um de nós, mediante noutética [Osório diz: por em mente, admoestar, exorar] e educação, possa se tornar aquilo que é, orientado para e por lógos e noûs, algo, para dizer a verdade, que se aproxima de um governante platônico: na medida em que vivemos em uma cidade, somos todos filósofos, ao menos em potência.
O segundo traço comum é a percepção imediata, "física", do homem como cidadão, e da cidade, qualquer que seja sua constituição, como pluralidade, quer dizer, pluralidade de dessemelhantes.
O terceiro traço ligado a isso é a apreensão da homónoia, ao menos num tal plêthos [Osório diz: pluralidade], como puro efeito de uma stásis [Osório diz: discórdia interior, sedição] contínua.
Em Aristóteles, qualquer que seja a complexidade da articulação entre política e ética, parece-me que se pode em todo caso reconhecer nesses dois últimos traços uma certa especificidade do político. A ela corresponde, assim como testemunha o início da Ética a Nicômaco, uma autonomia, até mesmo uma [p. 95]
Assim sendo, proporia dois critérios que permitissem diferenciar dois modelos de consenso. O primeiro diz respeito à autonomia relativa do político: será esse um domínio que tem seu fundamento, sua razão de ser, em outro lugar que não nele mesmo, na ética por exemplo como em Platão, ou será antes uma potencialidade por si só, arquitetônica se quisermos, como na sofística e em Aristóteles? O segundo diz respeito à autonomia relativa do indivíduo em relação ao todo: trata-se de uma subordinação hierárquica onde a singularidade não é jamais considerada como tal, jamais relacionada a ela mesma, ou antes é um livre jogo de diferenças, uma articulação da concorrência?” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 95-96).