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24.4 – Platão e suas distorções.

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

24.4 – Platão e suas distorções.

 

Afirma Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

Grote foi, sem dúvida, o primeiro a suspeitar que o Trasímaco do Livro I de A República não se coadunava com o Trasímaco histórico. Apoia-se no fato de que a exaltação da violência que Trasímaco opõe exaltadamente às teses de Sócrates não teria sido aceite por um auditório ateniense; também o elogio da tirania que pronuncia teria fortemente chocado a opinião pública da democrática Atenas e não teria sido tolerado.

A Sofística consiste, na verdade, em viver dominando os outros em vez de os servir, como queria a lei”. (Leis, 890a). Encontramos, portanto, nas análises de Platão uma sistematicidade que fazem dos textos do Górgias e de República I uma demonstração anti-sofística e não um testemunho histórico [Osório diz: excelente observação].

O testemunho de República I não deve, no entanto, rejeitar-se em bloco; o que é necessário tentar determinar é o momento em que intervém exatamente a distorção platônica. Temos, felizmente, um fragmento de Trasímaco sobre a justiça que não é tirado de A República, mas de um discurso do sofista, em que diz isto: “os deuses não olham para as coisas humanas; com efeito, não deixariam de se preocupar pelo maior dos bens entre os homens – a justiça. Ora, vemos que os homens não a praticam[Osório diz: esse fragmento é um milagre!]. Trasímaco verifica, não sem profunda amargura, que o mundo, como vai, está abandonado por Deus e que a justiça não reina como soberana na realidade de todos os dias. Já antes de Sade, verificou as infelicidades da virtude e as prosperidades do vício e sente-se o eco do seu próprio desânimo numa passagem de A República: “Ó ingênuo Sócrates, não tens mais do que ver que o homem justo fica em todo o lado em desvantagem relativamente ao injusto”. Mas Trasímaco vai mais longe ainda, e é isto que provoca o sobressalto de Platão. Dedica-se, como Antífon, como Lícofron, como Alcidamas, a uma acerba crítica do nomos, a uma verdadeira desmitificação da lei que, longe de servir de muralha contra a injustiça, como se julga, se encontra contaminada por ela e pervertida; a lei é instrumento do poder e não o enunciado racional que pretende ser. É por isso que é sempre, de fato, partidária e não respeita a neutralidade que a justiça exigiria no sentido não político do termo, que se opõe à justiça legalista [Osório diz: para que serve e a quem serve a lei] que Trasímaco define assim:

Todo o governo estabelece sempre as leis no seu próprio interesse, a democracia, as leis democráticas; a monarquia, leis monárquicas e os outros regimes a mesma coisa; depois, feitas estas leis, proclamam como justo para os governados o que é o seu próprio interesse e, se alguém as transgride, castigam-no como violador da lei e da justiça. Eis, meu excelente amigo, o que pretendo dizer sobre a justiça uniforme em todos os estados: é o interesse do governo constituído. Ora, é este poder que tem a força; donde se segue para todo o homem que sabe raciocinar que por todo o lado é a mesma coisa que é justa, quero dizer, o interesse do mais forte.” [Osório diz: para que serve e a quem serve a lei].

A lei tornou-se a expressão da própria injustiça porque é violência feita ao indivíduo e instrumento da vontade de poder dos homens no poder; ela já não pode ser o que era outrora, a garante da moralidade. A consciência atormentada de Trasímaco ataca a boa consciência que sempre legitima os regimes em presença; o sofista dá a sua palavra ao espírito do tempo num período de crise profunda e de desânimo. Trasímaco procura a justiça e não depara senão com a justificação, isto é, o esforço por legitimar, já tarde, um poder de fato, em síntese, para transformar uma força em direito [Osório diz: o esforço por legitimar!]. Os poderes estabelecidos produzem não normas, mas normalizações, o aparelho dos códigos e leis encobre interesses particulares camuflados com o interesse geral. A forma da justiça que o pensamento crítico de Trasímaco quer atingir é a justificação.

Estamos já em condições de dizer onde intervém exatamente a distorção platônica ou, como escreve E. L. Harrison a “manipulação” de Trasímaco na República I. Trasímaco denuncia um estado de fato, de que a amargura dos seus juízos prova bem que ele não se alegra, e Platão finge acreditar que transforma este fato em direito, e se faz campeão do direito do mais forte, até fazer a apologia da tirania. Ora, não possuímos o menor fragmento de Trasímaco em que este justifique a força; temos, pelo contrário, um fragmento em que este trata com um grande desprezo o tirano da Macedônia, Arquelau: “Nós, Gregos, serviremos de escravos a Arquelau um bárbaro?” Platão acaba por fazer de Trasímaco o justificador da justificação, quando este foi precisamente o denunciador apaixonado. Trasímaco desespera da política; a oposição de Platão não tem talvez outra fonte, já que toda a sua obra é um credo a favor de uma solução política da crítica ateniense, solução de que A República precisamente constitui a carta. Para ele, a justiça pode triunfar mesmo ao nível do fato e mostrar-se mais forte do que a injustiça; ela é uma necessidade do mundo, e a sua eficácia prática deve ser reconhecida pelo próprio homem injusto, como o demonstra Sócrates com um argumento célebre: “Julgas que um Estado, um exército, um grupo de salteadores, de ladrões, ou qualquer mau intento poderiam ter um mínimo de êxito, se violassem entre si as regras da Justiça?” [Osório diz: o que essa afirmativa prova é que o ladrão também é justo, já que obedece as regras de justiça do seu grupo ou entre o seu grupo, como demonstra a “justiça entre si”! Ademais, se todos, inclusive os ladrões, obedecem a justiça (mesmo entre si), por que lutar pela obediência de todos à justiça? Contradição total!] Não há que desesperar do nomos que pode ser bom, já que é obra da razão [Osório diz: como se a razão somente produzisse o bem! O que desmente, também, a afirmativa socrática de que o homem somente faz o mal pensando que faz o bem! O homem é mais safado que a própria safadeza]. Platão identifica ética e política [Osório diz: como Parmênides identificava dizer e ser. (Parmênides não pode servir à tese de Protágoras/Antístenes? Nunca há contradição)]; quer fazer política ética e uma ética política. Pelo contrário, Trasímaco foi, sem dúvida, um dos primeiros a opor tão nitidamente a ética à política e a dissociá-las; aqui está a origem do seu descontentamento e também da sua atualidade. Trasímaco terá encontrado, como Antífon e Hípias, na natureza a norma universal capaz de ultrapassar as leis partidárias das inumeráveis e minúsculas Cidades-Estados da Grécia antiga? Não possuímos nenhum fragmento seu que vá neste sentido. Trasímaco descobriu o lugar em que a ética se poderá conservar quando desertar da cidade? Quando o campo do político se encontra inteiramente dominado pela imoralidade, a justiça conserva efetivamente um refúgio: a consciência do indivíduo; esta consciência deve poder definir-se como interioridade ética e constituir o abrigo do valor injuriado. Se os Sofistas são os descobridores do indivíduo e dos seus direitos, chegaram – com Trasímaco – a defini-lo como interioridade ética? Sem dúvida que não, porque se o lado negativo do pensamento de Trasímaco, a crítica da lei política, estivesse aliado a um lado positivo, a interpretação platônica do seu pensamento não teria sido possível. Trasímaco ficou sem dúvida no momento do divórcio entre a ética e a política; o pensamento da interioridade não estava maduro, daí o seu pessimismo, o seu desespero. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 72-75).

 

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