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45.14 – O mito de Prometeu, por Protágoras.

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

45.14 – O mito de Prometeu, por Protágoras.

 

O mito, propriamente dito, se estende de 320c8 a 322d5. É seguido por uma passagem explanatória, 322d5-323a4, e esta, por sua vez, é seguida pelo que parece ser uma série de argumentos independentes até 324dl. Aí Protágoras diz que ainda resta uma dificuldade (a dos filhos de homens bons). "A respeito deste ponto, Sócrates, não lhe relatarei um mito, mas um logos." Esta sentença deixa claro duas coisas: o logos só começa aqui, e não antes, em 323a4, e, em certo sentido, considera-se que a discussão do mito continua até este ponto, 324dl. Como o mito propriamente dito claramente termina em 322d5, isso só pode significar que a seção toda 322d5-324dl é considerada uma explanação e aplicação do mito. Então a última sentença da seção, 324c5-dl, deve ser considerada um resumo do conteúdo do mito.

[...]

A interpretação ortodoxa dessa passagem toca as raias do despropositado ao querer argumentar que a expressão "em virtude de seu parentesco com deus" deveria ser excluída do texto por ser inconsistente com o agnosticismo declarado de Protágoras, ou que, se for mantida, é testemunho de que o mito é obra de Platão e não de Protágoras. Mas o mito, como um todo, está construído em torno das atividades de Zeus, Prometeu e Epimeteu, e o fato de ser um mito despoja-o de qualquer possível conflito com o agnosticismo de Protágoras. A distribuição divina, ou Moira, na qual o homem veio a participar, não é tanto a dádiva do fogo, embora esta esteja incluída, quanto a sabedoria (Sofia), que sempre foi associada ao divino; e o parentesco com os deuses é provavelmente algo que resulta da participação do homem na sabedoria divina. De fato, o mito todo, tanto aqui como alhures, apresenta nada mais do que uma espécie de projeção ou reflexão, no nível divino, das forças identificáveis que operam entre os seres humanos neste mundo5. Exatamente o mesmo se aplica no caso da concessão de aidós e dikê, que forma o estágio seguinte no mito — o dom deles representa a aquisição, através do estudo, daquelas qualidades, nos seres humanos, que são a condição para a manutenção de sociedades humanas ordenadas6. Isso significa que sua preocupação com a religião não era, primeiramente, para conduzir uma polêmica contra as ideias tradicionais dos deuses, mas, antes, para tratar a religião como um fenômeno humano positivo com a valiosa função de atuar nas sociedades. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 227 e 285-286).

 

O mito de Prometeu é harmonizado, segundo Barbara Cassin, por Antifonte. Diz a francesa:

 

Para retomar agora a partir da ideia de que há um único Ântifon, pode-se tentar, brevemente, caracterizar a unidade de sua pessoa e de sua obra? Antes de mais nada, a proximidade da retórica e da sofística é um lugar comum desde o julgamento de Platão (no Górgias, por exemplo) até o de H. Gomperz (Sophistik und Rhetorik), passando pela definição filostrateana da antiga sofística como "retórica filosofante" (V. S., I, 480). Com a sofística, é assim o lógos que precede o ser, o ser torna-se um efeito de dizer13. Ântifon, diz-nos Tucídides, é extremamente hábil em promover a convicção: seu trabalho de orador, como de sofista, como de homem político, consiste em produzir a homónoia, o "consenso" ou a "concórdia", identidade de sentimento e de ideia entre si e si mesmo e em uma mesma casa, mas 'sobretudo entre os homens de uma mesma cidade e entre as próprias cidades (B44 a D.K.). Essa identidade só pode surgir a partir das opiniões existentes, quer harmonizemos suas singularidades, quer as transformemos para produzir uma nova opinião comum. A identidade não é mais então o princípio de igualdade a si mesmo, de unidade e de unicidade intemporal colocado pelo eleatismo ("o ser é, o não-ser não é" e "o que é, é o um") e pela física jônica ("tudo é água" diz Tales, "tudo é um"); ela deve, ao contrário, ser conquistada sem cessar, ser construída em toda precariedade por meio dos discursos. A cidade, efeito da homónoia, torna-se o substituto temporal e finito do ser ou da natureza na grande tradição ontológica: todo homem desde o início "cidadaniza", não transgredindo nenhuma lei de sua cidade (Sobre a verdade, A, 1). A "natureza" de que fala em seguida o papiro é sempre, conseqüentemente, apenas segunda, escapada do secreto, do privado, para o império da lei pública: é reencontrada quando se sabe "servir-se utilmente" da justiça para si mesmo, quer dizer, quando se chega a escapar à lei, não somente como culpado mas mesmo como vítima, já que a lei não poderia prevenir o primeiro erro: ou como testemunha, já que é se engajar na série dos erros e das reparações (A, V, VI). Uma das noções centrais que atravessa o conjunto das obras de Ântifon é, assim, a do "uso": boa prática da justiça (A, I, 12), mas também das riquezas (Sobre a concórdia, B54, 12-14), dos fatos, de todos os traços de identidade que se trata de recolocar em jogo sem cessar (Discursos, Tetralogias). Notemos que, mesmo nos Discursos, que puderam parecer o bastião de um Ântifon não sofista, reencontramos esses temas principais que são a oposição privado/público, escondido/em presença das testemunhas (Sobre o Coreuta, 9, Gernet, p. 145; Acusação de envenenamento, 23, p. 45), a potência do discurso, a preocupação em convencer, a relação à opinião ao verossímil e ao consenso (Sobre o Coreuta, 31, pp, 154-156: Sobre o assassinato de Herodes, 1-7, p. 88ss.).

(...)

Mediante isso, a primeira sofística produz pelo lógos “a força do fraco” (para retomar a expressão de J. F. Lyotard): a cidade democrática que só existe pela criação contínua da homónoia cara a Ântifon. É a lição do mito de Protágoras, com a condição de acrescentar ao lógos que faz parte das artes pro meteicas, a sabedoria e a justiça que são um dom suplementar de Zeus. E a segunda produz, como testemunha a retomada do mito por Élio Aristides e a série de decalagens muito sutis que ele aí introduz (Ret., II, 394-402), não a partilha do lógos e o nivelamento, graças a ele, do forte e do fraco, mas uma mestria de professor, que se apresenta como o modelo e a condição da dominação política. Pois dessa vez o lógos por si só constitui o dom direto de Zeus, que Prometeu o filantropo pede que Hermes não reparta entre todos, como as bases do teórico, ou os olhos as mãos e os pés, os "órgãos" pois. É antes necessário selecionar "os melhores, os mais bem nascidos, aqueles que têm a mais forte natureza" para lhes confiar o dom retórico, a fim de que eles tenham como salvar os outros. O lógos assim repartido torna-se para a comunidade não um phármakon, mas um phylakterion um amuleto, um escudo, ou, segundo a etimologia, “o guardião que não dorme jamais". Os melhores retores são assim, hierarquicamente, os melhores professores e os verdadeiros chefes políticos, em um amálgama que mascara, não sem ideologia, a privação de toda eficácia política direta, concreta: é assim que na escola, com as melétai, faz-se, segundo as palavras de Vidal Naquet, "ficção-política".” [O que é phylakterion?]. (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 142-144 e 267-268).

 

Guthrie explica como Protágoras fez uso dos deuses no mito de Prometeu:

 

Esta nos adverte plenamente que a introdução dos deuses não se deve levar a sério, mas pode-se eliminar como adorno ao relato. Platão sabia perfeitamente que Protágoras era agnóstico religioso (cf. Teet. 162d), e não tinha nenhum desejo de enganar.” (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 65).

 

 

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