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46.4 – Górgias e seu combate a Parmênides e a defesa deste por Platão.

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

46.4 – Górgias e seu combate a Parmênides e a defesa deste por Platão.

 

Um ramo da filosofia pré-socrática exerceu profunda influência na sofistica como também em todo outro pensamento grego: o monismo extremado de Parmênides e seus seguidores. Seu desafio à evidencia dos sentidos, e rejeição de todo o mundo sensível como irreal, inspirou reação violenta nas mentes empíricas e praticas dos sofistas, que se lhe opuseram em nome do senso comum. Protágoras, diz-nos, afastou-se do ensino político da arete para escrever uma obra sobre o Ser que se dirigia contra “os que sustentam a unidade do Ser” e Górgias em seu Sobre o não-ser mostrou sua mestria no argumento eleático fazendo-o voltar contra seus inventores. Todavia os sofistas não podiam, não mais do que qualquer outro pretendente a pensamento sério, eliminar o dilema eleático, que forçava uma escolha entre o ser e o tornar-se, a estabilidade e o fluxo, a realidade e a aparência. Uma vez que não mais era possível tê-los a ambos, os sofistas abandonaram a idéia de uma realidade permanente atrás das aparências, em favor de fenomenismo, relativismo e subjetivismo extremos. [Osório diz:!!!] . (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 48-49).

 

Diz Barbara Cassin:

 

Sofística – da ontologia à logologia.

[Logologia. Osório diz: “palavras a cerca de palavras”, K. Burke. Lógos = palavras. Sophia = sabedoria.]

 

I.1. Identidade e catástrofe ou como o cisne se torna elefante

 

Três cisnes e mais alguns nadam em uma lagoa cercada de rochas, com uma ilha central onde despontam árvores mortas. Tudo se reflete como deve ser. O primeiro e o último cisnes estão um pouco indistintos e sua imagem, igualmente, se embaraça com a dos troncos, enroscada por serpentes ou tentáculos, mesmo escorada como um relógio mole. Mas, quanto aos do meio, não há dúvida, o pescoço flexível parece uma tromba e a penugem das asas se reproduz em rugosas orelhas, O espelho d'água opera essa miragem: a repetição do cisne é um elefante.

O pintor, sem dúvida, não tem nada a ver com isso; a face voltada em direção ao lado rochoso, tudo se passa ostensivamente às suas costas, ele não sabe nada disso, não quer saber nada, isso não-lhe diz respeito. Um cisne sozinho aí também não poderia nada, são necessários a água e o céu, o rochedo que forma um corpo, o tronco de reflexo detido pela margem, que forma uma pata, é necessário então um fundo para que a identidade seja assim catastrofada.

O quadro de Salvador Dali ilustra brutalmente um dos dois destinos possíveis da identidade. Ou bem a identidade triunfa no progresso dialético, consentindo em se perder na alteridade para se revelar ainda mais rica, como identidade do idêntico e do não-idêntico, até a unidade do Espírito Absoluto. Ou bem, conforme à sua completamente tola identidade, ela se reproduz, se repete, se reitera. Ora, quanto mais essa iteração é automática e exata, reflexo do cisne no espelho imediato das águas, mais violenta é a diferença entre a ave de Zeus e o paquiderme das selvas.

A catástrofe inerente à identidade não dialética se deve ao fato de que ela só pode ser inteiramente a mesma ou completamente uma outra. No passeio econômico-ecológico de Leibniz, duas folhas não diferem jamais solo numero, apenas pelo número: duas vezes o mesmo um não faz dois, nem mesmo um e mais um, mas sempre ainda um só e único um. Esse rigor dos indiscerníveis obriga a mínima diferença, o infinitesimal, a ser ao mesmo tempo infinitamente grande, já que ela faz passar imediatamente de uma entidade a uma outra, de um indivíduo ao outro. Assim pintado, o cisne difere de seu o-mais-ele-mesmo, de sua imagem, bem como de um o-mais-outro, de um elefante.

Um, o cisne, que significa: ave mais que ave de brancura originária onde se encarna o deus grego para seduzir, seu canto bem ligado à morte, êxtase de si mesmo, as asas do poema.

O outro, com a pele tão espessa que aí ricocheteiam os tiros, pedestre exótico, ou melhor bárbaro, que desenraíza ao passar com indiferença e sem esforço, monstruoso — terrificante, admirável — e entretanto, ou por isso mesmo, sábio.

Um é — por qual repartição da água, segundo qual prestígio do é? —, um é o outro.

Em meu bestiário à vista do quadro, tratou-se, com o cisne hespérico, do primeiro poeta-poema, o Poema (de) Parmênides. Do elefante invulnerável e teratológico, bárbaro e "sofo", de Górgias e de seu Tratado do não-ser, sofista como o mais mesmo-o mais outro, alter ego do filósofo, até Sócrates para si mesmo seu próprio reflexo torpedeado. Aí, sem dúvida, pela primeira ou exemplar vez, contra o fundo da linguagem e com o autor voltando as costas, o cisne da identidade se catastrofou em elefante.

Qual a diferença entre o ser e o nada?

Sobre a natureza ou sobre o não-ente: o título conservado por Sextus Empiricus1 para o tratado de Górgias é provocativo.

(...)

... todos esses físicos, e entre todos Parmênides, designam por natureza o que cresce e que vem assim à presença: o ente. (...) falar da natureza não é, como eles todos acreditam, falar do ente, mas antes tratar do não-ente.

Nada é; se é, é incognoscível; se é e se é cognoscível, é incomunicável.

As três teses de Górgias apresentam-se por sua vez como uma revisão irônica ou grosseira do Parmênides escolar do qual todos, de Platão até nossos dias, tiveram que reter: em primeiro lugar, que existe o ser já que o ser é e o não-ser não é, em seguida que esse ser é por essência cognoscível já que ser e pensar são uma só e mesma coisa; mediante isso a filosofia, e mais particularmente essa filosofia primeira que se nomeou metafísica, pôde se lançar muito naturalmente em seu caminho: conhecer o ser enquanto ser e se cunhar em doutrinas, discípulos e escolas.

Ora, essa série de reversões — é aí que é necessário se ater ao quadro — não intervém do exterior, como um elefante que surgisse da floresta para devastar a aldeia. Ao contrário, ela se prende ao próprio Poema e se efetua apenas por sua repetição: assim como o cisne se reflete em elefante, a fala poética se reproduz em discurso sofístico. É a identidade que se catastrofa, ou ainda: Górgias só contradiz Parmênides por fidelidade.

Os níveis de repetição — tropos do reflexo — diferem para cada tese. A primeira, a mais forte, implica a intimidade mesma do Poema. Que nada é: a deusa revelava ao filósofo duas vias, uma que é, a outra que não é, e ordenava solenemente evitar a segunda. Também Górgias aí não se engaja, o que seria uma violência totalmente externa, e logo anódina. Contenta-se em repetir o gesto de impedimento. Mas para evitar o caminho interdito, é necessário ainda poder identificá-lo como tal. O ponto de partida mínimo do reengajamento filosófico é então uma proposição do tipo não é não é ou o não ser é não ser. Mas essa simples proposição, de uma exigência mínima, já é catastrófica. Pois, desde que é engatada, nada pode deter o processo de identidade, ele se desenrola conforme à descrição que dele fornece Parmênides para o é — ou antes conforme aquilo que se efetua no e pelo Poema — de tal forma que o verbo, por essa aplicação predicativa de si [Osório diz: se são duas vias, o não ser tem a sua, se tem a sua ele é (ele existe)] mesmo a si mesmo, advém efetivamente como sujeito. O não ser é não ser, assim como o ser é ser. É assim impossível, ao enunciar só o verbo é, saber se seu sujeito é como é o não-ente ou então como é o ente, se é antes não-ente do que ente: impossível então saber se o caminho no qual estamos engajados é bem o do é ou somente o do não-é.

Assim, é o próprio movimento de diferenciação entre não é e é, o dizer da identidade do não é que produz sua indistinção: como nota Hegel, os que insistem na diferença entre ser e nada fariam melhor se nos dissessem em que ela consiste. Toda a fidelidade, perversa, de Górgias, deve-se ao fato de dizê-la, em lugar de Parmênides, lá onde falha a origem. A repetição que o discurso faz, assim, do poema é segurança, em todos os sentidos do termo, e nessa segurança reside a reversão.

 

E,

 

Essa repetição catastrófica do gesto do engajamento se faz, entendemos, por meio de uma outra repetição, aquela constitutiva da proposição de identidade. A identificação do sujeito exige sua repetição em predicado e a afirmação da identidade dos dois: ela implica, então, simultaneamente o enunciado de sua diferença. É em toda literalidade que o cisne é elefante, desde que o não-ser é não-ser; pois, no grego como no francês, os dois termos não são mais idênticos que o cisne e sua imagem — e mais ainda no grego, onde, na falta de uma taxinomia normativa, o predicado só é reconhecido em toda legalidade gramatical com a ausência do artigo. O artigo obrigatório diante do sujeito é a marca de sua consistência, de sua substancialidade; indica que toda posição de um sujeito em uma proposição de identidade implica uma pressuposição de existência, ou ainda, que, para dizer o não-ser é não-ser, é sempre necessário já ter proferido: o não-ser é. À linearidade do discurso compete recortar essa catástrofe, assim como a paisagem detém em forma de elefante o reflexo do tronco onde o cisne se apoia.

Essa aparente montagem e a sofisticação do quadro não são brincadeiras, mesmo maldosas. O sofista, longe de se refugiar no não-ser como em um abrigo inexpugnável como censura Platão, torna simplesmente manifesto que a exceção, o equívoco, em uma palavra o sofisma, são o erro do outro, que eles se devem ao é e a seu tratamento ontológico. Pois é antes a identidade do ser consigo mesmo que faz jogo de palavras. Com o ser é ser, a diferença entre sujeito e predicado é insensível, como que anestesiada, já que as duas sequências o ser é e o ser é ser se confirmam e até se confundem, assim como os dois sentidos, existência e cópula, do é. Longe do sofisma lucrar com um equívoco, é ao contrário o enunciado de identidade tradicional que se serve da do é, explora-a e dissimula-a, para erigi-la em regra. Só o caso do não-ser permite tomar consciência do curso do discurso e da diferença normalmente inscrita no enunciado de identidade: é o não é que deve se tornar a regra do é. O sofisma produz assim a falta constitutiva da origem e, ao assegurá-la, (d)enuncia a origem como falha equívoca do sofisma.

Os sofistas, como Dali, profissionais da catástrofe — catástrofes ambulantes que sustentam, em seu percurso, que Helena de Tróia é a mais culpável das mulheres e, no dia seguinte, à mesma hora, no mesmo lugar e com o mesmo efeito persuasivo, que Helena é uma vítima inocente —, introduzem um mundo onde só há o ouvir. Para dizê-lo, com o verbo forjado por Aristófanes sobre o nome próprio do mais renomado dentre eles, gorgianizam; traduzamos: propalam — com a diferença que por si só qualquer enunciação basta para inscrever no enunciado — a catástrofe inerente ao dizer da identidade, e fazem ressoar a fala, por mais original que seja, como um fluxo sonoro, o curso de um discurso. É assim que o cisne é, apesar do que se diz, um elefante. (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 23-26).

 

Ensina Kerferd:

 

Para Parmênides, contudo, essa visão não era aceitável. Pois um mundo que está cheio de contradições objetivas está cheio de negações e, portanto, de não-mundos. Semelhante concepção não pode ser nem pensada nem falada. Por conseguinte, um mundo assim descrito não pode, absolutamente, ser real. Foi isso que levou Parmênides a separar o mundo das aparências do mundo do ser, ao tratar o primeiro dos dois como nada mais do que uma peça de ficção. "Pois nada é ou será, além daquilo que é, visto que o Destino o restringiu a ser inteiro e isento de mudança. Por isso, tudo o que os mortais postularam na crença de que era verdadeiro será nome apenas, vindo a ser e perecendo, ser e não ser, mudança de lugar e intercâmbio de luminosa cor" (DK28B8.36-41). [Osório diz: as razões de Parmênides!]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 125).

 

 

 

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