Sofística
(uma biografia do conhecimento)
46.12 – Górgias e o tempo oportuno – Kairós.
Gilbert Romeyer-Dherbey aponta:
“O sentimento de que o tempo não é um meio homogêneo e indiferente, em que todo o instante é igual a qualquer outro, mas apresenta ocasiões favoráveis para a ação que vem a propósito, este sentimento é já agudo no helenismo antes de Górgias; encontramo-lo, por exemplo, em Teógnis, Baquílides, Píndaro sobretudo. Mas Górgias foi o primeiro, diz-se, a escrever sobre o Kairós e a dar-lhe uma teoria.
A concepção lógica do mundo, o princípio da não-contradição, repousam inteiramente no postulado do tempo contínuo, de um tempo que dura e que permite, pela sua duração contínua, comparar os instantes uns com os outros e denunciar o seu não-alinhamento. O que verdadeiramente é deve estar num tempo alinhado, isto é, deve ser idêntico a si ao longo da duração. A metafísica platônica irá derivar daqui a necessidade para que o ser seja plenamente ser, de ser eterno; o ser não existe apenas devido a esta ou àquela circunstância, existe sempre em si.
Ora Górgias, assim como rejeitara o Ser parmenidiano, recusa esta concepção que faz da eternidade a verdade do tempo e consagra no tempo a realeza do sempre. Concebe um tempo essencialmente descontínuo, feito de a-propósitos e de contratempos, que não se deixa perspectivar; por conseguinte, o valor de um conteúdo não se deixará julgar pela sua perdurabilidade: o melhor pode ser fogo de palha! Essa concepção do tempo vem legitimar a teoria do engano justificado tal como antes a expusemos. A realidade é contraditória e a poesia da ilusão poupa o homem ao sofrimento privilegiando um dos contrários por uma tomada de posição unilateral; ora, esta escolha de um dos dois contrários não é arbitrária e gratuita: é feita segundo o kairós. Exige um espírito perfeitamente desprendido, uma habilidade de grande fineza, de uma agilidade extrema; que há de mais difícil para agarrar que a ocasião? Como diz a canção do marinheiro El pénor em Giraudoux:
“A ocasião só tem uma madeixa / uma madeixa de cabelos.”
É preciso uma sabedoria autêntica para escolher no momento exato o aspecto que a situação requer, e ocultar o outro; assim o kairós implica, além da sabedoria, a justiça: é justo como o que vem no momento exato. A justiça é justeza, e é sempre com justeza que se captam – segundo a bela expressão de Górgias – “as coisas cheias de seiva e de sangue”. Não há que dizer que o sofista se entrega a subterfúgios; não faz mais que seguir os saltos do tempo. [Osório diz: a justiça é – justeza, e é sempre com justeza que se captam “as coisas cheias de seiva e de sangue”. / Vivas, portanto!].
Por isso, Górgias é o primeiro pensador de uma temporalidade essencialmente prática, e está preparado para formar os homens políticos, os futuros governantes. Como escreveu Balzac em Louis Lambert: “a política é uma ciência sem princípios definidos, sem fixidez possível; é o gênio do momento, a aplicação constante da força de acordo com a necessidade do dia. O homem que visse a dois séculos de distância morreria na praça pública sob o peso das imprecações do povo” [Osório diz: Política é – ...]. O kairós tem valor político também na medida em que é kairós retórico, e em que a retórica é na democracia ateniense um instrumento do poder [Osório diz: isso mata Platão!]. O kairós intervém também na formação dos chefes militares: Carls von Clausewitz chamar-lhe-á, mais tarde, “golpe de vista” e dele fará uma das componentes do gênio guerreiro. Mas é na vida ética que o conhecimento do kairós é essencial. Se em vez de estudarmos as virtudes particulares e as circunstâncias precisas em que são verdadeiramente virtudes, isto é, “excelências”, procurarmos definir uma essência única da virtude em geral, encontramo-nos a braços com um universal mal-estar e inaplicável na vida concreta; todas as especificações sutis que tornam uma análise manejável numa dada situação são apagadas pela determinação da essência válida para todos, em todos os lugares e tempos. Definir a virtude segundo o kairós é exprimir a variação da excelência de acordo com os diferentes estados do sujeito moral: uma será a excelência da criança e outra a do velho, do cidadão ou do não-cidadão, do homem em tempo de guerra ou em tempo de paz, etc. É de notar que Aristóteles tenha apreciado a concepção que Górgias fazia da virtude (areté) a ponto de a preferir à dos platônicos; o seu realismo não lhe parecia, pois, confundir-se com o oportunismo:
“Com efeito, os que falam em geral iludem-se a si próprios quando dizem que a virtude é a boa disposição da alma ou a ação correta ou alguma coisa deste gênero; os que enumeram as virtudes, como Górgias, falam muito melhor que aqueles que as definissem assim.” [Osório diz: testemunho de Aristóteles sobre Górgias! Para aqueles que acham que Ari serve para algo].
O erro seria, portanto, definir a arte do kairós por uma habilidade de oportunista; o seu ideal é, pelo contrário, tornar a vida moral praticável e Aristóteles lembrar-se-á disto na sua ética. Mas o seu alcance é vasto: o kairós não significa apenas o momento favorável na vida prática e a arte de o colher, ou ainda o domínio da improvisação retórica, ele decide da natureza do tempo e concebe-o como atomizado. O que exclui a valorização da duração, do longo prazo, da eternidade, valorização relacionada com a ontologia combatida por Górgias.
A coerência das concepções de Górgias não nos permite pensar que este, longe de ser um pensador, se tivesse simplesmente entregue às diversões retóricas sem outra consequência que a de demonstrar o seu talento oratório [Osório diz: que “disse para fazer graça”!]. É claro que chama ao Elogio de Helena um “jogo”, mas Platão também chama ao seu Parménides um “jogo de criança”, o que não basta para lhe negar toda a seriedade, se se compreender bem o sentido e o valor do jogo no helenismo. Lógico implacável, excelente artista e pensador profundo, Górgias, como testemunha a abundância dos seus fragmentos, exerceu nos seus sucessores uma profunda influência. Mas o seu melhor título de glória permanece talvez o de Platão ter encontrado em Górgias um rival, que não era indigno dele.” (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 48-51).