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47.2 – A vida, por Antifonte.

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

47.2 – A vida, por Antifonte.

 

Nos diz Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

O arrythmiston é estável e permanente, indestrutível e imortal; sendo substrato, está, pois, fora do tempo e, inversamente, o tempo, que é passagem, não pode ser substrato. É por isso que o tempo não tem realidade serão para o ser limitado que é medido por ele e para o indivíduo particular que o pensa, porque este indivíduo tem um nascimento e uma morte [Osório diz: o tempo não tem realidade]. O fragmento B9 exprime esta substração ao tempo do arrytmiston, que é substrato (hypostasin): “o tempo é pensado e medido, não substrato”. É nesta atmosfera de intemporalidade que há que compreender o que dizíamos da juventude do “livre de estrutura”: é jovem na medida em que, fugindo ao envelhecimento e à morte, existe sempre. Cera que desfaz todas as suas impressões retirando-se delas, é indestrutível porque é a destruição. O “ritmo” tem sorte contrária. Ronsard é antifoniano sem o saber quando escreve: “a matéria permanece e a forma perde-se”. A mudança assim concebida é antes, como mostra Nicolau Grimaldi, da ordem da metamorfose. Na experiência tal como está determinada pela metafísica clássica, “é a materialidade das coisas que muda e a ordem formal da sua sucessão que permanece. Mas na metamorfose é a matéria que permanece e as formas que mudam”. A consequência da concessão da verdadeira realidade ao arrythmiston é, para as configurações particulares que reveste, isto é, para todos os seres, o estatuto da precariedade e a urgência da morte. O indivíduo privado de consistência ontológica é, por essência, um ser para a morte; donde o patético de todo o destino individual levando consigo a dissolução como a promessa mais certa, não durando senão para provar a sua fugacidade, não vindo à luz do sol, que lhe dá a forma, senão pelo espaço de uma manhã. Também a morte não deixa de estar presente nos fragmentos de Antífon; [Osório diz: Aristóteles enfrenta Antifon: matéria ou forma?] o fr. B 50, que é talvez o que o helenismo nos deixou de mais pungente, confessa esta precariedade do homem:

 

A vida é a véspera de um dia, e a duração da existência uma só jornada: ao levarmos os olhos para a luz, deixamos para os outros, que vêm depois, a sua vez”.

 

O homem é um velador de dia e, por figurar com o ser do dia, é também o ser de um dia. Mas a palavra trágica do fragmento é, sem dúvida, “outros” (hetérois): as figuras, não tendo nenhuma consistência ontológica, dissolvem-se sem remédio. Antífon recusa ao indivíduo a consolação dos eternos retornos pelos quais – para Aristóteles – o pai se reitera, especificamente falando, no seu filho, numa repetição sinonímica. Para Antífon, aquilo que o substitui é verdadeiramente um outro e não um outro eu. O livre de estrutura fica sempre o mesmo, mas não adquire jamais uma máscara idêntica; nenhuma figura (rhythmos) é adiada, nunca mais volta a repetir-se, o que seria ainda uma maneira de ir ficando. A partir daqui, para o indivíduo, cada ponto do tempo é um ponto de não-retorno, e a atitude daqui resultante relativamente à vida é dupla: a vida é mesquinha e frágil, tendo duração curta e grandes sofrimentos, em suma, ela não é quase nada, mas é precisamente por ser quase nada que é preciosa, tal como uma moeda é uma riqueza para um pobre. A vida não é nada, mas este nada é tudo [Osório diz: lindo sobre a vida]. Não é preciso, portanto, passar a vida a preparar uma outra vida que não existe e que nos tira o tempo da vida presente. A morte não é, como no teatro, uma morte para rir, depois da qual o mesmo ator entra em cena com um novo papel; a morte a sério dá à vida uma seriedade absoluta. A vida não é um jogo; Antífon afirma-o noutro fragmento decisivo: “está fora de questão – como no jogo dos dados – jogar duas vezes a vida”. As concepções lúdicas da vida estão ligadas à ideia de repetitividade; para elas, a morte é uma aparência e até a verdadeira vida. Para Antífon, a verdadeira vida é a nossa: somos irremediavelmente indivíduos, configurações passageiras que além-túmulo não conservam a sua forma própria e que, por consequência, nunca mais regressam. Esta seriedade da existência põe, em termos penetrantes, o problema da felicidade, a felicidade no seio da cidade e a felicidade pessoal. [Osório diz: a vida e a vida depois da morte. Isso não faz sentido para o religioso em busca de consolo, o desamparado!]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 98-100).

 

 

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