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47.4 – A interpretação dos sonhos e a terapêutica dos desgostos, por Antifonte.

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

47.4 – A interpretação dos sonhos e a terapêutica dos desgostos, por Antifonte.

 

Gilbert Romeyer-Dherbey leciona:

 

Vimos, nas análises políticas, Antífon afirmar que o espírito é desejo; vimos então aparecer a noção de desgosto (lupé) produzido pelas leis repressivas. Ora, esta noção intervinha na indicação de um empreendimento original de Antífon, a “arte de eliminar o desgosto” (téchnê alupías), que, por sua vez, se prende com o tema da concórdia, já que a homonoia designa também “a unidade de espírito de cada indivíduo consigo próprio”. O pouco que sabemos desta arte permite-nos, apesar de tudo, pensar que se tratava de uma terapêutica já científica, que nos faz lembrar o freudismo [Osório diz: antecipação de Freud]. Pode relacionar-se com a atividade de onirocrítica de Antífon, isto é, de interpretar sonhos. Vamos, antes de mais, referir os fragmentos que nos parecem justificar uma inspiração psicanalítica da interpretação antifoniana dos sonhos e da arte de eliminar os desgostos, que a seguir referiremos. [Osório diz: acho que Guthrie caçoa disso].

Antífon viu toda a importância das causas psíquicas da doença; enuncia claramente o princípio do que hoje chamaríamos a medicina psicossomática: “para todos os homens, com efeito, o pensamento governa o corpo no que diz respeito à saúde e à doença”. Sabe-se que os sintomas fisiológicos têm um significado e que, por exemplo, a doença pode constituir um refúgio: “a doença é uma festa para os preguiçosos”. A psicologia de Antífon devia ser uma psicologia dinâmica, que concebe o homem como dividido entre forças internas que se confrontam e que ele deve equilibrar: a sabedoria não é um estado de calma repousante, mas uma luta contra um princípio oposto: “quem não desejou ou tocou o que é vergonhoso e mau, não é um sábio: nada (ostenta) daquilo contra o qual se pode obter vitória e apresentar-se em ordem” [Osório diz: é fácil dizer/condenar sem ter sido tentado]. Enfim, uma observação sobre os perigos da satisfação imediata dos desejos deixa antever a distinção freudiana entre o princípio do prazer e o princípio da realidade.

Mas a relação com Freud torna-se mais estreita quando se aborda o método antifoniano de interpretação dos sonhos. Na Antiguidade, a mântica [Osório diz: “Arte de adivinhar ou fazer profecias”] dividia-se em uma divinatio naturalis e uma divinatio artificiosa. A interpretação praticada por Antífon classifica-se na segunda categoria. A adivinhação natural consiste em pensar que, se sonhamos com um acontecimento feliz, é um presságio de felicidade enviado pelo deus, e inversamente. A adivinhação que deriva de uma arte, “científica” diz Untersteiner, julga-se com o direito, por uma interpretação mais sutil, de interpretar como presságio favorável um sonho de catástrofe, e inversamente. Lembremos alguns exemplos citados por Cícero. Um corredor prepara-se para a corrida dos carros dos Jogos Olímpicos; sonha que conduz uma quadriga. Vai visitar um adivinho que pratica a interpretação natural e lhe promete a vitória; dirige-se a seguir para a casa de Antífon, que pratica a interpretação científica, e vê no sonho um presságio de desistência: “não compreendes que quatro correm à tua frente?” Outro corredor viu-se num sonho transformado em águia; o primeiro adivinho dá-o como vencedor: Antífon como vencido: “ó meu pacóvio, [Osório diz: “Que ou quem é considerado ingênuo ou aparvalhado”] diz ele, não vês que estás vencido? Com efeito, esta ave, já que persegue e afasta as outras aves, é sempre a última”. Vemos, por estes exemplos, que Antífon parece conhecer a existência do que Freud chamaria a distorção e o trabalho do sonho; em cada caso está nitidamente estabelecida a diferença entre o conteúdo manifesto e conteúdo latente do sonho. O que chama a atenção nesta prática antifoniana de interpretação é a ótica racionalista que o distingue da mântica da sua época. Não justifica a adivinhação pela inspiração divina ou pelo êxtase, mas define-a como “a conjetura do homem sábio”.

Mas Antífon não é apenas onirocrítico; foi também, sem dúvida, o que hoje chamaríamos psiquiatra e procura aperfeiçoar uma “arte de eliminar o desgosto” (téchnê alupías) [Osório diz: psiquiatria]. Só temos algumas informações sobre esta arte, que parece ter sido uma psicoterapia: Antífon dizia-se capaz de “curar por meio da palavra” as pessoas que sofriam de desgostos; tranquilizava, assim, os doentes, “uma vez informado das causas” (ibid) desses desgostos. O texto do testemunho permanece ambíguo: não se sabe se a palavra cuja virtude terapêutica aqui se utiliza é a palavra do doente ou a do médico, portanto, se se trata de uma análise ou de uma consolação: não se sabe nada se as causas indicam as razões conscientes adiantadas pelo doente ou as que são descobertas por uma hipótese do médico. Dado que Antífon, como vimos, era capaz de distinguir entre o conteúdo latente e conteúdo manifesto do sonho, pode pensar-se que a “informação” a que se refere o testemunho era o resultado de uma investigação ativa do médico procurando seguir a pista das causas latentes da perturbação [Osório diz: como poderia ser diferente?]. No que diz respeito à “palavra”, somos levados a relacionar a catarsis antifoniana com a tragédia e principalmente com a Electra de Sófocles, em que Clitemnestra, “assustado por um sonho, o conta ao sol nascente; era, diz o escoliasta, o costume dos Antigos, para escapar ao cumprimento dos maus sonhos”. A palavra indicaria, portanto, o discurso do doente. Apesar de tudo, o que sabemos da confiança sofística no poder encantatório do discurso e sobretudo das investigações antifonianas sobre a linguagem poderia legitimar uma interpretação inversa. Um dos traços originais de Antífon é, com efeito, o seu projeto de refundição da linguagem; exprime a maior parte dos seus contextos mais importantes por palavras que inventa, geralmente pela via da contraposição: assim alupia é um termo elaborado por Antífon, assim como arrythmiston. Ou então, Antífon serve-se destas palavras alterando-lhes o sentido: estas particularidades de vocabulário chamaram a atenção dos Antigos, que catalogaram várias; os seus contemporâneos tê-lo-iam até cognominado, por este motivo, “cozinheiro dos discursos”. Porquê esta prática dos neologismos, esta reestruturação da linguagem? Antífon insiste muito no aspecto convencional dos nomes, que devem esconder-se face às realidades ou, pelo menos, decalcá-las o mais estreitamente possível:

 

É absurdo, com efeito, pensar que as coisas visíveis nascem dos nomes; Além disso, é impossível. De fato, os nomes são os resultados da convenção, ao passo que as coisas visíveis não são resultados da convenção, mas produtos do impulso natural”. [Osório diz: isso mata a discussão do Crátilo?]

 

Ora, vimos atrás, a propósito do seu pensamento político, que Antífon quer destruir a convenção para dar lugar à natureza; quer igualmente desfazer a linguagem convencional e, dando um sentido mais puro às palavras da tribo, dar assim passagem ao que há para dizer. A nova linguagem deve poder dizer a natureza, exprimir a pulsão, desprendendo-se dos estereótipos, dos “clichês”, das expressões já feitas. A linguagem convencional é a de toda a gente; não pode formular o drama essencialmente individual da inquietação e da doença. A catarsis juntou-se, então, à poesia, a única capaz de exprimir a natureza na sua profundidade. [Osório diz: “a poesia”!]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 104-108).

 

 

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