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49 – Crítias e 49.1 – A visão de Crítias.

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

49 – Crítias e 49.1 – A visão de Crítias.

 

Sobre o tema nos diz Gilbert Romeyer-Dherbey que Crítias:

 

A crítica da lei continua na famosa passagem do Sísifo, onde Crítias analisa a astúcia da religião que inventa deuses para conseguir de cada homem a sua auto-repressão. Este fragmento surpreendente parece uma resposta à análise antifoniana do respectivo valor da natureza e da lei. Antífon proclamava sem rodeios a superioridade da natureza, cujos imperativos são necessários, em relação à lei, cujas normas são convencionais, Crítias demonstra sutilmente que, por esta razão, a vida social não seria possível, porque a lei não pode vigiar continuamente o cidadão, e os maus então “agem às escondidas”. Ora, é preciso domar a hygbris humana. Crítias descobre então que a lei é mais forte do que pensava Antífon e que ela pode domar a natureza; um dia, com efeito,

 

Um homem avisado e sábio de pensamento

Inventou para os mortais o temor dos deuses”.

 

Para a onisciência divina, o homem está sempre nu: não é possível esconder-se; enquanto teme os deuses, o mau omite a má ação. É claro que ainda não se pode falar da introjeção, no sentido freudiano do termo; o discurso mítico situa o daimon divino, de alguma maneira, no exterior do homem, já que houve e vê, mas há já, mediante o sentimento do medo, uma interiorização da lei que confere à análise de Crítias um tom muito atual.

Esta tomada de posição, aparentemente clara, não deixa de levantar pelo menos dois problemas, o do estatuto da religião e o da identidade do inventor dos deuses.

O texto de Crítias é muitas vezes citado para ilustrar as manifestações de ateísmo na Antiguidade; traduz bem, evidentemente, um ceticismo completo quanto à existência real dos deuses. Apesar de tudo, não se pode dizer que condena inapelavelmente a religião, ao ver nela apenas, como fará Marx, o ópio do povo; sublinha, pelo contrário, a necessidade social da crença nos deuses e seus efeitos benéficos. Os deuses são uma ficção, mas uma ficção útil e por este tema da ficção útil Crítias antecipa diretamente Nietzsche[Osório diz: antecipação de Nietzsche]. A religião é, portanto, simultaneamente destronada e promovida; serva da política, e, ainda que esvaziada de todo o conteúdo propriamente religioso, ela é indispensável.

Mas quem é o inventor dos deuses? Um sofista, sem dúvida, já que proporciona “o mais doce dos ensinos” e assim persuade, sem nada impor, “escondendo a verdade com um discurso falso”; é por isso que comparamos, exatamente, esta passagem com a doutrina de Górgias. Mas os Sofistas históricos empregaram o seu talento a suscitar ou ressuscitar a crença nos deuses? Protágoras, ainda assim, professava o agnosticismo; Pródico, sem dúvida o mais religioso dos Sofistas, concebe deuses inventores mais do que inventados. O inventor dos deuses utiliza, portanto, a técnica sofística, mas ele próprio é mais um político, próximo do ideal de Crítias, já que possui a famosa gnôme.

Portanto, este texto não é totalmente contraditório; se parece argumentar pró e contra a religião é porque se coloca sucessivamente na perspectiva do povo e na do governante, já que o sofista deve persuadir o povo da existência do deus, e o político, não acreditar em nada.” [Osório diz: Maquiavel?]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 113-115).

 

O mesmo Gilbert Romeyer-Dherbey diz de Hípias:

 

A antropologia de Hípias está no prolongamento direto da sua teoria da natureza. Instaura uma oposição categórica entre a natureza (physis) e a lei (nomos), em benefício da primeira, sendo a lei positiva duramente posta em questão.

Constatar que o nomos é incapaz de instaurar uma verdadeira justiça é, antes de mais, para Hípias, exprimir no plano do conceito a violenta crise que abala a sociedade grega no fim do séc. V e no princípio do IV. Edmond Lévy analisou minuciosamente esta “crise ideológica” ateniense, ligada à derrocada de 404. A guerra demonstrou que os deuses não defendem os justos, já que são atingidos tanto e muitas vezes até mais do que os outros [Osório diz: como é que homens que pensavam assim e diziam isso poderiam ser aceitos? Daí o ódio nutrido, até hoje, contra eles, pois questionavam o divino]; levantam-se dúvidas, então, quanto à idéia da providência divina, claramente expressas por alguns heróis de Eurípedes. A decadência da crença na providência arrasta a da crença nos valores tradicionais de que a principal era a justiça [Osório diz: aqui a mesma coisa, apenas a crítica é dirigida contra a justiça, outro “pilar” da ordem que eles questionavam]: estas, escreve E. Lévy, “reduzem-se a onómata kelá[Osório diz: “belas palavras”]. Por outro lado, as discórdias políticas, o confronto interno na cidade entre democratas e oligarcas e a sua transição sucessiva para poder fazer ver claramente que as leis que promovem são a expressão disfarçada dos seus interesses de partido. A lei é desacralisada; perdeu a neutralidade do direito; é um disfarce para o poder, e a obediência à lei não poderá já definir a justiça [Osório diz: como os sofistas viam o direito e a justiça e as leis]. Enfim, sabemos que Hípias é um dos criadores da etnologia [A etnologia é o "estudo ou ciência que estuda os fatos e documentos levantados pela etnografia no âmbito da antropologia cultural e social, buscando uma apreciação analítica e comparativa das culturas."]; como embaixador e professor itinerante, contactou com múltiplas legislações positivas, e verificou os desacordos e as contradições. Ninguém melhor do que ele poderia ter a sensação da relatividade daquilo que as diferentes culturas chamam “justo” e “bom”.” (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 85).

 

 

 

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