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49.3 – Lei, por Crítias.

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

49.3 – Lei, por Crítias.

 

Nos diz Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

A antropologia de Hípias está no prolongamento direto da sua teoria da natureza. Instaura uma oposição categórica entre a natureza (physis) e a lei (nomos), em benefício da primeira, sendo a lei positiva duramente posta em questão.

Constatar que o nomos é incapaz de instaurar uma verdadeira justiça é, antes de mais, para Hípias, exprimir no plano do conceito a violenta crise que abala a sociedade grega no fim do séc. V e no princípio do IV. Edmond Lévy analisou minuciosamente esta “crise ideológica” ateniense, ligada à derrocada de 404. A guerra demonstrou que os deuses não defendem os justos, já que são atingidos tanto e muitas vezes até mais do que os outros [Osório diz: como é que homens que pensavam assim e diziam isso poderiam ser aceitos? Daí o ódio nutrido, até hoje, contra eles, pois questionavam o divino]; levantam-se dúvidas, então, quanto à idéia da providência divina, claramente expressas por alguns heróis de Eurípedes. A decadência da crença na providência arrasta a da crença nos valores tradicionais de que a principal era a justiça [Osório diz: aqui a mesma coisa, apenas a crítica é dirigida contra a justiça, outro “pilar” da ordem que eles questionavam]: estas, escreve E. Lévy, “reduzem-se a onómata kelá[Osório diz: “belas palavras”]. Por outro lado, as discórdias políticas, o confronto interno na cidade entre democratas e oligarcas e a sua transição sucessiva para poder fazer ver claramente que as leis que promovem são a expressão disfarçada dos seus interesses de partido. A lei é desacralisada; perdeu a neutralidade do direito; é um disfarce para o poder, e a obediência à lei não poderá já definir a justiça [Osório diz: como os sofistas viam o direito e a justiça e as leis]. Enfim, sabemos que Hípias é um dos criadores da etnologia [A etnologia é o "estudo ou ciência que estuda os fatos e documentos levantados pela etnografia no âmbito da antropologia cultural e social, buscando uma apreciação analítica e comparativa das culturas."]; como embaixador e professor itinerante, contactou com múltiplas legislações positivas, e verificou os desacordos e as contradições. Ninguém melhor do que ele poderia ter a sensação da relatividade daquilo que as diferentes culturas chamam “justo” e “bom”.

Mas é a propósito do problema da justiça que melhor aparece o papel normativo da natureza. Nos Memoráveis de Xenofonte, Sócrates ocupa-se com Hípias deste problema; importa ver, como prova Dupréel, que o fundo da discussão é extraído da doutrina de Hípias, embora seja Sócrates a expô-la. Parte-se da definição das leis positivas: são, diz Hípias, “as que os cidadãos decretaram, tendo-se posto de acordo sobre o que há a fazer e a evitar” [Osório diz: o que são as leis positivas]. É por isso que as leis são flexíveis a todas as interpretações; falta-lhes a estabilidade e universalidade; perante a sua versatilidade, quem pode pensar que as leis “são um assunto sério”? E é esta reação que é catastrófica [Osório diz: por que as interpretações das leis são tão instáveis e variáveis]. Com efeito, sem obediência às leis, não há concórdia (homonoia) nem nas cidades, nem nas famílias; os assuntos políticos como os privados estão em perigo. Ora, as leis positivas não são, felizmente, as únicas manifestações da legalidade. Também há o que os Gregos chamavam “as leis não escritas”, que Antígona invoca contra (p. 87) Creonte e que, atualmente, chamaríamos o direito natural. (p. 87) No diálogo de Xenofonte, é Sócrates que se lhes refere, mas Hípias vai defini-las muito bem e aprova calorosamente Sócrates; trata-se, portanto, aqui do que Hípias tinha a dizer de “novo” sobre a justiça. As leis não escritas são válidas em todos os países; o que lhes tira o particularismo e a relatividade é que elas não emanam dos homens. Mas de onde vêm elas? Dos deuses, diz o Sócrates de Xenofonte; mas há motivos de sobra para crer que Hípias teria antes respondido: da natureza [Osório diz: de onde vêm o direito natural?]. Com efeito, os exemplos dados para ilustrar o que são as leis não escritas são as proibições do incesto, devido à degenerescência daí resultante, a condenação da ingratidão, porque o ingrato não pode ter verdadeiros amigos e é detestado pelo seu benfeitor. O elemento comum destes exemplos é o da sanção natural; trata-se, portanto, de uma justiça imanente, que reconcilia norma e efetividade, já que “as leis por si mesmas incluem castigos para quem as transgride”. Nisto está a superioridade das leis não escritas relativamente aos códigos legislativos: não se podem infringir impunemente; são, portanto, unanimemente tidas como respeitáveis, sempre e em toda a parte.

A justiça é, por conseguinte, obra do direito natural; esta noção deve ser tomada aqui no sentido que Aristóteles dá, mais tarde ao seu physikon dikáion, e não no sentido de Hobbes ou de Espinosa. Hípias concilia natureza e ética; a sua rejeição do nomos político é feito em nome de uma lei maior e mais ampla, mais rigorosa também. A invocação da natureza – há ainda que insistir nisto – não tem como resultado, para Hípias, permitir a ilegalidade e de alguma maneira avalizá-la; o Anónimo de Jâmblico, atribuído por Untersteiner a Hípias, insiste na exigência da igualdade. Tomemos um dos exemplos que cita: a lei da natureza, que estabelece a interdependência econômica. A justiça consiste, pois, em obedecer à lei, mas não à lei escrita da natureza; o nomos é assim superado, ao mesmo tempo que o estreito quadro da cidade que lhe dava origem. A teoria hipiana do direito natural desemboca então no cosmopolitismo, que se adapta plenamente ao enciclopedismo sofista. Hípias chamava à Ásia e à Europa “filhas do Oceano”, estabelecendo assim uma identidade entre estes dois continentes, que era costume contrapor para demonstrar a clivagem entre Bárbaros e Gregos. Por este cosmopolitismo, Hípias opõe-se antecipadamente ao que Hípias chama o “nacionalismo inumano” de Platão; anuncia a filantropia estoica e, em certo sentido, a “catolicidade” cristã. Pensa-se, com efeito, na resposta de Eudoro a Cimodoceu em Chateaubriand, quando Eudoro cobre com o seu manto um escravo encontrado à beira do caminho; Cimodoceu diz-lhe: “Pensaste, sem dúvida, que este escravo era algum deus? – Não, respondeu Eudoro, pensei que era um homem”. [Osório diz: pqp! Que coisa linda!]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 85-89).

 

 

 

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