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49.4 – Justiça, por Crítias.

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

49.4 – Justiça, por Crítias.

 

Segundo Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

A justiça é, por conseguinte, obra do direito natural; esta noção deve ser tomada aqui no sentido que Aristóteles dá, mais tarde ao seu physikon dikáion, e não no sentido de Hobbes ou de Espinosa. Hípias concilia natureza e ética; a sua rejeição do nomos político é feito em nome de uma lei maior e mais ampla, mais rigorosa também. A invocação da natureza – há ainda que insistir nisto – não tem como resultado, para Hípias, permitir a ilegalidade e de alguma maneira avalizá-la; o Anónimo de Jâmblico, atribuído por Untersteiner a Hípias, insiste na exigência da igualdade. Tomemos um dos exemplos que cita: a lei da natureza, que estabelece a interdependência econômica. A justiça consiste, pois, em obedecer à lei, mas não à lei escrita da natureza; o nomos é assim superado, ao mesmo tempo que o estreito quadro da cidade que lhe dava origem. A teoria hipiana do direito natural desemboca então no cosmopolitismo, que se adapta plenamente ao enciclopedismo sofista. Hípias chamava à Ásia e à Europa “filhas do Oceano”, estabelecendo assim uma identidade entre estes dois continentes, que era costume contrapor para demonstrar a clivagem entre Bárbaros e Gregos. Por este cosmopolitismo, Hípias opõe-se antecipadamente ao que Hípias chama o “nacionalismo inumano” de Platão; anuncia a filantropia estóica e, em certo sentido, a “catolicidade” cristã. Pensa-se, com efeito, na resposta de Eudoro a Cimodoceu em Chateaubriand, quando Eudoro cobre com o seu manto um escravo encontrado à beira do caminho; Cimodoceu diz-lhe: “Pensaste, sem dúvida, que este escravo era algum deus? – Não, respondeu Eudoro, pensei que era um homem”. [Osório diz: pqp! Que coisa linda!]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 88-89).

 

 

49.5 – Conhecimento, por Crítias.

 

Ensina Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

Antífon e Hípias exaltaram a natureza face ao nomos, o qual representa a tradição e o arcaísmo.

Pode-se ter uma ideia da concepção que Hípias tinha da natureza? [Osório diz: o que era a natureza, para Hípias] Parece que a ideia de totalidade desempenhou um papel fundamental nesta concepção; a natureza é “natureza do todo”. Mas esta totalidade natural não é para Hípias totalidade monolítica, como a dos Eleatas; o sofista concebe o universo como constituído por seres múltiplos particularizados e qualificados que chama tá prágmata, as coisas. Essas coisas, e Hípias opõe-se aqui a Górgias, existem independentemente do conhecimento que o homem delas adquire e da expressão linguística que lhes dá; o conhecimento verdadeiro é possível e consiste em decalcar as palavras sobre as coisas. Este tema é várias vezes retomado nos Discursos duplos, que afirma que “o que é diferente quanto ao nome também o é quanto à coisa” [Osório diz: e quando o nome é igual para coisas diferentes? Manga, por exemplo?].

Conceber a natureza como uma totalidade considerando-a composta de coisas distintas exige que se preste uma atenção especial à continuidade que as une. É o que Hípias faz, antes demais, opondo-se à dialética – dissolvente, segundo ele, porque exclusivamente analítica – de Sócrates. Começa por criticar a Sócrates as suas posições limitadas, especializadas: “Tu não examinas as coisas na sua totalidade”. Estas concepções fragmentárias traduzem-se pela deslocação do seu discurso; são estas – diz Hípias – as discussões de Sócrates, “bagatelas e restos de discursos reduzidos a migalhas”. A seguir contrapõe-lhe o seu ideal de um conhecimento atento à concatenação universal, apto para captar a continuidade que faz de cada coisa um corpo e de todos os corpos uma natureza; ora, Sócrates e os que o frequentam não dispõem senão de uma dialética separadora, de um método que separa e divide: “É por isso que nos escapam os conjuntos naturais, tão vastos e contínuos do ser” [Um pouco mais adiante, Sócrates mostra que compreendeu a crítica do sofista evocando “a essencial continuidade do ser da preferência de Hípias”. (p. 81)]. Esta persuasão da continuidade dos seres, unidos como que por síntese, explica o interesse que Hípias presta a Tales; com efeito, para Tales, não é correto falar de seres inanimados, opostos aos seres dotados de uma alma, isto é, vivos; os objetos ditos inertes são também percorridos pela vida universal, isto é, possuem uma alma, um princípio interno de movimento, pelo qual se aliam aos outros seres: “Aristóteles e Hípias dizem que Tales atribuía uma alma aos seres inanimados, extraindo uma prova do íman e do âmbar”. Que tudo absolutamente esteja vivo explica a atração recíproca dos elementos do mundo; esta atração, que qualifica a physis, traduzir-se-á ao nível antropológico pela amizade (philia), que une os homens entre si pelo simples fato de serem homens.

A realidade será contínua se não há vazio no universo.

A intuição do grande todo que vibra em uníssono explica também a rejeição por Hípias de toda a forma de separatismo e, principalmente, a cisão entre o ser concreto e a essência, que o Sócrates de Platão professa numa discussão sobre a natureza da beleza. Lembramo-nos de que à pergunta – o que é a beleza? – Hípias responde: é uma bela rapariga, e que Sócrates ridiculariza a resposta, perguntando, porque não então uma bela marmita? No espírito do Sócrates platônico, a beleza deve conceber-se separadamente das coisas belas, e em si mesma; para Hípias, o belo é uma realidade imanente e não abstrata [Osório diz: a realidade]; é preciso, portanto, defini-lo, como observa Dupréel, “não em si e por si, mas na sua estreita relação com termos consistentes do que se afirma”. É nesta ótica que importa situar, pensamos nós, a famosa mnemotécnica praticada por Hípias. Ela procede, com efeito, por via de metaforização, isto é, pela relação que utiliza a semelhança entre uma idéia abstrata e a sua origem ou a sua ilustração concretos; no caso dos nomes próprios, esta semelhança obtém-se pelo exercício do jogo das palavras: para nos lembrarmos de “Crisipo”, há que pensar no “cavalo de ouro”; de “pirilampo”, no “fogo brilhante”.

Finalmente, a intuição da continuidade dos seres exprime-se, para Hípias, pela adoção do grande princípio de Empédocles da semelhança (homoiosis). O recurso a este princípio verifica-se numa passagem de contexto antropológico, mas o princípio tinha, sem dúvida, tanto em Hípias como em Empédocles, um alcance cosmológico: “Com efeito, o semelhante é por natureza aparentado com o semelhante”, faz-lhe dizer Platão, e a palavra sungenés, de que se serve, retoma a sungéneia tou prágmatos de Empédocles. A semelhança une os seres e sutura o universo, mas há que ver que a homoisis é também o princípio do conhecimento: o conhecimento, intelectual ou sensível, é um encontro, e é porque o universo é contínuo que se pode conhecer. O verdadeiro saber será, portanto, à imagem e a semelhança do cosmos, um todo; o enciclopedismo é, para o sábio, um dever e, de modo algum, uma vaidade. O discurso erudito tece, para o espírito, uma trama que é a do mundo; será, pois, discurso totalizador, e a sua totalização não representará a morna reiteração de um real reduzido ao mesmo, mas um poder fazer ver a complexidade e de integrar, sem as perder, as infinitas variedades mediante as quais o real aparece sempre novo. O próprio Hípias dá-nos uma amostra do seu método, no início de um discurso em que declara:

 

Estes problemas foram talvez abordados, alguns por Orfeu, outros por Museu, em síntese, por um de uma maneira e por outro de outra; outros por Homero, outros por poetas de épocas diferentes, outros nas obras históricas, quer dos Gregos, quer dos Bárbaros. Eu, mediante a síntese dos mais importantes e homogêneos de todos estes elementos, farei um discurso novo e multifacetado.”

 

Recolecção não repetitiva, totalização diferenciante que renova ao retomar, que complica ao explicar, o saber, segundo Hípias, aparece como que pintado de barroquismo. Pelo seu enciclopedismo, pelo seu princípio de continuidade, pelo seu sentido do complexo e pela arte de fazer reverberar o múltiplo no uno, o sofista não deixa, em todos estes pontos, de anunciar Leibniz. Por outro lado, enquanto filómato e pluri-especialista, seria o intelectual ideal para a ciência moderna a busca da interdisciplinaridade. [Osório diz: duas inovações de Hípias]

O conhecimento, para Hípias, decalca-se, portanto, adequadamente pela estrutura da realidade. Deste modo restaura, em oposição muito consciente a Protágoras e sobretudo a Górgias, um realismo ontológico e um otimismo epistemológico que, sem razão, se recusa muitas vezes à sofística; o sábio é capaz de “conhecer a natureza das coisas” e, por conseguinte, “conhecer a verdade das coisas”, porque pode captar “a natureza do todo”. A racionalidade reencontra em Hípias um fundamento; com isso, diz Dupréel, Hípias apresenta-se como “um precursor do aristotelismo”.” [Osório diz: precursor de Aristóteles]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 80-84).

 

 

 

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