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51.3 – Ética heroica, por Pródico.

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

51.3 – Ética heroica, por Pródico.

 

Nos diz Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

Não partilhamos o desprezo de Guthrie pelo apólogo de Héracles na encruzilhada dos caminhos, em que ele só vê “banalidades morais elementares”. [Osório diz: Porque não é da autoria de Sócrates?Platão].

Héracles, na sua adolescência, retira-se para um lugar solitário para deliberar sobre a orientação que deve dar à sua vida. Surgiram, então, duas mulheres, exaltando cada qual o gênero de existência que representam: um, dedicado à procura da volúpia, o outro, à procura da excelência. A primeira via é atraente e fácil; a segunda exige um esforço contínuo em todos os domínios, mas atrai a estima a quantos se lhe consagram. A excelência é recompensada na terra pela posse de bens sólidos e duradouros; permite ao corajoso subir ao cúmulo da felicidade. As duas vias estão, pois, orientadas para a felicidade, mas uma sob a forma do prazer sensível imediato, a outra sob a forma de alegria racional, que sabe defender-se do excesso e da perversidade. Tal é o quadro geral desta alegoria, que mistura alguns dos temas maiores da sabedoria antiga. Limitemo-nos a algumas observações sobre certos pontos particulares do texto:

O que dramatiza o confronto entre a Excelência (Areté) e a Maldade (Kakía) é a hesitação do jovem colocado na encruzilhada dos caminhos: o fato de se pôr o problema da escolha, isto é, da decisão pessoal, mostra o despertar da individualidade naquela época [Osório diz: o nascer da individualidade]. O homem já não observa cegamente as normas e os tabus tribais; compara os valores e decide-se, mediante uma vontade divina. É uma das conquistas do humanismo antigo que o Quod iter sectabos vitae de Ausónio irá resumir e de que ainda se recordará Descartes.

O segundo tema de Héracles é o voluntarismo heróico. A excelência não é a aquisição fácil; daqui a exaltação da dor e do esforço. Pródico é, assim, a primeira etapa do caminho que parte de Hesíodo para chegar, passando por Antístenes, ao poema que Aristóteles dedica à Areté e, claro, ao estoicismo. Há que sublinhar, apesar de tudo, que esta apologia do trabalho e da fadiga não constitui, de modo nenhum, um dolorismo: as provas que a excelência impõe para se realizar conduzem-na à felicidade, a que contém a maior bem-aventurança. O fim da existência reside, como mais tarde na Ética a Nicómaco, na eudemonia [Osório diz: é toda doutrina que considera a busca de uma vida plenamente feliz - seja em âmbito individual seja coletivo - o princípio e fundamento dos valores morais, julgando eticamente positivas todas as ações que conduzam o homem à felicidade. É toda doutrina moral que, recolocando o bem na felicidade (eudaimonia), persegue-a como um fim natural da vida humana. Segundo Abbagnano, eudemonismo é toda doutrina que assume a felicidade como princípio e fundamento da vida moral.

O eudemonismo distingue-se do hedonismo, segundo o qual, o fim da ação humana é a obtenção do prazer imediato, entendido como gozo (pela escola cirenaica, de Aristipo) ou entendido como ausência de dor (segundo a concepção epicurista)].

Um terceiro tema importante de Héracles é a determinação clara dos “géneros de vida”. O ideal da vida teorética não aparece aqui, o que nos mostra que Pródico visa, antes de mais, uma formação para a vida prática. É por isso que esta fábula constituirá um modelo ético da virilidade preferido pela Antiguidade, que é o resultado da educação, que prova aqui toda a sua importância. Maldade promete a Héracles, que não terá, em primeiro lugar, que se preocupar “nem da guerra nem da coisa pública”; pensamos logo em Aristóteles, que ainda confessará que “o exercício das virtudes práticas se faz no campo da política ou da guerra”. A grande crítica a Sócrates, nos diálogos platônicos, pelos adversários do filósofo teórico, é precisamente a de não fazer política e, por consequência, de não ser um homem verdadeiramente realizado. [Osório diz: seria Sócrates um frustrado? Suas virtudes não tinham práticas e, sem práticas, eram imprestáveis para a vida em sociedade, que é constituída pela política]

No parágrafo 3º do apólogo de Héracles, Pródico passa à condenação da homossexualidade: Areté estigmatiza o fato “de usar homens como se fossem mulheres”. Vê-se, portanto, como era falso dizer que a homossexualidade era geral na Grécia antiga [Osório diz: a homossexualidade na Grécia antiga. Platão era viado!]; era mais característica da aristocracia dórica, e limitada a esta casta guerreira. Pode-se deduzir desta passagem o afastamento de Pródico relativamente aos costumes e tradições aristocráticas, dado que “por toda a Grécia, os aristocratas sofreram uma forte influência dórica”. Este cambiante está confirmado por uma outra conotação política do texto quanto à escolha de Héracles. Depois de ter declarado: “sou honrada mais do que qualquer outra”, Excelência (Areté) delineia o campo da sua atividade; é “colaboradora amada pelos artistas”, “companheira bondosa dos servos”. Reconhecer que os artistas e servos têm parte na virtude, isto é, na excelência, revela a amplitude do humanismo de Pródico e traduz tendências políticas preferentemente democráticas ou, pelo menos, não oligárquicas. A preocupação política não estava ausente do ensino de Pródico, que definia o sofista como “um intermediário entre o filósofo e o político”; por isso, dedicava-se à formação dos cidadãos que se destinavam a participar ativamente nos assuntos políticos e os seus ouvintes deviam ser ou democratas ou aristocratas que aceitavam fazer o jogo da democracia e adaptar-se às suas regras. O campo da doutrina não falhava na amplitude, já que cobria, pelo menos – vimo-lo antes – o fenómeno religioso e o fenômeno ético.” (Fonte: Gilbert Romeyer-Dherbey, Os sofistas, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 64-67).

 

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