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52.3 – Teoria do conhecimento, por Licofronte.

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

52.3 – Teoria do conhecimento, por Licofronte.

 

Gilbert Romeyer-Dherbey doutrina:

 

Os Sofistas, depois de Heráclito, caíram na conta de que a gramática não era neutra, que a maneira de dizer implicava uma maneira de pensar. [Osório diz: a neutralidade da gramática]

O verbo ser que está na junção do lógico (como teoria da linguagem) e do ontológico (como teoria do Ser).

Górgias que, no Tratado do Não-Ser, se compraz em abalar a lógica de Parménides e em provar a sua inutilidade. E precisamente ao apoiar-se na cópula é na proposição “o não-ser é o não-ser” que Górgias provoca a implosão da ontologia parmenidiana: portanto, o não-ser existe e, por consequência, o ser não existe. É inútil censurar Górgias por confusão de lógico com o ontológico, porque a sua confusão é que caracteriza precisamente o pensamento de Parménides. Ora, Lícofron é um discípulo de Górgias; consciente das dificuldades da lógica ontológica, vai procurar ultrapassá-las. O seu remédio é radical: para suprimir a ontologia, suprime o verbo ser. Ao mesmo tempo evita a maior inconsequência da estrutura proposicional da frase, a que organiza o discurso ao estabelecer a relação entre um sujeito e um predicado, por meio da cópula. Se digo: “o homem é branco”, faço residir o ser do homem no da brancura, encontro a verdade do mesmo no outro, faço com que aquilo que é um se torne múltiplo. Para a lógica proposicional e a sua ontologia, o sujeito passa-se todo para o predicado e com isso multiplica-se em tantos predicados quantos se lhes possa encontrar. É por isso que Lícofron e outros, como Alcidamas talvez, “suprimem o é”. [Osório diz: o coração de sua Teoria].

Aqui não podemos estar de acordo com uma glosa de Temístio, segundo a qual Lícofron teria aceitado o uso do verbo ser quando se tratasse de afirmar a existência de uma substância (“Sócrates é”), rejeitando-a se se tratasse do uso simplesmente copulativo (“Sócrates é branco”). Uma tal atitude, com efeito, supõe a aceitação da metafísica que precisamente Lícofron recusa: a distinção da substância e do acidente, a distinção entre o ontológico e o lógico. Ora, precisamente, se as distinções são aceites, o problema posto por Górgias a Parménides está resolvido. Não se podem atribuir a Lícofron os conceitos da metafísica de Aristóteles, primeiramente porque os ignorava, depois porque, se os conheceu, tê-los-ia rejeitado. É necessário compreender – pensamos nós – esta supressão do verbo ser por Lícofron num contexto heraclitiano. A afirmação da imanência recíproca dos contrários leva Heráclito a negar, previamente, toda a concepção que se pudesse parecer com qualquer coisa como a substância, e a recusar a linguagem proposicional tanto quanto fosse possível. É por isso que a linguagem de Heráclito costuma justapor os contrários pondo em curto-circuito o verbo ser, evitando assim fazê-los entrar na estrutura de uma proposição. Se é absurdo dizer: “os imortais são imortais, os mortais são imortais” é porque se verte o “imortais mortais, mortais imortais” de Heráclito no molde de uma lógica e de uma ontologia que heráclito precisamente não aceita. E com esta recusa o absurdo desaparece.

Talvez estejamos agora preparados para compreender porque é que Lícofron usa (e abusa, aos olhos de Aristóteles, de expressões compostas e fala, por exemplo, do “céu-com-muitos-aspectos” e de “terra-com-altos-cumes”. Não há aqui maneirismo ou preciosismo, mas vontade de elaborar uma retórica em que o verbo ser se elida, em que a proposição predicativa se desloque. Lícofron reduz assim a um bloco, com um único nome, o que a lógica distinguirá em sujeito e predicado, a metafísica em substância e acidente. Por conseguinte, o adjetivo já não está adjacente; a realidade surge tal qual, toda ornada de qualidades que lhe são inerentes e não referenciadas posteriormente. O que o discurso do sofista recusa é estabelecer a relação de abstrações com outras abstrações; o que quer é apresentar as coisas de uma só vez no seu feixe de aspectos.

A rejeição do discurso lógico não implica, para Lícofron, a impossibilidade do conhecimento; é rejeição do discurso a favor de uma concepção intuitiva do saber. Lícofron afirma, de fato, que “a ciência é comunhão entre o saber e a alma”. A palavra “comunhão” (sunousia) indica que a unidade alma-saber é imediata, que não introduz a dilação proposicional. A sunousia mostra, e a lógica demonstra, mas demonstrar equivale a passar ao lado das coisas porque se demonstra o uno pelo múltiplo, isto é, a própria coisa por outra.” (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 53-55).

 

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