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69 – Crátilo (o dedo de) – resumo e morte do diálogo.

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

69 – Crátilo (o dedo de) – resumo e morte do diálogo.

 

Ensina Kerferd:

 

O subtítulo do diálogo de Platão, Cráticlo, é Sobre a correção das palavras. Por muito tempo essa foi considerada uma obra de interesse mais limitado, atitude tipificada por H. N. Fowler, na introdução da sua tradução do diálogo, na série Loeb, em 1926, onde lemos: "Não se pode dizer que o Crátilo seja de grande importância no desenvolvimento do sistema platônico, pois trata de um assunto especializado [a origem das palavras], um tanto quanto à parte da teoria geral da filosofia". Há como que uma revolução em curso, desde mais ou menos 1955, na interpretação erudita do diálogo, contudo, e provavelmente são poucos os que procurariam, hoje, negar a fundamental importância dos temas nele discutidos. O assunto do diálogo não é a origem da linguagem, mas sim a questão da possibilidade dos nomes serem corretos. O ponto de partiria de Platão é, como quase sempre, uma questão suscitada pelas especulações sofistas. O diálogo se abre com Hermógenes, irmão de Cálias, famoso patrono dos sofistas, expondo brevemente a posição de Crátilo, o Heracliteano, segundo o qual há uma natural correção nos nomes, a mesma para todos, gregos e bárbaros, após o que ele expõe a sua própria opinião: a única verdade dos nomes depende do acordo das pessoas ao designar, em dado momento, o nome de uma coisa. [Osório diz: na Amazônia, o boto, que era vermelho, veio a transformar-se em cor-de-rosa!]

Sócrates apoia, pelo menos nesse estágio, a teoria da correção natural e sugere (391b-e) que a melhor maneira de investigar a questão seria perguntar àqueles que sabem, isto é, aos sofistas. Mas como Hermógenes não domina bem a sua herança, e não é capaz de responder, o que poderia fazer era pedir a seu irmão que lhe ensinasse a doutrina da correção nos casos que aprendera com Protágoras. Hermógenes se recusa, alegando que seria absurdo fazer tal pedido, visto que rejeita a Verdade de Protágoras e, por isso, não poderia considerar de qualquer valor o que é dito nesse tipo de "Verdade". Sócrates, então, diz que Hermógenes deveria ler Homero e os outros poetas, nos quais a doutrina segundo a qual os deuses usavam, para as coisas, nomes diferentes dos usados pelos homens mortais é clara prova de uma crença em nomes que são naturalmente corretos. Isso nos fornece razões suficientes para concluir que em sua obra Sobre a Verdade Protágoras tinha de fato discutido a correção dos nomes, e a maneira natural de ler a passagem é supondo que o próprio Protágoras, em certo sentido e em certo grau, tinha expressado a crença na doutrina da correção natural.

Isso concorda com o testemunho, citado anteriormente, de sua crença de que havia usos certos e errados para de determinadas palavras. No mito que se encontra no Protágoras (322a3ss), nos é dito como a humanidade procedeu a uma distribuição articulada de vozes e nomes, e isso sugere que o processo envolvia algum tipo de diaeresis de nomes. O fato de a discussão, na qual Sócrates se refere a Hermógenes, ocorrer no tratado A Verdade sugere que a doutrina da correção dos nomes pode ter sido desenvolvida por Protágoras em relação com a doutrina de tornar um logos mais correto (orthos) do que o outro logos ao qual era oposto; mas, na ausência de detalhes só podemos especular como é que tudo isso se encaixava.

No restante do diálogo, isto é, naturalmente, na parte principal, Sócrates procede a um extenso exame, primeiro da tese de Hermógenes de que a correção das palavras depende simplesmente do acordo dos usuários sobre quais nomes devem ser aceitos como corretos e, depois, da tese de Crátilo, segundo a qual há uma base natural para a sua correção. Sócrates argumenta, de ponta a ponta, que a correção dos nomes procede de sua função de indicar a natureza das coisas nomeadas (ver, p. ex., 422dl-2), e supõe que fazem isso mediante um processo de imitação da coisa em questão. Mas as coisas que encontramos em nossa experiência são, do ponto de vista cognitivo, inconsistentes, porque sempre são e não são ao mesmo tempo. Isso as torna incapazes de corresponder plenamente aos nomes que usamos num discurso significativo — problema que já havia sido apresentado por Parmênides. A solução de Platão, contudo, não foi nem renunciar à linguagem, nem abandonar de vez o mundo da experiência mas, antes, a invenção de um "Terceiro Mundo" o das Formas platônicas. Essas Formas são como que deliberadamente imaginadas para satisfazer os requisitos de serem objetos de referência e significado linguísticos satisfatórios. Mas, embora de certa maneira possam ser descritas como deliberadamente imaginadas, em outro sentido, naturalmente, isso é falso — para Platão são entidades reais, os constituintes definitivos da realidade. [Osório diz: Platão e sua auto-ilusão! Mas com ela carrega muitos!].

As Formas platônicas foram assim destinadas a servir de referentes fundamentais para os nomes. Objetos perceptíveis, em relação aos quais esses mesmos nomes tendem a ser usados na fala cotidiana sobre o mundo, constituem uma espécie de esfera de referência derivada ou secundária. A introdução dessa distinção entre referentes primários e secundários tem sido corretamente vista como um primeiro passo na direção de uma distinção entre significação e referência. Uma das dificuldades com que se defronta a teoria da significação referencial, que propunha a relação um-a-um entre nomes e objetos fenomenais, era, como já vimos, que um nome para o qual não havia nenhum objeto correspondente a ser encontrado no mundo fenomenal poderia não ter sentido algum, porque não havia nada a que ele estaria de fato se referindo. Se pudermos dizer que a palavra possui sentido independentemente de ser ou não, de fato, usada para se referir a alguma coisa, então poderemos dizer que o problema está resolvido, ou, pelo menos, que está reduzido a proporções mais tratáveis. Foi exatamente isso que os estóicos realizaram, parcialmente, com a sua doutrina do lekta imaterial associado, como significações, a palavras e pensamentos, em um mundo no qual os únicos objetos reais eram todos materiais e corpóreos.

Mas não é provável que Platão tenha chegado até aí. Ele permaneceu sempre comprometido, ao que parece, com uma teoria da significação puramente referencial. O Crátilo conclui com a afirmação de que, embora possam ser dados e, portanto, possam ser atribuídos por uma espécie de acordo, os nomes somente serão corretamente dados por aqueles que têm um conhecimento direto da realidade imutável, isto é, do mundo das Formas, e que compõem os nomes de tal maneira que são semelhantes às coisas nomeadas e são imagens delas. Esta é a contribuição de Platão para o problema que herdou dos sofistas. Ele resolveu o problema da linguagem correta alterando a realidade para se ajustar às necessidades da linguagem, em vez de fazer o inverso. [Osório diz: mais um dos furos de Platão!].

[Osório diz: Aristóteles, contudo, detona/destrói a tese de Platão ao dizer:

 

Não há semelhança <entre nomes e coisas>. Pois, por um lado, os nomes e a pluralidade das definições são em número limitado, mas, por outro, as coisas são em número ilimitado. Então é necessário que um mesmo nome e uma mesma definição signifiquem muitas <coisas>.” (Aristóteles, Refutações Sofísticas, 165 a 10-13). (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 130-134).

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

O dedo de Crátilo

 

Crátilo, declara Aristóteles, "acreditava que não se deve dizer nada, e apenas agitava o dedo”. Gostaria de interpretar tanto o seu silêncio quanto o seu gesto.

O contexto nos ensina muito. Trata-se do capítulo 5 do livro Gama da Metafísica, onde Aristóteles tenta estabelecer o primeiro princípio da ciência do ser enquanto ser, célebre pelo nome de princípio de não-contradição. Ora, esse princípio primeiro, tão conhecido que "aquele que busca compreender um ente, qualquer que seja, o possui necessariamente", esse princípio então, não apenas alguns mal-educados pedem que seja demonstrado, como também, mais paradoxalmente, todos os grandes ancestrais filosóficos e literários, à exceção de Platão, recusaram-no pura e simplesmente.

O capítulo 5 propõe uma taxinomia desses adversários do princípio. A cisão maior passa-se entre "os que falam sob o efeito de uma aporia" e que podemos convencer "por persuasão", e "os que falam pelo prazer de falar", que podemos somente "coagir" refutando "o que é dito nos sons da voz e nas palavras" (1009a 16-22). Estes últimos são marginalizados, relegados aos confins da humanidade: sofistas puramente sofistas tão improváveis quanto plantas que falam. Mas os primeiros, que Aristóteles quer vencer em combate leal, quer dizer, racional, se distinguem por sua vez dependendo de duas eponímias [Osório diz: Nome das coisas tirado doutras coisas ou pessoas] diferentes: Heráclito o físico e Protágoras o sofista. A aporia chega aos físicos como Anaxágoras e Demócrito quando crêem observar que "os contrários pertencem ao mesmo tempo aos mesmos objetos". Ela chega aos sofistas, como Empédocles, Demócrito, o próprio Parmênides, Anaxágoras, Homero, desde que suponham que "todos os fenômenos são verdadeiros". A superposição dos exemplos faz por si só compreender que essas duas posições dão na mesma. Elas têm a mesma causa: é preciso e é suficiente, da parte do sujeito, fazer equivaler pensamento e sensação, quer dizer alteração (1009b 12s.: dia to hypolambánein phrónësin mèn tén aísthësin, taúten d'einal alloío-sirí) e, da parte do objeto, entes e sensíveis (1010a 2s.: tá d'ónta hypélabon eïnai tá aisthëtá mónorí). Têm também o mesmo efeito desesperante:

 

Em que um dos mais penosos é a consequência, pois se os que mais fixaram os olhos no verdadeiro e em sua possibilidade; e aqueles dos quais acabamos de falar são bem os que o buscam e o amam mais; se esses têm semelhantes opiniões e fazem essas declarações sobre a verdade, como exigir que os que empreendem filosofar não percam a coragem? Pois procurar a verdade seria perseguir pássaros em pleno voo (1009b 33-1010 a l). [Osório diz: Aristóteles está apenas desesperado na tentativa de salvar a filosofia/ciência! Nem que para isso ele não tenha argumentos racionais e concatenados, mas reste apenas uma quase “agressividade”, que o faz lutar pelo fim (salvar) e não pelo meio (como salvar)].

 

Crátilo se cala algumas linhas depois:

 

Vendo essa natureza totalmente em movimento, e nada que muda no domínio, em todo caso, do que muda em todos os pontos e de todas as maneiras, não se pode, pensa eles, dizer verdade. Foi bem sobre esse modo de tomar as coisas que floresceu a opinião mais extrema sustentara por todos aqueles dos quais falamos, a dos que declaram heraclitizar, e tal como devia ser a de Crátilo, que acreditava que não se deve, afinal, nada dizer, mus apenas agitava o dedo; ele reprovava Heráclito por dizer que não podemos entrar duas vezes no mesmo rio: nem mesmo uma, acreditava.

 

O que significa, antes de mais nada, o heraclitismo de Crátilo?

 

É preciso notar previamente a prudência de Aristóteles acerca do Heráclito histórico, como se o Obscuro estivesse sempre a distância de discípulo, a distância de interpretação. Assim, desde o capítulo 3, logo após o enunciado do princípio e para confirmar que é "o mais firme de todos", Aristóteles acrescenta que "é impossível que quem quer que seja sustente que o mesmo é e não é como alguns pensam que Heráclito diz; pois não é necessário que, o que alguém diz, ele o sustente também" (1005b 23-26). Duplo distanciamento nesse caso: entre o que Heráclito disse verdadeiramente e o que alguns pensam que disse, de um lado, e depois entre o que Heráclito poderia ter dito, e o que verdadeiramente assumiu pensar.

Aqui mesmo trata-se, com um hápax [Osório diz: “uma só vez”], daqueles que declaram "heraclitizar". Assim, o julgamento aristotélico se põe em questão. Heráclito tem na verdade Crátilo como objeto: Crátilo, representando a opinião mais extrema, seria mais heracliteano que Heráclito. Ele retomaria a citação heracliteana mas para lhe censurar sua pusilaminidade e para ir ainda mais longe. Como entender essa citação: "não podemos entrar duas vezes no mesmo rio" (potamôi ouk éstin embênai dïs tôi autôï)! Trata-se de um fragmento transmitido por Plutarco por outra via (Sobre o E de Delfos, 392b = 91b DK), mas que o próprio Sócrates utiliza no Crátilo (402a). Invocando a propósito dos nomes de Cronos e Réia "os antigos e sábios ditos" de Heráclito e de Homero, ele continua: "Heráclito diz em algum lugar que tudo passa e nada permanece e, comparando os entes ao correr de um rio, diz que não poderíamos entrar duas vezes no mesmo rio". Sócrates aceitou cratilizar para Hermógenes: trata-se para ele de encontrarcomo diz perfeitamente Gérard Genette retomando Proust — "os nomes escondidos nas palavras", ou ainda descobrir as eponímias sob as etimologias2 e de mostrar assim que as palavras "manifestam efetivamente a essência do objeto" (393d); assim Réia "flui" (rheí) e a citação heracliteana está aí para confirmar a correção natural da linguagem.

Ora, parece que a função dessa citação na boca do Crátilo de Aristóteles é absolutamente contrária. Ela serve, não para fundar a correção natural da linguagem, mas para demonstrar sua inadequação radical: se o mundo é heracliteano, então nada se pode dizer de verdadeiro e, conseqüentemente, o filósofo deve se calar. Dizer que não poderíamos entrar duas vezes no mesmo rio é dizer simplesmente, validando a equivalência entre os entes e o fluxo, que não poderíamos perceber duas vezes os mesmos entes. Resta entretanto o rio propriamente dito: se não é "o mesmo rio", porque fluem sem cessar as águas do devir, não deixa de ser sempre um "rio". Para Sócrates, a esse ponto de seu cratilismo, todos os nomes dizem com efeito o fluxo, Réia como epistémé, a ciência, seguidor fiel de pistas; e é assim, pela forma como o lógos faz sempre aparecer o mesmo no outro, que poderíamos interpretar a tensão heracliteana entre os contrários. Dizer agora, como o Crátilo aristotélico, que não poderíamos entrar aí "nem mesmo uma vez", é dar a entender que é impossível demarcar o rio, ou que o fluxo não tem margens: não apenas os entes, quer dizer, os sensíveis fluem, mas também o pensamento, quer dizer, a sensação, se altera. Não há identidade no fluxo, no voo do que é: não somente não há lugar para uma predicação, um julgamento de conhecimento, mas não há nem mesmo lugar para essa atribuição mínima de identidade que é o nome, designando um objeto e pronunciado por um sujeito. É então preciso interpretar com determinação o extremismo de Crátilo: seu "não se deve, afinal, dizer nada" tem o rigor de um imperativo filosófico. Isso ocorre porque Crátilo se situa na exigência aristotélica de adequação entre dizer e ser, porque ele é um verdadeiro filósofo que só pode se calar, e seu silêncio faz dele o mais consequente dos pré-socráticos.

Resta ainda interpretar seu gesto do dedo. Em uma das duas outras ocorrências em que evoca Crátilo, Aristóteles apresentar-nos, para ilustrar que os "detalhes são persuasivos porque os fatos que conhecemos tornam-se símbolos daqueles que ignoramos”, os fatos", um Crátilo furioso: "Esquines diz de Crátilo que ele partiu sibilando (diasízõri) furiosamente e agitando os punhos" (!<"" iheroín diaseíõn) (Retórica, III, 16, 1417b 1-3). O silêncio de Crátilo, ruidoso e agitado, deixa assim ouvir um evitar da fala. Silêncio e gesto são ainda mais minimais, ou radicais, na Metafísica: Crátilo "apenas agita o dedo" (tòn dáktylon ekínei iiionon). Onde, em uma palavra-valise que uma "viagem à Cratília" nos autorizaria a forjar, ressoa sob Kratylos, Crátilo, Kratylos, dáctilo "o dedo", e mesmo alguma coisa como krateï dákíylos, o dedo que comanda, ou a potência do dedo. Podemos imaginar — com a condição de afastarmos as interpretações cínicas que, por serem obscenas, não seriam talvez sem pertinência — dois gestos. De início, para nós, o do "shhh!". Indicador diante da boca para impor e se impor silêncio; Crátilo consequente se cala e ordena que se faça o mesmo. Mas, de forma mais verossímil, o gesto da deíxis: o indicador, ao menos ele bem nomeado, apontado para o que passa, não designa sequer o pássaro, nem mesmo seu voo, mas sua transformação, seu desaparecimento.

Hegel, no capítulo da Fenomenologia do Espírito, intitulado "A certeza sensível, ou o isto e minha visada do isto", descreveu magistralmente a auto-refutação, a autocontradição constitutivas da deíxis, e a maneira pela qual a certeza sensível que aparece como o conhecimento mais rico "se revela expressamente como a mais abstrata e a mais pobre verdade": "O aqui é por exemplo a árvore. Eu me volto, essa verdade desapareceu e se transformou em verdade oposta: o aqui não é uma árvore, mas antes uma casa"4. O fluxo que derruba a deíxis está ligado à inadequação radical da linguagem ao sensível:

 

Eles visam esse pedaço de papel... mas o que visam, eles não dizem. Se, de um modo efetivamente real, quisessem dizer esse pedaço de papel que visam e se quisessem propriamente dizê-lo, então isso seria uma coisa impossível, porque o isto sensível que é visado é inacessível à linguagem que pertence à consciência, ao universal em si (ibidem, p. 91).

 

Hegel conclui: "é a linguagem que é o mais verdadeiro". E é por isso que um Crátilo consequente, que "quer propriamente dizer" o mundo de Heráclito, deve dar-se por vencido e baixar os braços.

Do silêncio de Crátilo e do seu sentido filosófico encontram-se as marcas, como uma prova antecipada, no diálogo platónico que leva seu nome. Crátilo fala pouco aí: um quinto do diálogo (entre 428b e 440c). No resto do tempo, fazem-no falar. É em primeiro lugar Hermógenes, que prefacia ao enunciar para Sócrates a tese de Crátilo, e lamenta que Crátilo não explique nada:

 

quando eu questiono e desejo saber o que ele quer dizer, ele não explica nada e me trata com ironia, fingindo meditar alguma coisa em seu foro interior, como se tivesse sobre isso um saber que, se ele quisesse enunciá-lo claramente, faria com que eu lhe desse meu acordo e dissesse o mesmo que ele diz (383b-384a).

 

Crátilo, segundo todas as aparências, pensa, sabe, mas quase não fala; e, quando fala, não é como um filósofo mas como um oráculo que se deve interpretar (ten Kratylou manteían: 385a 5), não menos do que Sócrates aliás, quando se põe a cratilizar (cf. 411 b, 428c). Pois é em seguida não mais Crátilo mas Sócrates quem cratiliza para Hermógenes e se deixa levar pelo entusiasmo dos nomes. Depois, quando Sócrates entra efetivamente em diálogo com Crátilo em pessoa, arrebata-o no fluxo heracliteano a ponto de transformá-lo em Hermógenes ("Não é verdade que concordas contigo mesmo e que a correção do nome se torna para ti uma convenção?", 435b). Assim deportado pela maré das palavras socráticas, Crátilo, uma vez mais se cala: "Tomarei, diz Sócrates, teu silêncio por aquiescência".

Mas é sobretudo o final aporético do diálogo, seu adiamento campestre, que exige análise. Sócrates acaba de estabelecer sua própria tese aparentemente modesta, que é preciso partir não dos nomes, mas das próprias coisas — e Crátilo concorda com isso (439b). Propõe então a Crátilo reexaminar o "turbilhão" heracliteano à luz do "devaneio" (439a) socrático do belo em si, da ideia. Se tudo passa, não se pode atribuir corretamente a nada (proseipein auto orthBs, 439d) nem nomeação ("é isto": hóti ekeïno estiri) nem predicação ("é assim": hóti toioütori). Não se trata mais apenas de uma projeção da vertigem do sujeito sobre o objeto, turbilhão, catarro (440d, cf. 411b-c), mas de uma tripla impossibilidade radical: se tudo se transforma, quer dizer, muda [p. 32] de forma, de eidos, então não poderia haver nem conhecimento (ouk àn eíë gnÕsis), nem conhecedor (oúte to gnõsómenon), nem conhecido (oúte to gnõsthêsómenori àn eíe, 440b). Eis o heraclitismo levado ao extremo que professam na Metafísica os extremistas como Crátilo. Ora, Crátilo, que Sócrates nesse momento trata à moda normanda* [Osório diz: “significa responder nem sim nem não”] e afaga como a um cavalo ("pode ser que sim, pode ser que não", "examina com coragem", "não te rendas facilmente", "tu és jovem", "na flor da idade", "conduz a investigação e se encontrares", etc.) persevera: "Prefiro bem mais o que Heráclito diz". Cai então a conclusão socrática: "Vai aos campos! De resto, Hermógenes acompanhar-te-á" (440e). Pois se não se trata apenas de emitir ou de escutar sons, mas de dizer alguma coisa e de conhecer, se a linguagem deve dizer o que é, seja por natureza ou por convenção, para Sócrates como para o Crátilo consequente de Aristóteles, a posição heracliteana é insustentável, quer dizer, muda: férias filosóficas, longe da agora, no vazio do campo. [Osório diz: diálogos de Platão que têm os sofistas como “personagens” principais: Górgias, Protágoras, Sofista, Hípias, Hípias Menor, Crátilo...]

Mas por que Crátilo não se cala por si mesmo, em Platão como em Aristóteles? Dito de outro modo, qual é a cada vez sua relação com a sofística?

Aristóteles coloca Crátilo ao lado de Heráclito e de Protágoras, entre aqueles que ele necessariamente conseguiu persuadir da verdade do princípio. A demonstração por refutação é, com efeito, tão econômica que é preciso e é suficiente que o adversário do princípio satisfaça à definição do homem, "animal dotado de lógos", para ser refutado: é suficiente que ele fale, quer dizer, segundo a série das equivalências aristotélicas, que "diga alguma coisa" (légoi ti, 4, 1006a 22), quer dizer ainda que ele "signifique alguma coisa para si mesmo e para outrem" (sema-neínein gê ti kal autõi kal állõi, 4, 1006a 21). Convencer-se-á assim todo partidário do mobilismo ou do relativismo de que alguma coisa ao menos escapa à mudança: a palavra que ele pronuncia, que não pode ter e não ter ao mesmo tempo o mesmo sentido.

Temos aqui, a meu ver, um ponto de clivagem maior entre Platão e Aristóteles. Na verdade Sócrates propõe abandonar aí as palavras para falar das coisas, e sonha com o bom em si "sempre semelhante a si mesmo": o modelo da identidade platônica é a ideia. Aristóteles, reconhecendo naturalmente que "o mesmo vinho é ora doce, ora não doce", seja porque o vinho ou porque o bebedor tenha mudado, estipula que "não é certamente o doce, tal como é a cada vez que é, que tenha jamais mudado" e que "o que for doce terá necessariamente tal natureza" (5, lOlOb 23-26): o modelo da identidade aristotélica é o sentido da palavra. De Platão a Aristóteles: do Doce em si ao "doce" entre aspas.

Daí a importância da posição de Crátilo, visto que, se Crátilo se cala, o dispositivo aristotélico desaba. Há assim duas maneiras de escapar à persuasão de Aristóteles. A primeira é esse silêncio obstinado de Crátilo que não dá margem à refutação. Mas o preço a pagar é exorbitante: "um tal homem enquanto tal é de saída semelhante a uma planta" (1006a 15). Crátilo não é mais especificamente um homem, mesmo se permanece genericamente um vivo; descortês e associal, é inumano por vontade filosófica. [Osório diz: por aí se vê que as palavras transformam uma coisa em outra!]

A segunda escapatória é o ruído não menos irredutível dos que falam sem intenção de significar. Na verdade, mesmo que façamos com que a refutação tenha como objeto os sons que eles pronunciam, ela — já que é um silogismo que deve concluir pelo contraditório — não poderia valer contra os que "estimam ter o direito de dizer coisas contrárias desde que eles as digam" (6, 1011a 16). Mas o preço a pagar é sempre o mesmo: "Não é possível para esse tipo de homem nem pronunciar nem enunciar (oúte phthénxasthai oúte eipein), pois ele quer dizer simultaneamente isto e não-isto. E se nada sustenta, mas crê tanto quanto não crê, em que diferiria ele dos seres puramente naturais (pephykótõn) das plantas (phytori)?” (1008b B-12). Só que, à diferença de Crátilo, esses verdadeiros sofistas são inumanos não por cegueira filosófica, mas por decisão ética, por "intenção" justamente (1004b 24s.), e seu discurso imbatível é prezado demais na cidade. Falar sem dizer nada é uma maneira vantajosa de se calar; face a eles, o Crátilo aristotélico permanece a encarnação; da idiotia filosófica.

Ora, é bem importante que seja o Crátilo falante de Platão, Crátilo e não Sócrates, quem instaure por conta própria a cisão entre falar como um homem e fazer ruído como um sofista. A pergunta de Sócrates: "Será que todos os nomes são estabelecidos corretamente?", sabe-se que Crátilo responde: "Ao menos todos os que são nomes" (429a, fim). Nesse ponto, Sócrates reconhece a já batida tese sofística de que é impossível dizer falsidades (pseudê légein., 429d). Tese que Crátilo sustenta de boa vontade à maneira de Antístenes, de Górgias, de Eutidemo, de Dlonisodoro, do Estrangeiro, no modo ontológico: "Dizer isto que se diz, como não seria dizer (d)o ente?" (429d 4; grifo meu)5. Mas Sócrates faz com que ele abandone aí essa argumentação esnobe ou chique demais (kompsóteros: 429d 8), não sem lhe fizer uma pergunta suplementar (tósonde, 429d 9), que parece, como frequentemente, ainda mais sutil: "Se não te parece possível dizer falsidades, não te parece possível entretanto proferi-las?"

O que introduz então essa substituição? Trata-se, para Sócrates, de esquivar a equivalência parmenideana do légein ao eînai, do dizer e do ser, que torna possível a demonstração sofística: ao banir o légein por demais filosófico em benefício de uma série de verbos cada vez mais contextualizados, cada vez mais pragmaticamente marcados, ele tenta deslocar a problemática, da ontologia para uma prática da enunciação. Há aqui um redobrar de sutileza, já que, se o sofista combateu de início a filosofia com a ajuda das próprias armas da filosofia, é agora o filósofo que busca combater o sofista com a ajuda das próprias armas da sofística [Osório diz: Contradição Platônica]. Assim se deve, creio, interpretar a sequência quase intraduzível: légein, verbo parmenideano, ontológico, filosófico ("dizer"); phánai, não no sentido veritativo ("afirmar", trad. Méridier), mas como chamando a atenção para o ato de "proferir", para a presença da enunciação mais do que para a validade do enunciado; eipeîn, que implica uma comunicação com outrem, até mesmo um diálogo ("falar"), precisado por proseipeîn, "dirigir a", que coloca sem equívoco possível, em situação concreta, face a um interlocutor determinado; dirige-se uma saudação e esse é justamente o exemplo tomado por Sócrates: "Bom dia, Hermógenes", dirigido a Crátilo. Como Crátilo assim implicado não se sentiria obrigado a confessar que essa saudação ao menos se engana de endereço?7 Para compreender o jogo socrático, é importante não separar, como faz por exemplo Méridier em sua tradução, essas diversas modalidades de enunciação que Sócrates reúne como equivalências: o homem que te saúda assim com o nome de Hermógenes "diria essas palavras, ou proferi-las-ia, ou enunciá-las-ia, ou dirigi-las-ia assim não a ti mas a Hermógenes que aqui está, ou a ninguém?" Sócrates, introduzindo ao mesmo tempo a modalidade e o alvo da enunciação, seu "como", consegue com esse subterfúgio uma refutação da demonstração sofística tão batida quanto ela. Se com efeito sempre se diz o ente, é necessário ainda, para dizer a verdade, dizê-lo como é preciso, ou como ele é. Opera aqui, no plano da pragmática, uma análise do falso e do não-ser como alteridade, análoga à que leva o estrangeiro ao plano sintático-semântico interno à frase ("Teeteto, voa", cf. Sofista, 263a-d).

Só que a resistência de Crátilo é notável e, por uma vez, sem dúvida a única em todo o diálogo, vitoriosa. Ele recusa sucessivamente cada um desses verbos que implicam uma enunciação, logo também um sentido enunciado, e propõe em seu lugar phlhéngesthai, "emitir sons". Essa saudação não é dirigida, ele protesta, mas terá sido apenas "emitida como ruído". E quando Sócrates tenta, contentando-se com esse verbo minimal, reintroduzir a problemática da verdade – "Serão verdades ou falsidades que ele emite?" –, Crátilo a recusa para ir ainda mais longe, phthéngesthai parecendo-lhe, como para Aristóteles ainda há pouco8, demasiado humano. Ele se refugia em psophein, "ressoar", como uma porta, pedras, um instrumento musical, mas sem nenhum dos acentos da voz humana, dessa phônê, que se arrisca sempre, mesmo apesar dela a ser semantikê: aquele que saúda assim "ressoa vibrando a si mesmo em vão, como se vibrasse algum vaso de bronze ao bater nele". Operação estritamente física: o sino de Crátilo vale bem a planta da Metafísica.

Será necessário concluir daí que Crátilo o heracliteano já é, em Platão, aristotélico? Vejamos antes a principal consequência da posição de Crátilo no diálogo: se todos os nomes são correios, todos os que ao menos são nomes, então "pode-se dizer absolutamente que, quando sabemos os nomes, sabemos também as coisas" (453d 5s.). A exclusão dos falsos nomes da classe dos nomes permite se ater apenas aos nomes. Ora, que os nomes, ou as palavras, sejam suficientes, é exatamente a posição — não de Aristóteles, que não cessa de trabalhar para dissipar a homonímia constitutiva da linguagem e fonte principal dos sofismas9 — mas realmente do sofista aristotélico, daquele que fala lógou chárin, contentando-se com as palavras como se existisse apenas linguagem. Na realidade, a hýbris ontológica de Crátilo, perfeita correção dos nomes, perfeita adequação da linguagem, não é senão o avesso, ou melhor, o direito filosófico, da meontologia sofística, as duas posições chegando à mesma palavra de ordem: apenas os nomes e unicamente eles. Mas a juventude platônica de Crátilo acredita ainda ser possível essa correção perfeita, enquanto sua idade aristotélica lhe impõe um silêncio não menos idealista. Assim compreendem-se ao mesmo tempo a força da injunção socrática, segundo a qual é preciso falar das coisas e não dos nomes, e a sutileza da posição aristotélica que imbrica coisa e nome no dispositivo intersubjetivo da significação. Elas nos ensinam que há duas maneiras simétricas e ligadas de abster-se do ser: sustentar até o silêncio ou até o ruído que a linguagem é o ser.

 

7. A sutileza socrática não pára aí, visto que a falsa saudação é por outro lado bem verdadeira: Crátilo, vimos, pode muito justamente ser confundido com Hermógenes, que o acompanha aos campos;

8. Cf. supra, lOOBb 8, onde traduzimos por "pronunciar". Sobre aambivalência de phthéngesthai, cf. por exemplo Sofista 237e 6; 262d 6. O uso aristotélico de psophein é análogo ao de Crátilo; cf. por exemplo hoi agrámmatoi psóphoi, "os ruídos que não poderíamos escrever", os que fiwni os animais (De Int., 2, 16a 28s.);

 

[O mal radical da linguagem e, na verdade, que os nomes sejam necessariamente em menor número que as coisas (cf. Ref. Sof., I, 165 a 12-14).][Osório diz: a palavra folha, por exemplo, serve tanto para a folha da parreira quanto para a folha de papel! E a palavra “manga”, tem “n” acepções]. [Osório diz: é aqui que Aristóteles matou o Crático platônico]. (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 27-37).

 

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