Sofística
(uma biografia do conhecimento)
87.8 – Retórica e Filosofia em Górgias.
Ensina Guthrie:
“Górfgias ... escreveu manuais da arte (…) que podem ter consistido em larga medida de modelos de declamações a serem decoradas, uma vez que Aristóteles (…) diz que era este o seu método de instrução. Destes Helena e Palamedes (…) seriam amostras que se nos conservaram [Eu não ficaria surpreso se o discurso de Helena em Trôades (914-65) devesse algo ao que Górgias a faz dizer sobre o mesmo assunto. Em Eurípedes ela toma a ofensiva de imediato, dizendo que seus aborrecimentos eram a falha de Hécuba de suportar Páris (!), e continua culpando Afrodite. O coro apela a Hécuba para que destrua o peitho desta "mulher má que sabe como falar". O próprio Górgias chama Helena de um paignion, sobre o que o melhor comentário é provavelmente o de Versényi (Socr. Hum. 43s): não é sério, certamente, em seu propósito manifesto (Górgias não se importa que a memória de Helena seja vingada ou não), o que, porém, ele usa como veículo para suas idéias gerais sobre a natureza de logos e peitho.], e Helena foi bem descrito [por Versényi]] como “ensaio sobre o poder do logos” (…) provando que “a palavra é déspota poderoso”.
“A arte da persuasão ultrapassa todas as outras e é de muito a melhor, pois ela faz de todas as coisas suas escravas por submissão espontânea e não por violência”. (Platão em Fileb. 58A-b) Tão irresistível é seu poder que se Helena fosse persuadida para o adultério ela seria tão sem culpa como se tivesse sido aduzida pela força. [Osório diz: Persuasão / Estelionato como obra de arte].
(...)
Ele queria dizer, como frisa Aristóteles (Metaf. 1026b14), que os sofistas reconheciam somente o ser acidental como oposto ao ser essencial, ou seja, o condicional e relativo como oposto ao existente-por-si ou existente absolutamente. A via para estas distinções úteis fora fechada por algum tempo pela áspera antítese de Parmênides, e só foram restabelecidas por Platão e Aristóteles. Obviamente o dito de Protágoras "o que parece a mim é para mim" não tinha nenhuma existência no sentido eleata ou platônico (em que "o que é" era completamente inacessível para os sentidos), e Górgias pôs esta oposição inteiramente às claras e pegou o touro eleata pelos chifres, proclamando atrevidamente que "nada existe".
Do tipo de argumento que Górgias empregava. Ele se propunha provar três coisas (a) que nada existe, (b) que mesmo que existisse, é incompreensível ao homem, (c) que, mesmo que fosse compreensível a alguém, não é comunicável a qualquer outro. Muita tinta derramou sobre a questão se isso era entendido como uma brincadeira ou como paródia, ou como uma séria contribuição à filosofia, mas é errado pensar que parodia seja incompatível com intenção séria. Mostrar a absurdidade da lógica eleata, e em particular de Parmênides (a absurdidade de argumentar a partir do, “é” e do “não é” como tal), foi da maior importância tanto para o senso comum como para a teoria da retórica. Górgias dificilmente teria querido negar a existência de tudo no sentido em que o homem comum entende a existência; sua intenção era mostrar que, pela espécie de argumentos que Parmênides usou, era fácil provar tanto o “não é” como o “é”. A inversão dos argumentos de Parmênides, é, sem dúvida, divertida, lembrando um conselho de Górgias aos seus alunos de “destruir a seriedade de um oponente pela risada, e sua risada pela seriedade”. [Osório diz: a pilhéria e a seriedade! / A quem Górgias combate / Górgias versus Parmênides]
Dizendo que “nada é”, Górgias negava a suposição subjacente a todos os seus sistemas, de que atrás do panorama mutante do “devir” ou das aparências existia uma substância ou substâncias, uma physis de coisas, do apeiron de Anaximandro ao ar de Anaxímenes, as quatro raízes de Empédocles e os átomos de Demócrito. Todas estas “naturezas” permanentes seriam abolidas na tese de Górgias, mas a forma de seus argumentos mostra que sua ironia visava especialmente a Parmênides e seus seguidores, para demonstrar que, pelo seu próprio modo de raciocinar, era tão fácil provar o contrário de x quanto o próprio x. [Osório diz: A quem e o quê Górgias combatia].
Isócrates, embora muito mais jovem do que Górgias, foi seu aluno no começo de seus vinte anos. (Münscher em RE. IX. 2152).
Isócrates não tem nenhum escrúpulo de agrupar Górgias com os eleatas e filósofos como Empédocles, o seu "nada existe" deve ter tido o sentido de tese filosófica séria.
[Confesso leve sentimento de desconforto, porque, se Isócrates conheceu o tratado de Górgias como exposição irônica do raciocínio eleata, com certeza o teria reclamado como aliado e não o teria atacado junto com o resto. Ele era, porém, acima de tudo advogado, pronto a empurrar qualquer coisa para o serviço de sua causa imediata. Sua crítica de Górgias seria que, preocupando-se com os filósofos e refutando-os com suas próprias armas, ele se pôs na mesma classe.]
No seu próprio modo de ver, exposto em numerosas ocasiões, [para Isócrates] a filosofia deveria voltar as costas a todas estas especulações vadias, e Górgias condenou-se a si mesmo por condescender em usar seus argumentos.
Sexto classifica Górgias entre os que eliminam um padrão constante de julgamento (kriterion), mas acrescenta que ele usava um método de ataque diferente de Protágoras; e, depois de resumir os seus argumentos, conclui: “Estas são as dificuldades levantadas por Górgias, e elas eliminam o critério, pois não pode haver critério para o que nem existe nem pode ser conhecido nem é de natureza que se possa descrever a outra pessoa”. Em suas conclusões, Górgias e Protágoras se encontravam, e, se há algo de que se possa chamar de visão sofística geral, é a ideia de que não há nenhum “critério” [Osório diz: mas é justamente desse encontro que vem a solução para a vida em sociedade!]. Tu e eu não podemos, comparando e discutindo nossas experiências, corrigi-las e alcançar o conhecimento de uma ulterior à de ambos, pois não existe essa realidade estável que possa ser conhecida [Osório diz: sim e não! Não existe a realidade estável, mas é possível, comparando e discutindo nossas experiências, senão corrigi-las, mas pelo menos convencer um ao outro de que uma determinada posição é a melhor (o acordo é sempre possível e deve ser buscado). Ora, isso é conhecimento, mas não verdade imutável!]. De modo semelhante na moral, nenhum apelo a padrões gerais ou princípios gerais é possível, e a única norma só pode ser agir como em qualquer momento pareça mais adequado [Osório diz: mas isso é a vida como ela é! A moral até Heródoto já tinha mostrado que a do Egito é diferente da grega!]. Este positivismo é importante, tanto por causa dele mesmo como pela reação que produziu em pensadores do gabarito de Sócrates e Platão [Osório diz: gabarito? Retornou ao misticismo em prejuízo da razão é avanço?].
Podemos agora considerar alguns dos argumentos da obra Sobre a não-existência.
Como "existir". [Osório diz: consultar “Os sofistas” - Gilbert Romeyer-Dherbey, pois ser é diferente de existir]
Nada existe. Se algo existe, é o existente ou não-existente ou ambos. O não-existente não existe (“o que não é não é”). Podia-se pensar que isto é óbvio, mas Górgias argumenta solenemente em termos ultraparmenidesianos: enquanto ele é concebido como não-ser, ele não é, isto é, não existe; mas enquanto ele é não-existente, ele é, isto é, existe. Mas ser e não ser ao mesmo tempo é absurdo, e, por isso, o não-existente não é. O propósito deve ser levar ao ponto em que, ao dizer que alguma coisa “é x”, qualquer seja o predicado, tu estás dando o ser a ela; e, uma vez que segundo Parmênides “é” só tem um sentido, a saber, “existe”, tu podes provar com base em suas próprias premissas o oposto do que ele diz. Ao mesmo tempo Górgias volta contra ele sua crítica da multidão estúpida que afirma que ser e não ser são o mesmo e também diferente (fr. 6.6).
E também o existente não existe. Se ele existe, deve ser eterno ou gerado ou ambos. O argumento de que não pode ser eterno depende de identificar infinitude temporal com espacial e depois defender que “o que é” não pode ser infinito. Uma vez que Melisso dissera que era, e, de mais a mais, obteve sua conclusão pela mesma confusão de temporal com espacial (…), parece provável que neste ponto ele é alvo do humor sofisticado de Górgias. O argumento de que ele não é gerado segue as linhas do fr. 8.7ss de Parmênides, negando por sua vez que ele podia ser gerado do que é ou do que não é. Uma vez mais, ele deve ser ou um ou muitos. Se for um deve ter quantidade, discreta ou contínua, tamanho e corpo, mas neste caso ele será divisível e assim não um. Todavia para alguma coisa existir sem magnitude é absurdo. Para isso também se podia achar uma prova eleata, pois argumentara-se por Zenão (…), e segundo uma parte fragmentária de MXG (…) Górgias parece ter-se referido a isso. Também ele não pode ser muitos, pois uma pluralidade é composta de unidades, e, sendo assim, se o um não existem também não podem existir os muitos.
Também ambos não existem. Isto pareceria muito óbvio agora, mas Górgias faz seu jogo com Parmênides. Embora já tenha mostrado que (a) o que não é e (b) o que é não existe, agora ele “prova” que ambos não existem juntos. Se ambos existem, são idênticos enquanto se refere à existência; e uma vez que o que é não existe, e o que é idêntico com ele, o que é não existirá também. 45
[Untersteiner interpreta assim: "A atribuição de existência tanto ao Ser como ao Não-ser leva à identificação 'no que concerne à existência': o Ser é, pois, absorvido na existência do Não-ser que é Não-existência; o Ser, portanto, como o Não-ser, não existirá". Provavelmente é o melhor que se pode fazer. Tudo, com certeza, é absurdo sedutor. Que o que não é não existe é dito no sumário de Sexto ser homologon (admitido, posse comum) e pareceria seguir da expressão mesma, embora isso não tenha impedido Górgias de "prová-lo" anteriormente.]
Se alguma coisa existe, ela não pode ser conhecida ou ensinada pelo homem. Pensamos certamente coisas que não existem, como, por exemplo, carroças cruzando os mares e homens voando [Que Górgias tinha em mente a apate da tragédia é provável. Cf. fr. 23. (Gercke, seguido por Untersteiner, restaurou apatan para hapanta em MXG 980a9). Untersteiner (Sophs. 171, n. 71) menciona as Oceânidas de Ésquilo cruzando o mar em carruagens aladas pterygon thoais hamillais (P. V. 129; MXG 980 a 12 tem hamillasthai harmata) e Belerofonte em Eurípedes. (Por que não Dédalo? Sófocles escrevera uma peça com este nome, e afinal foi Pégaso que voou, e não Belerofonte a não ser per accidens).], e, segundo Sexto, Górgias afirmava e defendia o reverso, que, se coisas pensadas são não-existentes, então o existente não é pensado. Ele podia ter parodiado alguém que era culpado disso, porém mais provavelmente o seu argumento era que, se nosso pensamento de alguma coisa não é suficiente para provar sua existência, então mesmo que pensemos de algo real, não temos nenhum meio de distingui-lo do irreal. Górgias, com efeito, “abolira o critério”. MXG (980 a 9ss), se suas corrupções são adequadamente emendadas, dá melhor seqüência de pensamento. Se tudo sobre que se pode pensar existe (como Parmênides disse repetidamente, frs. 2.7;3;6.1), então nada é não-verdadeiro, até a afirmação de que carroças cruzam os mares. [Podemos supor que isso seja absurdo]. Não podemos voltar aos sentidos, pois eles são inconfiáveis a não ser controlados pelo pensamento, que já nos desapontou.
Ainda que possa ser apreendido, não pode ser comunicado a outrem. A tese repousa principalmente em ponto sobre o qual insistiu o mestre de Górgias, Empédocles, para quem cada sentido tem seus objetos próprios e não pode distinguir os de outro sentido (Teofr. De sensu 7, vol II, 231). Se há coisas existindo fora de nós, serão objeto da vista, do ouvido, do tato e assim por diante. O nosso meio de comunicação é o discurso, que não é nenhum destes objetos externos, e é entendido diversamente. Assim como uma cor não pode ser ouvida, ou uma melodia vista, também “uma vez que o que é subiste externamente, ele não pode se tornar nosso discurso, e sem se tornar discurso não pode ser comunicado a outrem” (Sexto Math. 7.84; que o conhecimento só pode se dever à interação de semelhantes é outra doutrina de Empédocles, vol. II, 229). “A vista não distingue sons, nem o ouvido cores; e o que um homem fala é discurso, não uma cor nem um objeto” (MXG 980b1). De acordo com MXG (980b9ss), Górgias acrescentou que o ouvinte não pode ter em sua mente a mesma coisa que o locutor, pois a mesma coisa não pode, sem perder sua identidade, estar presente em mais do que uma pessoa. Também se pudesse, não precisa parecer a mesma a ambos, uma vez que são diferentes um do outro e em diversos lugares. Até o próprio homem não apreende coisas do mesmo modo em tempos diferentes, ou como apresentadas por diferentes sentidos.
Devemos citar finalmente um dito significativo de Górgias, chamado apropriadamente por Untersteiner de "Górgias sobre a tragédia do conhecimento". Chegou a nós sem contexto e sem qualquer indicação de seu lugar em suas obras:
A existência é desconhecida a não ser que adquira aparência, e a aparência é fraca a não ser que adquira existência [Fr. 26 elege de to men einai aphanes me tychon tou dokein, to de dokein asthenes me tychon tou einai. A implicação era, sem dúvida, que a existência é incognoscível, e a aparência não-existente, e o grego suportaria a tradução: "A existência é incognoscível, pois ela não adquire aparência" etc.].
NOTA. (...) Górgias, disse Grote, usa a palavra "ser" no sentido eleata, segundo o qual ela não se aplicava a fenômenos, mas somente a existência ultrafenomênica (numênica). "Ele negou que qualquer Algo, ou Noumenon, ultrafenomênico existisse, ou pudesse ser conhecido, ou pudesse ser descrito. Desta tese tripartida, a primeira negação não era nem mais nem menos sustentável do que a daqueles filósofos que antes dele argumentaram pela afirmativa: sobre os dois últimos pontos suas conclusões não eram paradoxais nem céticas, e sim perfeitamente justas, e foram ratificadas pelo abondono gradativo, quer confessado, quer implícito de tais pesquisas ultrafenômenicas entre a maioria dos filósofos". [Osório diz: filósofos fogem da briga com Górgias!]
O contraste entre aparência e realidade (não-sensível) é um motivo condutor do pensamento pré-socrático, e toda a base da presente consideração dos sofistas e de seus contemporâneos é que a questão de suas relações estava no centro da controvérsia filosófica do século V (cf. p. 4). Para Heráclito, os olhos e os ouvidos não mereciam confiança a não ser que a mente pudesse interpretar sua mensagem e descobrir a verdade subjacente. Parmênides fez claramente a distinção, dizendo que só os objetos do nous existiam e que o mundo fenomênico era ilusão. O atomismo de Demócrito também ensinava a doutrina de uma realidade atrás das aparências, um numênico (o objeto do conhecimento "legítimo" enquanto oposto ao "bastardo") atrás do fenomênico. (Para a relação deste com a filosofia de Platão v. vol. II 462) [Osório diz: Górgias e o desentendimento entre os filósofos que permitiu suas conclusões/ Platão dirá que o que existem são ideias estáveis!]. Foi este o legado que os sofistas herdaram e fizeram dele o maior uso para os seus objetivos. Zeller também criticou Grote (ZN, 1367, n. 2), dizendo que até os próprios eleatas não distinguiram aparência do que está atrás da aparência, mas apenas a visão verdadeira das coisas da falsa. De fato, porém, Parmênides distinguiu to on — o que existe ou é real (ou, se seguirmos a Kahn, p. 179 acima, o que é o caso) — de ta dokounta, o que aparece, mas não existe, que é o que Grote disse que ele fez.” [Osório diz: chupa Platão e caterva! O ator joga a toalha?]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 181-188).