visão geral

Você está aqui: Home | Sofistas da Atenas de Péricles | Visão geral

93 – Tempo, segundo a Sofística.

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

93 – Tempo, segundo a Sofística.

 

Nos diz Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

Assim, o tempo será experimentado como um meio homogêneo, uniformemente fragmentado; ainda não existe o relógio mecânico, que expressará a duração em fragmentos iguais e mensuráveis; o tempo é, pelo contrário, o da ocasião propícia (kaipós), que aparece e desaparece arritmicamente, dado ora a um ora a outro, nunca sendo, por conseguinte, bom para toda a gente. O desequilíbrio do tempo que fere o que vem a tempo e a contratempo agrava-se com uma dispersão dos lugares. O espaço homogêneo não existe como o tempo homogêneo; o mundo político grego é constituído por inúmeras Cidades-Estados, átomos do poder dispersos e que perpetuamente se entrechocam e confrontam. O sofista nómade, ao ir de uma para outra, experimenta uma contínua sensação de descentração; como ser o rapsodo dos seus discursos tão desconexos? (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 17-18).

 

Prossegue Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

O sentimento de que o tempo não é um meio homogêneo e indiferente, em que todo o instante é igual a qualquer outro, mas apresenta ocasiões favoráveis para a ação que vem a propósito, este sentimento é já agudo no helenismo antes de Górgias; encontramo-lo, por exemplo, em Teógnis, Baquílides, Píndaro sobretudo. Mas Górgias foi o primeiro, diz-se, a escrever sobre o Kairós e a dar-lhe uma teoria.

A concepção lógica do mundo, o princípio da não-contradição, repousam inteiramente no postulado do tempo contínuo, de um tempo que dura e que permite, pela sua duração contínua, comparar os instantes uns com os outros e denunciar o seu não-alinhamento. O que verdadeiramente é deve estar num tempo alinhado, isto é, deve ser idêntico a si ao longo da duração. A metafísica platônica irá derivar daqui a necessidade para que o ser seja plenamente ser, de ser eterno; o ser não existe apenas devido a esta ou àquela circunstância, existe sempre em si.

Ora Górgias, assim como rejeitara o Ser parmenidiano, recusa esta concepção que faz da eternidade a verdade do tempo e consagra no tempo a realeza do sempre. Concebe um tempo essencialmente descontínuo, feito de a-propósitos e de contratempos, que não se deixa perspectivar; por conseguinte, o valor de um conteúdo não se deixará julgar pela sua perdurabilidade: o melhor pode ser fogo de palha! Essa concepção do tempo vem legitimar a teoria do engano justificado tal como antes a expusemos. A realidade é contraditória e a poesia da ilusão poupa o homem ao sofrimento privilegiando um dos contrários por uma tomada de posição unilateral; ora, esta escolha de um dos dois contrários não é arbitrária e gratuita: é feita segundo o kairós. Exige um espírito perfeitamente desprendido, uma habilidade de grande fineza, de uma agilidade extrema; que há de mais difícil para agarrar que a ocasião? Como diz a canção do marinheiro El pénor em Giraudoux:

 

A ocasião só tem uma madeixa / uma madeixa de cabelos.”

 

É preciso uma sabedoria autêntica para escolher no momento exato o aspecto que a situação requer, e ocultar o outro; assim o kairós implica, além da sabedoria, a justiça: é justo como o que vem no momento exato. A justiça é justeza, e é sempre com justeza que se captam – segundo a bela expressão de Górgias – “as coisas cheias de seiva e de sangue”. Não há que dizer que o sofista se entrega a subterfúgios; não faz mais que seguir os saltos do tempo. [Osório diz: a justiça é – justeza, e é sempre com justeza que se captam “as coisas cheias de seiva e de sangue”. / Vivas, portanto!].

Por isso, Górgias é o primeiro pensador de uma temporalidade essencialmente prática, e está preparado para formar os homens políticos, os futuros governantes. Como escreveu Balzac em Louis Lambert: “a política é uma ciência sem princípios definidos, sem fixidez possível; é o gênio do momento, a aplicação constante da força de acordo com a necessidade do dia. O homem que visse a dois séculos de distância morreria na praça pública sob o peso das imprecações do povo[Osório diz: Política é – ...]. O kairós tem valor político também na medida em que é kairós retórico, e em que a retórica é na democracia ateniense um instrumento do poder [Osório diz: isso mata Platão!]. O kairós intervém também na formação dos chefes militares: Carls von Clausewitz chamar-lhe-á, mais tarde, “golpe de vista” e dele fará uma das componentes do gênio guerreiro. Mas é na vida ética que o conhecimento do kairós é essencial. Se em vez de estudarmos as virtudes particulares e as circunstâncias precisas em que são verdadeiramente virtudes, isto é, “excelências”, procurarmos definir uma essência única da virtude em geral, encontramo-nos a braços com um universal mal-estar e inaplicável na vida concreta; todas as especificações sutis que tornam uma análise manejável numa dada situação são apagadas pela determinação da essência válida para todos, em todos os lugares e tempos. Definir a virtude segundo o kairós é exprimir a variação da excelência de acordo com os diferentes estados do sujeito moral: uma será a excelência da criança e outra a do velho, do cidadão ou do não-cidadão, do homem em tempo de guerra ou em tempo de paz, etc. É de notar que Aristóteles tenha apreciado a concepção que Górgias fazia da virtude (areté) a ponto de a preferir à dos platônicos; o seu realismo não lhe parecia, pois, confundir-se com o oportunismo:

 

Com efeito, os que falam em geral iludem-se a si próprios quando dizem que a virtude é a boa disposição da alma ou a ação correta ou alguma coisa deste gênero; os que enumeram as virtudes, como Górgias, falam muito melhor que aqueles que as definissem assim.” (66) [Osório diz: testemunho de Aristóteles sobre Górgias! Para aqueles que acham que Ari serve para algo].

 

O erro seria, portanto, definir a arte do kairós por uma habilidade de oportunista; o seu ideal é, pelo contrário, tornar a vida moral praticável e Aristóteles lembrar-se-á disto na sua ética. Mas o seu alcance é vasto: o kairós não significa apenas o momento favorável na vida prática e a arte de o colher, ou ainda o domínio da improvisação retórica, ele decide da natureza do tempo e concebe-o como atomizado. O que exclui a valorização da duração, do longo prazo, da eternidade, valorização relacionada com a ontologia combatida por Górgias.

A coerência das concepções de Górgias não nos permite pensar que este, longe de ser um pensador, se tivesse simplesmente entregue às diversões retóricas sem outra consequência que a de demonstrar o seu talento oratório [Osório diz: que “disse para fazer graça”!]. É claro que chama ao Elogio de Helena um “jogo”, mas Platão também chama ao seu Parménides um “jogo de criança”, o que não basta para lhe negar toda a seriedade, se se compreender bem o sentido e o valor do jogo no helenismo. Lógico implacável, excelente artista e pensador profundo, Górgias, como testemunha a abundância dos seus fragmentos, exerceu nos seus sucessores uma profunda influência. Mas o seu melhor título de glória permanece talvez o de Platão ter encontrado em Górgias um rival, que não era indigno dele.” (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 48-51).

 

Finaliza Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

O arrythmiston é estável e permanente, indestrutível e imortal; sendo substrato, está, pois, fora do tempo e, inversamente, o tempo, que é passagem, não pode ser substrato. É por isso que o tempo não tem realidade serão para o ser limitado que é medido por ele e para o indivíduo particular que o pensa, porque este indivíduo tem um nascimento e uma morte [Osório diz: o tempo não tem realidade]. O fragmento B9 exprime esta substração ao tempo do arrytmiston, que é substrato (hypostasin): “o tempo é pensado e medido, não substrato”. É nesta atmosfera de intemporalidade que há que compreender o que dizíamos da juventude do “livre de estrutura”: é jovem na medida em que, fugindo ao envelhecimento e à morte, existe sempre. Cera que desfaz todas as suas impressões retirando-se delas, é indestrutível porque é a destruição. O “ritmo” tem sorte contrária. Ronsard é antifoniano sem o saber quando escreve: “a matéria permanece e a forma perde-se”. A mudança assim concebida é antes, como mostra Nicolau Grimaldi, da ordem da metamorfose. Na experiência tal como está determinada pela metafísica clássica, “é a materialidade das coisas que muda e a ordem formal da sua sucessão que permanece. Mas na metamorfose é a matéria que permanece e as formas que mudam”. A consequência da concessão da verdadeira realidade ao arrythmiston é, para as configurações particulares que reveste, isto é, para todos os seres, o estatuto da precariedade e a urgência da morte. O indivíduo privado de consistência ontológica é, por essência, um ser para a morte; donde o patético de todo o destino individual levando consigo a dissolução como a promessa mais certa, não durando senão para provar a sua fugacidade, não vindo à luz do sol, que lhe dá a forma, senão pelo espaço de uma manhã. Também a morte não deixa de estar presente nos fragmentos de Antífon; [Osório diz: Aristóteles enfrenta Antifon: matéria ou forma?] o fr. B 50, que é talvez o que o helenismo nos deixou de mais pungente, confessa esta precariedade do homem:

 

A vida é a véspera de um dia, e a duração da existência uma só jornada: ao levarmos os olhos para a luz, deixamos para os outros, que vêm depois, a sua vez”.

 

O homem é um velador de dia e, por figurar com o ser do dia, é também o ser de um dia. Mas a palavra trágica do fragmento é, sem dúvida, “outros” (hetérois): as figuras, não tendo nenhuma consistência ontológica, dissolvem-se sem remédio. Antífon recusa ao indivíduo a consolação dos eternos retornos pelos quais – para Aristóteles – o pai se reitera, especificamente falando, no seu filho, numa repetição sinonímica. Para Antífon, aquilo que o substitui é verdadeiramente um outro e não um outro eu. O livre de estrutura fica sempre o mesmo, mas não adquire jamais uma máscara idêntica; nenhuma figura (rhythmos) é adiada, nunca mais volta a repetir-se, o que seria ainda uma maneira de ir ficando. A partir daqui, para o indivíduo, cada ponto do tempo é um ponto de não-retorno, e a atitude daqui resultante relativamente à vida é dupla: a vida é mesquinha e frágil, tendo duração curta e grandes sofrimentos, em suma, ela não é quase nada, mas é precisamente por ser quase nada que é preciosa, tal como uma moeda é uma riqueza para um pobre. A vida não é nada, mas este nada é tudo [Osório diz: lindo sobre a vida]. Não é preciso, portanto, passar a vida a preparar uma outra vida que não existe e que nos tira o tempo da vida presente. A morte não é, como no teatro, uma morte para rir, depois da qual o mesmo ator entra em cena com um novo papel; a morte a sério dá à vida uma seriedade absoluta. A vida não é um jogo; Antífon afirma-o noutro fragmento decisivo: “está fora de questão – como no jogo dos dados – jogar duas vezes a vida”. As concepções lúdicas da vida estão ligadas à idéia de repetitividade; para elas, a morte é uma aparência e até a verdadeira vida. Para Antífon, a verdadeira vida é a nossa: somos irremediavelmente indivíduos, configurações passageiras que além-túmulo não conservam a sua forma própria e que, por consequência, nunca mais regressam. Esta seriedade da existência põe, em termos penetrantes, o problema da felicidade, a felicidade no seio da cidade e a felicidade pessoal.” [Osório diz: a vida e a vida depois da morte. Isso não faz sentido para o religioso em busca de consolo, o desamparado!]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 98-100).

 

7

Você está aqui: Home | Sofistas da Atenas de Péricles | Visão geral