visão geral

Você está aqui: Home | Sofistas da Atenas de Péricles | Visão geral

129 – Dali e a realidade ou falsidade dos sentidos.

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

129 – Dali e a realidade ou falsidade dos sentidos.

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

Cisnes refletindo elefantes, por Salvador Dalì

 

Três cisnes e mais alguns nadam em uma lagoa cercada de rochas, com uma ilha central onde despontam árvores mortas. Tudo se reflete como deve ser. O primeiro e o último cisnes estão um pouco indistintos e sua imagem, igualmente, se embaraça com a dos troncos, enroscada por serpentes ou tentáculos, mesmo escorada como um relógio mole. Mas, quanto aos do meio, não há dúvida, o pescoço flexível parece uma tromba e a penugem das asas se reproduz em rugosas orelhas, O espelho d'água opera essa miragem: a repetição do cisne é um elefante.

O pintor, sem dúvida, não tem nada a ver com isso; a face voltada em direção ao lado rochoso, tudo se passa ostensivamente às suas costas, ele não sabe nada disso, não quer saber nada, isso não-lhe diz respeito. Um cisne sozinho aí também não poderia nada, são necessários a água e o céu, o rochedo que forma um corpo, o tronco de reflexo detido pela margem, que forma uma pata, é necessário então um fundo para que a identidade seja assim catastrofada.

O quadro de Salvador Dali ilustra brutalmente um dos dois destinos possíveis da identidade. Ou bem a identidade triunfa no progresso dialético, consentindo em se perder na alteridade para se revelar ainda mais rica, como identidade do idêntico e do não-idêntico, até a unidade do Espírito Absoluto. Ou bem, conforme à sua completamente tola identidade, ela se reproduz, se repete, se reitera. Ora, quanto mais essa iteração é automática e exata, reflexo do cisne no espelho imediato das águas, mais violenta é a diferença entre a ave de Zeus e o paquiderme das selvas.

A catástrofe inerente à identidade não dialética se deve ao fato de que ela só pode ser inteiramente a mesma ou completamente uma outra. No passeio econômico-ecológico de Leibniz, duas folhas não diferem jamais solo numero, apenas pelo número: duas vezes o mesmo um não faz dois, nem mesmo um e mais um, mas sempre ainda um só e único um. Esse rigor dos indiscerníveis obriga a mínima diferença, o infinitesimal, a ser ao mesmo tempo infinitamente grande, já que ela faz passar imediatamente de uma entidade a uma outra, de um indivíduo ao outro. Assim pintado, o cisne difere de seu o-mais-ele-mesmo, de sua imagem, bem como de um o-mais-outro, de um elefante.

Um, o cisne, que significa: ave mais que ave de brancura originária onde se encarna o deus grego para seduzir, seu canto bem ligado à morte, êxtase de si mesmo, as asas do poema.

O outro, com a pele tão espessa que aí ricocheteiam os tiros, pedestre exótico, ou melhor bárbaro, que desenraíza ao passar com indiferença e sem esforço, monstruoso — terrificante, admirável — e entretanto, ou por isso mesmo, sábio.

Um é — por qual repartição da água, segundo qual prestígio do é? —, um é o outro.

Em meu bestiário à vista do quadro, tratou-se, com o cisne hespérico, do primeiro poeta-poema, o Poema (de) Parmênides. Do elefante invulnerável e teratológico, bárbaro e "sofo", de Górgias e de seu Tratado do não-ser, sofista como o mais mesmo-o mais outro, alter ego do filósofo, até Sócrates para si mesmo seu próprio reflexo torpedeado. Aí, sem dúvida, pela primeira ou exemplar vez, contra o fundo da linguagem e com o autor voltando as costas, o cisne da identidade se catastrofou em elefante.

 

E,

 

Essa repetição catastrófica do gesto do engajamento se faz, entendemos, por meio de uma outra repetição, aquela constitutiva da proposição de identidade. A identificação do sujeito exige sua repetição em predicado e a afirmação da identidade dos dois: ela implica, então, simultaneamente o enunciado de sua diferença. É em toda literalidade que o cisne é elefante, desde que o não-ser é não-ser; pois, no grego como no francês, os dois termos não são mais idênticos que o cisne e sua imagem — e mais ainda no grego, onde, na falta de uma taxinomia normativa, o predicado só é reconhecido em toda legalidade gramatical com a ausência do artigo. O artigo obrigatório diante do sujeito é a marca de sua consistência, de sua substancialidade; indica que toda posição de um sujeito em uma proposição de identidade implica uma pressuposição de existência, ou ainda, que, para dizer o não-ser é não-ser, é sempre necessário já ter proferido: o não-ser é. À linearidade do discurso compete recortar essa catástrofe, assim como a paisagem detém em forma de elefante o reflexo do tronco onde o cisne se apoia.

Essa aparente montagem e a sofisticação do quadro não são brincadeiras, mesmo maldosas. O sofista, longe de se refugiar no não-ser como em um abrigo inexpugnável como censura Platão, torna simplesmente manifesto que a exceção, o equívoco, em uma palavra o sofisma, são o erro do outro, que eles se devem ao é e a seu tratamento ontológico. Pois é antes a identidade do ser consigo mesmo que faz jogo de palavras. Com o ser é ser, a diferença entre sujeito e predicado é insensível, como que anestesiada, já que as duas sequências o ser é e o ser é ser se confirmam e até se confundem, assim como os dois sentidos, existência e cópula, do é. Longe do sofisma lucrar com um equívoco, é ao contrário o enunciado de identidade tradicional que se serve da do é, explora-a e dissimula-a, para erigi-la em regra. Só o caso do não-ser permite tomar consciência do curso do discurso e da diferença normalmente inscrita no enunciado de identidade: é o não é que deve se tornar a regra do é. O sofisma produz assim a falta constitutiva da origem e, ao assegurá-la, (d)enuncia a origem como falha equívoca do sofisma.

Os sofistas, como Dali, profissionais da catástrofe — catástrofes ambulantes que sustentam, em seu percurso, que Helena de Tróia é a mais culpável das mulheres e, no dia seguinte, à mesma hora, no mesmo lugar e com o mesmo efeito persuasivo, que Helena é uma vítima inocente —, introduzem um mundo onde só há o ouvir. Para dizê-lo, com o verbo forjado por Aristófanes sobre o nome próprio do mais renomado dentre eles, gorgianizam; traduzamos: propalam — com a diferença que por si só qualquer enunciação basta para inscrever no enunciado — a catástrofe inerente ao dizer da identidade, e fazem ressoar a fala, por mais original que seja, como um fluxo sonoro, o curso de um discurso. É assim que o cisne é, apesar do que se diz, um elefante.” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 23-24, 26-27).

4

Você está aqui: Home | Sofistas da Atenas de Péricles | Visão geral