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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

45.22 – Protágoras e a educação.

 

que Protágoras tenha dedicado a sua existência à educação do cidadão, e que a seus olhos toda a educação seja educação política.” [Osório diz: que governo o adotaria?]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 28).

 

Gutrhier acrescenta:

 

Em segundo lugar, porém, embora os atenienses como quaisquer outros acreditem que todos têm certa participação nas virtudes políticas, não pensam que são inatas ou automáticas, mas adquiridas por ensino e esforço (323c: estes correspondem, portanto, ao decreto de Zeus no mito). A educação começa na infância com a mãe, a babá e o pai, e continua pelo empenho dos mestres-escola, e na vida adulta pelo Estado, que provê em suas leis padrão segundo o qual viver. De mais a mais, os cidadãos a lembram uns aos outros, pois é de nosso interesse que nossos próximos entendam as normas da vida social organizada (327a-b). Neste processo contínuo é difícil destacar uma classe de mestres de virtude, mas isto não é mais prova de que não pode ser ensinada do que a falta de instrutores em nossa língua nativa provaria o mesmo sobre a fala.

(...)

"O ensino precisa tanto da natureza como da prática (askesis: isto é, no aluno)". É esta capacidade antecedente, variando entre indivíduos, que ele invoca contra o outro argumento de Sócrates, segundo o qual alguns bons estadistas parecem incapazes de ministrar sua virtude até ao próprio filho. Se a virtude fosse distribuída com o mesmo princípio que as outras artes (326e ss), com um praticante a muitos leigos, o caso poderia ser diferente, embora mesmo então os filhos de muitos artistas, treinados por seus pais, sequer podem lhes segurar a vela (328c). Mas como ocorre, todos têm algum talento para a virtude e todos continuamente o desenvolvem por vários processos, às vezes não notados. Nesta situação, as vantagens de contato com pai proeminente não podem ter tanto efeito como a capacidade natural do filho, ...que pode ser muito inferior.

Quanto a suas próprias pretensões como sofista, dado que a virtude pode ser ensinada, e é continuamente instilada em infinita variedade de formas simplesmente pela experiência de crescer num Estado bem governado, devemos, conclui ele modestamente, estar satisfeitos se pudermos encontrar alguém bastante melhor que o resto para nos fazer avançar pelo caminho, e isso é tudo o que alego ser.” [Osório diz: O que é a virtude? É bem gerir (administrar) sua casa e o Estado, ensina Protágoras]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 67-69).

 

 

 

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45.21 – Cultura – nascimento e organização.

 

Ensina Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

Esta história do homem é uma história natural: para Pródico, o desenvolvimento da civilização faz-se essencialmente por meio de tudo o que se relaciona com a terra e com a agricultura. Por esta religião da terra, Pródico relaciona intimamente culto e cultura; não opõe, portanto, nomos e physis, mas faz derivar, em continuidade de uma com a outra, a lei da natureza.” [Osório diz: não opositor entre nomos e phýsis, mas harmonizador]

(Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 61).

 

 

 

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45.20 – Protágoras como o criador da cultura geral.

 

Vendo no homem essencialmente um cidadão que, em relação ao Poder, é parte beneficiada, não há dúvida que Protágoras é, realmente, o criador da cultura geral [Osório diz: afirmativa poderosa e desconsertante!]. A divisão do trabalho não permite a constituição do discurso forte porque destrói todo o espaço de troca [Osório diz: o trabalho como impeditivo do discurso]; compreende-se então, a razão da desconfiança de Protágoras perante as diversas técnicas (téchnai) que opõe à política.” (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 28).

 

 

 

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45.19 – O humanismo radical de Protágoras (humanismo sofístico).

 

O agnosticismo de Protágoras é talvez disto resultante, o ponto neutro entre os dois discursos opostos que, a propósito dos deuses, se confrontam, o da crença e o da descrença. Se os dois discursos aqui se anulam em vez de deixar um sobrepor-se ao outro, é porque se trata do domínio do invisível e do escondido; o sofista guarda a sua resposta, ou adia-a, na impossibilidade de poder levar a cabo uma fenomenologia do divino, ou de querer elaborar uma teologia do obscuro. Em todo o caso, este agnosticismo prepara e permite o momento seguinte do pensamento de Protágoras, a afirmação do homem-medida: se os deuses não se deixam afirmar, então fica o homem. A prova está em que Platão, nas Leis, substituirá a fórmula protagórica de ánthropos métron por esta: “o deus é a medida de todas as coisas.” [Osório diz: Platão joga a toalha!]

Protágoras prepara, assim, pela negação de todo o recurso ao absoluto, um humanismo radical.” (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 20-21).

 

Nos diz Guthrie:

 

Ele foi um dos que opunham lei e natureza e defendia esta última por motivos morais e humanitários, e não egoísticos e ambiciosos. Defendeu uma forma da teoria de contrato social da lei: a lei positiva, sendo assunto de acordo humano e freqüentemente alterado, não se devia considerar como fornecendo padrões fixos e universais de comportamento. Podia ser “um tirano fazendo violência à natureza”. Acreditava, porém, que havia leis não-escritas, divinas de origem e universais na aplicação, referentes a coisas tais como a adoração dos deuses e o respeito para com os pais. Com a crença em leis naturais universais (e para Hípias natural e divino parece ser o mesmo) ia a crença na unidade básica do gênero humano, cujas divisões são apenas assunto de nomos, isto é, lei positiva e convenções e hábitos estabelecidos, mas errados.” (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 263-264).

 

 

 

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45.18 – A pena de morte, por Protágoras.

 

Uma adequada compreensão da teoria da sociedade, de Protágoras, requer uma cuidadosa consideração da natureza e da base da distribuição desse novo cimento social introduzido sob o nome de aidós e diké. Em primeiro lugar, será que Protágoras quer dizer, como muitas vezes se tem afirmado, que todos os homens possuem aidós e diké por natureza? Parece claro que os poderes dos animais são tidos como possuídos por natureza. É possível que a habilidade nas artes também assim seja possuída pelos seres humanos. Foi dada à humanidade antes de os homens começarem a vida na terra e é, para os homens, o que os poderes são para os animais. Mas aidós e diké estão numa situação diferente — são alguma coisa adquirida depois que o homem estava vivendo no mundo. Zeus ordena que todos os homens compartilhem delas e toma providências a respeito do que fazer com os que são incapazes de compartilhar. É verdade que a providência é a morte, mas isso sugere que suas naturezas não podem ser modificadas, e não que Zeus esteja acrescentando alguma coisa à natureza humana como tal. O fato de se julgar que todos os homens compartilham de aidós e dikê não é, em si mesmo, suficiente para mostrar que o fazem por natureza. Temos, de fato, a razão mais forte possível para supor que Protágoras não as considera compartilhadas por natureza. Platão o faz dizer, na declaração explanatória no final do mito (323c3-8):

 

essas, portanto, são as razões que eu dei para explicar por que eles [os atenienses] com razão permitem que todos os homens dêem o seu parecer a respeito de [assuntos que envolvem] virtude política, porque eles acreditam que todo homem compartilhe dela; mas, que eles julgam que essa participação não vem da natureza, nem é de origem espontânea, e que é por aprendizagem e prática que ela está presente em quem quer que seja, é o que vou tentar demonstrar em seguida.” [Osório diz: tudo isso também demonstra que o homem medida não se aplica a valores]. [Osório diz: democracia é prática constante]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 243-244).

 

 

 

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45.17 – A literatura, por Protágoras.

 

Finalmente, literatura. Aqui temos notícia de Protágoras dizendo (Prot. 338e6-339a3) que, na sua opinião, a maior parte da educação de um homem consiste em ser perito em assunto de versos, isto é, ser capaz de entender, na fala dos poetas, o que foi correta ou incorretamente composto, saber como distingui-los e comentá-los quando solicitado [Osório diz: justamente a repetição de que falará Sócrates]. E prossegue introduzindo uma elaborada discussão de um poema por Simônides; esta, por sua vez, provoca novas análises por Sócrates e Pródicos, e a proposta de uma exposição por Hípias, que é rapidamente recusada por causa de uma reunião presidida por Alcibíades, com a solicitação de que a faça numa outra ocasião. Que a exposição rejeitada de Hípias poderia ter sido enfadonha é sugerido pelas referências às suas epideixis sobre Homero e outros poetas, no Hípias Menor 363 al-c3. A discussão toda, no Protágoras, ocupa mais ou menos um sexto do diálogo completo; e sabemos, por um fragmento de papiro que Protágoras de fato comprazia-se na crítica literária de Homero (DK 80A30). Um pouco mais tarde, Isócrates (XII, 18) conta como certa vez, no Liceu, três ou quatro sofistas, simples e comuns, estavam sentados discutindo poetas, especialmente Hesíodo e Homero. É claro que a prática seguida por Protágoras continuou por muito tempo depois. [Osório diz: Protágoras e a crítica literária]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 72).

 

 

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(uma biografia do conhecimento)

 

45.16 – A crítica a Homero formulada por Protágoras (crítico literário).

 

Finalmente, literatura. Aqui temos notícia de Protágoras dizendo (Prot. 338e6-339a3) que, na sua opinião, a maior parte da educação de um homem consiste em ser perito em assunto de versos, isto é, ser capaz de entender, na fala dos poetas, o que foi correta ou incorretamente composto, saber como distingui-los e comentá-los quando solicitado [Osório diz: justamente a repetição de que falará Sócrates]. E prossegue introduzindo uma elaborada discussão de um poema por Simônides; esta, por sua vez, provoca novas análises por Sócrates e Pródicos, e a proposta de uma exposição por Hípias, que é rapidamente recusada por causa de uma reunião presidida por Alcibíades, com a solicitação de que a faça numa outra ocasião. Que a exposição rejeitada de Hípias poderia ter sido enfadonha é sugerido pelas referências às suas epideixis sobre Homero e outros poetas, no Hípias Menor 363 al-c3. A discussão toda, no Protágoras, ocupa mais ou menos um sexto do diálogo completo; e sabemos, por um fragmento de papiro que Protágoras de fato comprazia-se na crítica literária de Homero (DK 80A30). Um pouco mais tarde, Isócrates (XII, 18) conta como certa vez, no Liceu, três ou quatro sofistas, simples e comuns, estavam sentados discutindo poetas, especialmente Hesíodo e Homero. É claro que a prática seguida por Protágoras continuou por muito tempo depois.” [Osório diz: Protágoras e a crítica literária]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 72).

 

Diz Fausto dos Santos:

 

Direcionar seus estudos para a linguagem, seja através da crítica literária, como vemos Protágoras fazer no homônimo diálogo platônico, ao analisar um poema de Simônides (Cf. Protágoras, 339 a)” [Osório diz: Protágoras como crítico literário].

(…)

Também Protágoras, a julgar pelos testemunhos de Diógenes Laércio e de Aristóteles, interessou-se por questões lingüísticas propriamente ditas, pelo que, Jonathan Barnes (1992, p. 542) nos diz: "Protágoras tem certo direito a receber o nome de inventor da sintaxe". E Górgias - que se orgulhava de ser reconhecido como um "bom orador" (Cf. CÓRGIAS, 449 a) - como afirma o helenista lusitano Pinharanda Gomes (1987, p. 74), "[...] manteve fixa atenção à filologia e à arte das palavras no conjunto de significante e significado". (fl. 58) [Osório diz: Górgias como filólogo]. (Fonte: Filosofia Aristotélica da Linguagem, Fausto dos Santos, Ed. Universitária Argos. Capecó-SC, 2002, p. 57 e 58).

 

 

 

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45.15 – O que Protágoras se propunha a ensinar.

 

No Protágoras de Platão, Protágoras, no início do diálogo, é apresentado com um novo aluno, Hipócrates, e declara o que se propõe a ensiná-lo: "a prudência nos negócios domésticos que o capacite a dirigir a sua própria casa, e a sabedoria nos negócios públicos que melhor o qualifique para falar e agir nos negócios do Estado" (318e). Sócrates pergunta se essa é a arte da política e se Protágoras está se encarregando de fazer dos homens bons cidadãos, e Protágoras concorda (319a). Sócrates replica que supunha que essa arte não pudesse ser ensinada, e dá duas razões: (1) os atenienses são tidos como sábios, entretanto, embora introduzam especialistas na assembleia para os aconselhar em assuntos técnicos, consideram todos os cidadãos igualmente capazes de aconselhá-los em assuntos relativos à cidade (319b-d).” (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 226),

 

A resposta de Protágoras, dada por Platão (Prot. 318d7-319a2), é esta:

 

Quando Hipócrates vier a mim, não será tratado como seria se fosse a qualquer outro sofista. Pois os outros causam danos aos que são jovens [Osório diz: disputa entre sofistas! Daí Platão fazer do Sofista Sócrates o sofista diferente de todos os demais]; quando saem dos estudos especializados, eles os pegam outra vez contra a sua vontade e os lançam de novo em estudos especializados, ensinando-lhes cálculos matemáticos, astronomia, geometria, música e literatura — e ao dizer isso, olhou para Hípias —, mas se vier a mim ele não estudará nada mais além daquilo que veio aprender. E o assunto é boa política: em negócios particulares, como governar sua própria família do melhor modo possível; e, nos negócios públicos, como falar e agir mais eficazmente nos negócios da cidade. [Osório diz: o que Protágoras se propunha a ensinar]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 68).

 

Acrescenta Guthrie:

 

Protágoras, que se gloriava do título de sofista e anunciava orgulhosamente sua habilidade de ensinar ao jovem “o cuidado adequado de seus negócios pessoais, para poder administrar melhor sua própria casa e família, e também dos negócios do Estado, para se tornar poder real na cidade, quer como orador, quer como homem de ação”.

(...)

Para Protágoras, qualquer discussão é “batalha verbal”, na qual deve sair vencedor e o outro vencido, em contraste com o ideal expresso de Sócrates da “busca comum”, um ajudando o outro para que ambos possam chegar mais fácil à verdade. Tucídides contrapõe-se aos sofistas quando diz que sua obra não visa a ser "peça de competição para uma só ocasião" mas possessão para todo tempo. Como amiúde, Eurípedes faz suas personagens falar em verdadeiro estilo contemporâneo sofista como quando o arauto de Crêon canta o elogio da monarquia como oposta à democracia e Teseu responde (Sup. 427s): "Uma vez que tu mesmo começaste esta competição, ouve-me; pois foste tu que propuseste uma batalha de palavras". (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 24 e 45).

 

 

 

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(uma biografia do conhecimento)

 

45.14 – O mito de Prometeu, por Protágoras.

 

O mito, propriamente dito, se estende de 320c8 a 322d5. É seguido por uma passagem explanatória, 322d5-323a4, e esta, por sua vez, é seguida pelo que parece ser uma série de argumentos independentes até 324dl. Aí Protágoras diz que ainda resta uma dificuldade (a dos filhos de homens bons). "A respeito deste ponto, Sócrates, não lhe relatarei um mito, mas um logos." Esta sentença deixa claro duas coisas: o logos só começa aqui, e não antes, em 323a4, e, em certo sentido, considera-se que a discussão do mito continua até este ponto, 324dl. Como o mito propriamente dito claramente termina em 322d5, isso só pode significar que a seção toda 322d5-324dl é considerada uma explanação e aplicação do mito. Então a última sentença da seção, 324c5-dl, deve ser considerada um resumo do conteúdo do mito.

[...]

A interpretação ortodoxa dessa passagem toca as raias do despropositado ao querer argumentar que a expressão "em virtude de seu parentesco com deus" deveria ser excluída do texto por ser inconsistente com o agnosticismo declarado de Protágoras, ou que, se for mantida, é testemunho de que o mito é obra de Platão e não de Protágoras. Mas o mito, como um todo, está construído em torno das atividades de Zeus, Prometeu e Epimeteu, e o fato de ser um mito despoja-o de qualquer possível conflito com o agnosticismo de Protágoras. A distribuição divina, ou Moira, na qual o homem veio a participar, não é tanto a dádiva do fogo, embora esta esteja incluída, quanto a sabedoria (Sofia), que sempre foi associada ao divino; e o parentesco com os deuses é provavelmente algo que resulta da participação do homem na sabedoria divina. De fato, o mito todo, tanto aqui como alhures, apresenta nada mais do que uma espécie de projeção ou reflexão, no nível divino, das forças identificáveis que operam entre os seres humanos neste mundo5. Exatamente o mesmo se aplica no caso da concessão de aidós e dikê, que forma o estágio seguinte no mito — o dom deles representa a aquisição, através do estudo, daquelas qualidades, nos seres humanos, que são a condição para a manutenção de sociedades humanas ordenadas6. Isso significa que sua preocupação com a religião não era, primeiramente, para conduzir uma polêmica contra as ideias tradicionais dos deuses, mas, antes, para tratar a religião como um fenômeno humano positivo com a valiosa função de atuar nas sociedades. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 227 e 285-286).

 

O mito de Prometeu é harmonizado, segundo Barbara Cassin, por Antifonte. Diz a francesa:

 

Para retomar agora a partir da ideia de que há um único Ântifon, pode-se tentar, brevemente, caracterizar a unidade de sua pessoa e de sua obra? Antes de mais nada, a proximidade da retórica e da sofística é um lugar comum desde o julgamento de Platão (no Górgias, por exemplo) até o de H. Gomperz (Sophistik und Rhetorik), passando pela definição filostrateana da antiga sofística como "retórica filosofante" (V. S., I, 480). Com a sofística, é assim o lógos que precede o ser, o ser torna-se um efeito de dizer13. Ântifon, diz-nos Tucídides, é extremamente hábil em promover a convicção: seu trabalho de orador, como de sofista, como de homem político, consiste em produzir a homónoia, o "consenso" ou a "concórdia", identidade de sentimento e de ideia entre si e si mesmo e em uma mesma casa, mas 'sobretudo entre os homens de uma mesma cidade e entre as próprias cidades (B44 a D.K.). Essa identidade só pode surgir a partir das opiniões existentes, quer harmonizemos suas singularidades, quer as transformemos para produzir uma nova opinião comum. A identidade não é mais então o princípio de igualdade a si mesmo, de unidade e de unicidade intemporal colocado pelo eleatismo ("o ser é, o não-ser não é" e "o que é, é o um") e pela física jônica ("tudo é água" diz Tales, "tudo é um"); ela deve, ao contrário, ser conquistada sem cessar, ser construída em toda precariedade por meio dos discursos. A cidade, efeito da homónoia, torna-se o substituto temporal e finito do ser ou da natureza na grande tradição ontológica: todo homem desde o início "cidadaniza", não transgredindo nenhuma lei de sua cidade (Sobre a verdade, A, 1). A "natureza" de que fala em seguida o papiro é sempre, conseqüentemente, apenas segunda, escapada do secreto, do privado, para o império da lei pública: é reencontrada quando se sabe "servir-se utilmente" da justiça para si mesmo, quer dizer, quando se chega a escapar à lei, não somente como culpado mas mesmo como vítima, já que a lei não poderia prevenir o primeiro erro: ou como testemunha, já que é se engajar na série dos erros e das reparações (A, V, VI). Uma das noções centrais que atravessa o conjunto das obras de Ântifon é, assim, a do "uso": boa prática da justiça (A, I, 12), mas também das riquezas (Sobre a concórdia, B54, 12-14), dos fatos, de todos os traços de identidade que se trata de recolocar em jogo sem cessar (Discursos, Tetralogias). Notemos que, mesmo nos Discursos, que puderam parecer o bastião de um Ântifon não sofista, reencontramos esses temas principais que são a oposição privado/público, escondido/em presença das testemunhas (Sobre o Coreuta, 9, Gernet, p. 145; Acusação de envenenamento, 23, p. 45), a potência do discurso, a preocupação em convencer, a relação à opinião ao verossímil e ao consenso (Sobre o Coreuta, 31, pp, 154-156: Sobre o assassinato de Herodes, 1-7, p. 88ss.).

(...)

Mediante isso, a primeira sofística produz pelo lógos “a força do fraco” (para retomar a expressão de J. F. Lyotard): a cidade democrática que só existe pela criação contínua da homónoia cara a Ântifon. É a lição do mito de Protágoras, com a condição de acrescentar ao lógos que faz parte das artes pro meteicas, a sabedoria e a justiça que são um dom suplementar de Zeus. E a segunda produz, como testemunha a retomada do mito por Élio Aristides e a série de decalagens muito sutis que ele aí introduz (Ret., II, 394-402), não a partilha do lógos e o nivelamento, graças a ele, do forte e do fraco, mas uma mestria de professor, que se apresenta como o modelo e a condição da dominação política. Pois dessa vez o lógos por si só constitui o dom direto de Zeus, que Prometeu o filantropo pede que Hermes não reparta entre todos, como as bases do teórico, ou os olhos as mãos e os pés, os "órgãos" pois. É antes necessário selecionar "os melhores, os mais bem nascidos, aqueles que têm a mais forte natureza" para lhes confiar o dom retórico, a fim de que eles tenham como salvar os outros. O lógos assim repartido torna-se para a comunidade não um phármakon, mas um phylakterion um amuleto, um escudo, ou, segundo a etimologia, “o guardião que não dorme jamais". Os melhores retores são assim, hierarquicamente, os melhores professores e os verdadeiros chefes políticos, em um amálgama que mascara, não sem ideologia, a privação de toda eficácia política direta, concreta: é assim que na escola, com as melétai, faz-se, segundo as palavras de Vidal Naquet, "ficção-política".” [O que é phylakterion?]. (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 142-144 e 267-268).

 

Guthrie explica como Protágoras fez uso dos deuses no mito de Prometeu:

 

Esta nos adverte plenamente que a introdução dos deuses não se deve levar a sério, mas pode-se eliminar como adorno ao relato. Platão sabia perfeitamente que Protágoras era agnóstico religioso (cf. Teet. 162d), e não tinha nenhum desejo de enganar.” (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 65).

 

 

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45.13 – Sobre se a virtude pode ser ensinada, por Protágoras.

 

Sobre o significado de Areté, nos diz Guthrie:

 

Arete, comumente traduzido assim, mas não tenho necessariamente as implicações morais que se costumam ligar com “virtude”. Significa a excelência característica que faculta qualquer criatura, órgão ou instrumento realizar sua função específica.(V. p. 234, abaixo). Em 353a-b Sócrates fala de arete de olhos e ouvidos: até uma faca a tem se é bem desenhada e aguda. Imediatamente depois disso, Trasímaco concorda com Sócrates em que ele chamaria o tirano injusto de "sensato e bom", usando o T hjetivo agathos que corresponde a areie. Não precisa estar envolvido nenhum juízo moral, embora Sócrates o tome na esfera moral acrescentando palavras como kalon e aischron, e Trasímaco inadvertidamente concorda.” [Osório diz: vejam como são as coisas! Todos os admiradores de Platão, e é o caso do autor, o têm por genial e sagaz, mas, quando lhes interessa, desonestamente, dizem que ele agiu “inadvertidamente”, logo ele, que tudo que faz é perfeito, estudado, analisado]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 87-88).

 

Nos explica Kerferd:

 

A discussão da relação entre natureza e aretê leva diretamente ao que foi um dos principais temas de debate tanto na segunda metade do século V a.C. como em quase todos os diálogos de Platão: a questão de saber se aretê, ou virtude, pode ser ensinada. A tradução tradicional de aretê por "virtude" corre o perigo de obscurecer a importância desse debate. De modo geral, a virtude denotada por aretê compreendia todas aquelas qualidades que, no homem, contribuíam para o sucesso na sociedade grega e que seguramente garantiam a admiração dos seus concidadãos, sendo acompanhada, em muitos casos, por substanciais recompensas materiais. A possibilidade de serem ensinadas haveria de ter uma influência fundamental no funcionamento e na estrutura da sociedade na qual o ensino se realizasse. Como já foi rapidamente mencionado no Capítulo 4 (p. 67), a aquisição desse tipo de aprendizagem torna possível a qualquer um elevar-se a qualquer altura numa dada comunidade. E, portanto, uma chave para a mobilidade social. Um resultado eventual é que aqueles que são capazes de desenvolver tais qualidades em outros, isto é, os que ensinam, têm uma parte particularmente importante a desempenhar na promoção da mudança social ou, pelo menos, em ajudar a torná-la possível. Sob Péricles, a sociedade ateniense estava mudando muito e não é por acaso que foi ele, acima de tudo, quem favoreceu e encorajou o movimento sofista em Atenas. [Osório diz: daí o ódio nutrido a eles por Crítias e seu sobrinho Platão!]

Saber se virtude pode ser ensinada é o assunto do capítulo VI no Dissoi Logoi, capítulo que provê um resumo proveitoso, se não muito profundo, de alguns dos argumentos envolvidos. Tem se asseverado, nos é dito no parágrafo inicial, que sabedoria e virtude não podem nem ser ensinadas, nem aprendidas. Este logos, é dito, não é nem novo nem verdadeiro, e o capítulo conclui com a afirmação: "eu não digo que sabedoria e virtude podem ser ensinadas, mas apenas que as provas acima mencionadas são suficientes para mim" [1 O texto clássico aqui é normalmente corrigido para dizer: "mas as provas acima mencionadas não são suficientes para mim". Mas isso destrói a antítese, e a leitura do manuscrito deveria ser retida, segundo, p. ex., Untersteiner, Softstí, Testimonianze e Frammenti, fase. III, 182.]. O propósito dessa declaração final é, presumivelmente, manter um elemento de ceticismo sobre a validade objetiva de afirmações desse tipo — seu sentido, então, será "Eu estou plenamente satisfeito quanto à possibilidade de serem ensinadas, não importa o que outros possam dizer". De fato, pode-se bem compreender que a profissão sofista, como um todo, simplesmente não podia aceitar a doutrina de que virtude não pode ser ensinada, e Protágoras, tal como representado no Teeteto de Platão, foi muito franco a esse respeito. Não seria de esperar que algum sofista discordasse, do mesmo modo que não seria de esperar que um moderno profissional do ensino aceitasse a opinião de que ensinar é impossível. [Osório diz: para os sofistas a virtude é ensinável!]

Uns cinco argumentos são mencionados, no Dissoi Logoi, em favor da intolerável doutrina de que virtude não pode ser ensinada. O primeiro é que não é possível reter com você alguma coisa que você entregou a outra pessoa. Um argumento desse tipo só pode ter surgido no seio do movimento sofista, não fora dele. Faz lembrar a opinião exposta por Górgias, na terceira parte do seu Sobre a natureza, que não é possível comunicar o que se sabe a alguém mais. O compilador do Dissoi Logoi não tem dificuldade em descartar isso como "mera tolice", visto que sabe, como todo mundo, que há professores que ensinam a ler e escrever, embora continuem possuindo o conhecimento daquilo que ensinam; a mesma coisa acontece com os que tocam lira. Isso sugere que quem compilou o Dissoi Logoi não estava falando como um partidário de Górgias, assim como a conclusão do capítulo igualmente sugere que não estamos tratando com um discípulo de Protágoras.

Os quatro argumentos restantes, contudo, têm certamente afinidades com os que Protágoras estava preocupado em responder. São eles: que teria havido professores de virtude reconhecidos, como os de música, se virtude pudesse ser ensinada; que os homens sábios teriam transmitido sua sabedoria a seus amigos e suas famílias; que alguns alunos tinham ido para os sofistas e não tinham obtido nenhum benefício deles; e que muitas pessoas que se elevaram à eminência não estiveram associadas aos sofistas. Será conveniente considerar esses argumentos na sua forma mais extensa, tal como é vista na discussão no Protágoras de Platão; Protágoras, no início do diálogo, é apresentado com um novo aluno, Hipócrates, e declara o que se propõe a ensiná-lo: "a prudência nos negócios domésticos que o capacite a dirigir a sua própria casa, e a sabedoria nos negócios públicos que melhor o qualifique para falar e agir nos negócios do Estado" (318e). Sócrates pergunta se essa é a arte da política e se Protágoras está se encarregando de fazer dos homens bons cidadãos, e Protágoras concorda (319a). Sócrates replica que supunha que essa arte não pudesse ser ensinada, e dá duas razões: (1) os atenienses são tidos como sábios, entretanto, embora introduzam especialistas na assembleia para os aconselhar em assuntos técnicos, consideram todos os cidadãos igualmente capazes de aconselhá-los em assuntos relativos à cidade (319b-d) [Osório diz: Platão versus Sócrates! Este fala aos atenienses]; (2) os mais sábios e melhores dos cidadãos não são capazes de transmitir essa virtude aos outros. Assim, Péricles educou bem seus filhos em tudo que poderia ser ensinado por professores, mas não tentou ensinar-lhes, ou providenciar que lhes fosse ensinada, a sua própria sabedoria, mas deixou que eles a adquirissem sem ajuda (319d-320b). [Osório diz: mais uma contradição platônica!]

Agora Protágoras, tem-se assinalado, está numa posição difícil. Ele se vê aparentemente confrontado com a escolha entre admitir que virtude não pode ser ensinada e que sua profissão é uma fraude, ou declarar que a teoria da democracia ateniense é falsa, e seu patrono, Péricles, é ignorante da verdadeira natureza da virtude política. Sua resposta toma a forma de um mito seguido de um argumento estereotipado (logos). [Osório diz: contra quem briga Platão?]

O mito, propriamente dito, se estende de 320c8 a 322d5. É seguido por uma passagem explanatória, 322d5-323a4, e esta, por sua vez, é seguida pelo que parece ser uma série de argumentos independentes até 324dl. Aí Protágoras diz que ainda resta uma dificuldade (a dos filhos de homens bons). "A respeito deste ponto, Sócrates, não lhe relatarei um mito, mas um logos." Esta sentença deixa claro duas coisas: o logos só começa aqui, e não antes, em 323a4, e, em certo sentido, considera-se que a discussão do mito continua até este ponto, 324dl. Como o mito propriamente dito claramente termina em 322d5, isso só pode significar que a seção toda 322d5-324dl é considerada uma explanação e aplicação do mito. Então a última sentença da seção, 324c5-dl, deve ser considerada um resumo do conteúdo do mito.

O mito propriamente dito (320c8-322d5) descreve como, antes do dia predeterminado em que as criaturas mortais deviam vir à luz, saindo de dentro da terra, Epimeteu distribuiu os vários "poderes" entre os animais segundo um princípio igualador, para garantir-lhes proteção tanto um contra o outro como contra os elementos (320d-321c). Mas os seres humanos não receberam nenhum desses poderes e por isso ficaram desprotegidos. Por isso Prometeu roubou, para eles, a habilidade artesanal, junto com o fogo, capacitando-os, assim, para viver. Tudo isso acontece, evidentemente, antes de os homens virem à luz do dia pela primeira vez. Ao chegar à superfície da terra, os homens desenvolveram a religião, a fala e os elementos materiais da civilização. Para se defenderem dos animais selvagens, fundaram postos (poleis) fortificados, mas, como lhes faltava a arte da política, a injustiça impediu-os de viver juntos e eles logo se dispersaram de novo (322a-b). Por isso Zeus enviou Hermes para dar aos homens aidós e dikê para garantir-lhes proteção. As artes foram distribuídas entre os homens da mesma forma como os poderes entre os animais, a saber, diferentes artes para pessoas diferentes [Osório diz: uns mandam, outros obedecem: Platão!]. Mas aidós e dikê devem ser dados a todos os homens, e todos os homens devem participar deles. Qualquer homem incapaz de participar deles deve ser morto, como sendo uma praga para a cidade. [Osório diz: Protágoras e a pena de morte]

Tendo mostrado, assim, que todos os homens são considerados detentores de alguma participação na justiça e na virtude política, Protágoras imediatamente passa a declarar que essa participação não é por natureza, nem é adquirida espontaneamente, mas por instrução e pela prática (323c3-324dl). Os homens não punem outros por defeitos naturais ou casuais, mas os punem por falta de aprender. De fato, nas sociedades civilizadas a punição é uma espécie de ensino. Punição se inflige por deficiências em justiça e virtude. De modo que, por ambos os motivos, justiça e virtude são consideradas ensináveis. Assim baseia-se Protágoras no seu mito, e antes de deixá-lo, resume de novo as duas principais conclusões: virtude é partilhada com todos e pode ser produto de ensino (324c5-dl).

A esta altura, Protágoras abandona o mito e continua com o seu logos. Restam três pontos principais a ser tratados: (1) como todos os homens obtêm a sua participação na virtude, se não é por natureza; (2) por que os homens bons, na opinião comum, não ensinam virtude aos filhos; (3) por que os filhos de homens notáveis tão frequentemente deixam de manifestar a excelência de seus pais. [Osório diz: ensina-se, mas uns não são capazes de aprender!] Ele responde que, como virtude é a base de todas atividades, ela é ensinada sob todas as formas correntes de ensino — por pais, amas, professores na escola, professores de música e instrutores de ginástica. Além disso, ela é ensinada por toda a comunidade através das leis e das punições. É importante notar que Protágoras não está simplesmente dizendo que as pessoas absorvem inconscientemente as tradições da comunidade nas quais vivem — não é uma questão casual, é uma parte essencial do ensino formal recebido por todos. Foi Sócrates quem tinha sugerido a visão inconsciente da educação moral. A resposta de Protágoras é bem categórica: os homens bons realmente educam seus filhos na virtude, e se esforçam muito nisso (cf. especialmente 325d7-9). O que ele quer dizer é que o ensino da virtude é universal através da comunidade e aqueles que a ensinam não têm um nome especial como professores de virtude. É a mesma coisa que ele disse antes, no diálogo: que tinha havido muitos sofistas antes dele aos quais faltava apenas o nome (316d3-e5). [Osório diz: isso parece Platão tentando livrar Sócrates de possíveis críticas]

Finalmente, a diferença, na virtude, entre pais e filhos se explica como devida a variações da aptidão natural das pessoas em questão. Isso há de se verificar sempre que todas as pessoas tiverem praticamente o mesmo ensino e as mesmas oportunidades de aprender. Além disso, algumas pessoas adquirem mais instrução do que outras (326c3-6) e uns professores são melhores do que outros. É um destes professores que Protágoras julga ser (328a8-b5).

O logos que conclui isso não é uma continuação do mito; é, antes, uma alternativa a ele. Assim Protágoras afirma que o logos e o mito mostram, cada um, que virtude pode ser ensinada, e explica a diferença, na virtude, entre filhos e pais (328c3-6). Ambos, mito e logos, claramente oferecem explicações de como todos os homens compartilham a virtude. Por conseguinte, a instrução universal de virtude, no logos, deveria ser considerada uma declaração alternativa da concessão de aidós e dikê, por Zeus, no mito. Os dois são a mesma coisa, um expresso em forma mítica, o outro em forma racionalizada. A concessão de aidós e dikê é o ensino que todas as pessoas recebem na comunidade.

Interpretada assim, a réplica de Protágoras às objeções de Sócrates é consistente de ponta a ponta. Recapitulando: Sócrates objetou que virtude não podia ser ensinada, porque se considera que todos os homens a compartilham, e os que são preeminentes em virtude não transmitem essa preeminência aos seus filhos. Protágoras replica que todos os homens compartilham virtude porque ela é ensinada a todos, e a diferença entre pais e filhos se deve às diferenças em aptidões naturais para a aprendizagem.

A explicação de Protágoras da maneira como se dá a educação numa comunidade é plausível e extremamente persuasiva. Ela de forma alguma é criticada por Sócrates, nas elaboradas discussões que constituem o resto do diálogo. Entretanto, na conclusão, Sócrates mantém (361a-c) que ambos, Protágoras e ele mesmo, agora mudaram para a posição oposta à que tinham no início. Sócrates tinha começado por negar que virtude pudesse ser ensinada ao passo que Protágoras mantinha que podia. Ao final, contudo, Sócrates sustenta que virtude pode ser ensinada, e afirma que a inferência da posição de Protágoras é que ela não pode ser ensinada. Sócrates pôde chegar a essa afirmação somente como resultado da elaborada série de discussões a respeito de virtude com que se ocupa o diálogo a partir de 329b. Nele Sócrates mantém duas coisas: (1) que a única coisa que pode ser ensinada é conhecimento; (2) que virtude é conhecimento, e que as várias virtudes são, afinal de contas, idênticas e constituem uma única virtude indivisa, a qual, por sua vez, resulta da aplicação de um conhecimento indiviso que constitui o que se poderia chamar de saber como ser um homem bom.

Na verdade, a posição de Protágoras é consistente do começo ao fim do debate, e a sugestão de que, no final, ele tinha invertido sua posição baseia-se em nada mais do que ilusão e mistificação [Osório diz: Platão, quando escreve os seus diálogos – e Sócrates já está morto –, tenta mostrar o sofismo, sem contudo, procurar briga com os seus partidários. Deixa aos seus leitores que descubram as características de seu personagem Sócrates]. Sócrates, na sua conclusão (361b3-50), afirma que Protágoras agora está tentando dizer que virtude é alguma coisa diferente de conhecimento. Mas é necessário compreender que conhecimento pode ser de várias coisas diferentes. Uma distinção moderna, familiar agora, é entre saber como fazer alguma coisa e saber que alguma coisa é fato. Ainda podemos conhecer alguma coisa por experiência, quando estamos ou estivemos diretamente em confronto com ela, e isso será diferente do conhecimento baseado em descrições. Sócrates está usando o argumento socrático padrão, segundo o qual só se pode dizer que sabemos do que estamos falando quando estamos em condição de dar uma definição ou outra especificação verbal disso, e é esse conceito de conhecimento que está subjacente a todos os argumentos a respeito das virtudes, de 329b em diante. E ele insiste na suposição de que, no caso das virtudes, esse será um conhecimento único e universal do que é virtude.

Protágoras simplesmente não aceita isso. Como muito bem disse C. C. Taylor2, o que Protágoras está empenhado em explicar é (a) que é possível ensinar a alguém como ser um homem bom, em sentido lato de "ensinar", que inclui condicionamento nos costumes sociais bem como instrução em técnicas específicas tais como retórica, e (b) que as disposições inalteráveis de caráter, que produzem a conduta especificada como apropriada às várias virtudes particulares (p. ex. ações justas ou corajosas), não são idênticas entre si.

Platão retornou ao problema no Mênon, que muito provavelmente foi composto um pouco mais tarde do que o Protágoras. O diálogo se abre com uma pergunta direta feita por Mênon: "Você pode me dizer, Sócrates, se virtude pode ser ensinada? Ou não se ensina, mas é algo que se adquire pela prática? Ou, se não se a obtém pela prática, nem pelo ensino, é ela dada aos homens pela natureza [physis] ou de alguma outra maneira?" A resposta, replica Sócrates, requer uma resposta à questão do que é Virtude. Não se chega, realmente, a nenhuma resposta satisfatória, no diálogo. Mas finalmente concorda-se que talvez se possa proceder baseado num fundamento descrito como hipotético. Procedendo dessa maneira, podemos dizer que, se virtude pode ser ensinada, ela é conhecimento, mas se não pode ser ensinada não é conhecimento. Mênon, então, é levado, talvez facilmente demais, a concordar que, como não há professores de virtude claramente identificáveis, conclui-se que virtude não é algo que se ensina. Convém notar, incidentalmente, que os sofistas são desprezados como professores — eles tornam seus alunos piores, e são visivelmente uma praga e a corrupção daqueles que os frequentam (91 c). [Osório diz: foi isso, exatamente, que condenou Sócrates! E se não se ensina, o que queria o Sócrates platônico falando aos demais atenienses? Se não ensinava, falava por falar? Era “uma planta que fala”, como diz Aristóteles?]

Mas nesse estágio, no Mênon (96d), Sócrates pensa melhor. Não é só sob a orientação do conhecimento que as ações humanas são bem e corretamente feitas. Virtude pode, realmente, ser dirigida pelo conhecimento, mas essa não é a única maneira. Opinião correta (orthê doxa) pode ser tão bom guia quanto o conhecimento para a finalidade de agir corretamente. Ambos, conhecimento e opinião correta, são adquiridos e não vêm pela natureza. Tanto os estadistas como outros homens agem baseados na opinião, não no conhecimento, quando agem corretamente; e a própria expressão orthê para correta, no caso da opinião, sugere pelo menos uma consciência da doutrina sofista do orthos logos, expressão também usada, ocasionalmente, pelo próprio Platão (cf. don 73alO, Leis 890d7, Crítias 109b2). A conclusão que seria de esperar é que, visto que opinião correta se adquire, ela é também adquirida pelo ensino, e parece provável que Platão estava bem consciente de que essa seria a conclusão sofista normal. Mas ele não aceita essa conclusão. Opinião correta se adquire, sim, mas não por ensino, visto que ensino se refere apenas ao conhecimento. Resta que a posição dos estadistas que agem orientados pela opinião correta não deve ser diferente da dos profetas e dos que proferem oráculos, que sob a inspiração divina dizem muitas coisas verdadeiras, mas não têm conhecimento do que estão dizendo. Platão, naturalmente, não pode dizer que os sofistas estão agindo sob inspiração divina, mas o que se infere da discussão, no non, é que, na medida em que possuem opinião correta, se é que, a seu ver, realmente a possuem, eles adquiriram, de algum modo, certo grau de percepção. Na medida em que fossem capazes de comunicar essa percepção estariam, por consequência, desempenhando uma função de valor para a comunidade. [Osório diz: as voltas de Platão]

Da insistência de Sócrates em dizer que virtude é conhecimento conclui-se que vício e mau procedimento só podem ser devidos à ignorância. Isto, por sua vez, leva à famosa afirmação socrática de que "ninguém peca deliberadamente", interpretada como significando que quem possui conhecimento do que é bom e do que é mau invariavelmente faz o que é bom. Para surpresa dos comentadores, descobrimos Protágoras, no diálogo que leva o seu nome, dando o seu assentimento a essa proposição exatamente (Prot. 352c8-d3). Entretanto, ambos, Protágoras e Sócrates estão bem conscientes de que essa não é a opinião comum. Como diz Sócrates (352d): "Você está consciente de que a maioria das pessoas não ouvirá nem a você, nem a mim; mas digamos que muitos, mesmo sabendo o que é melhor, não estão dispostos a fazê-lo, embora tenham poder de fazê-lo e, ao invés, fazem outras coisas. E sempre que lhes perguntei a razão disso, eles dizem que os que agem assim estão agindo sob a influência do prazer ou da dor, ou de algumas das coisas mencionadas agora mesmo" (a saber, impulsividade ou raiva [thumos], prazer, dor, desejo sexual e, frequentemente, medo). O resultado é que consideram o conhecimento um escravo que é arrastado de um lado para outro por todo o resto (352b-c).

A surpresa diante da concordância de Protágoras com Sócrates nesse ponto talvez seja, em parte, produto da concentração no aspecto positivo do ensino de Sócrates, a saber, que virtude é conhecimento e que mau procedimento é, conseqüentemente, uma questão de deficiência intelectual. É certo que não há testemunho nenhum de que o próprio Protágoras sustentasse a doutrina segundo a qual ninguém faz o mal voluntariamente. Contudo, num nível fundamental, não há razão para surpresa. Tanto Sócrates como Protágoras acreditam na educação como a chave para todos os problemas sociais e políticos. Eles divergem radicalmente a respeito de seu conteúdo, mas é só [Osório diz: concordância e divergência entre Protágoras e Sócrates]. Eles acreditam que se as pessoas pudessem ser levadas a compreender a injustiça de suas ações elas não as praticariam. Nem Sócrates, nem Protágoras estão prontos para aceitar a doutrina, claramente tão bem conhecida no seu tempo como no nosso, segundo a qual não se pode esperar das pessoas que resistam aos seus impulsos.

A doutrina de que virtude pode ser ensinada leva naturalmente à célebre teoria da punição desenvolvida por Protágoras. E que é mais bem expressa nas palavras que Platão atribui a ele (Prot. 324a-c):

 

Ninguém pune os que fazem o mal, concentrando-se simplesmente no fato de terem feito o mal no passado, a menos que esteja se vingando cegamente, como um animal selvagem. Quem visa a punir de maneira racional, não o faz por causa da ação má que foi cometida — pois isso não suprimiria o passado — mas o faz em vista do futuro, a fim de que nem o próprio autor do mal, nem ninguém mais que o vê punido, cometa o mal de novo. O homem que é desta opinião considera que virtude pode ser ensinada pela educação. Pois no mínimo ele está punindo a fim de coibir.” [Osório diz: para que serve a punição, segundo Protágoras]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 223-236).

 

Por sua vez, ainda sobre o tema se a virtude pode ser ensinada, Guthrie explana:

 

O debate refletia o choque entre ideais aristocráticos mais antigos e as novas classes que surgiam e predominaram sob o sistema democrático de governo em Atenas e que buscavam estabelecer o que hoje se chamaria de meritocracia [Temo que seja tarde demais para eliminar este termo bastardo e feio substituindo-o por seu meio irmão “axiocracia”. [Osório diz: ???]]. [Osório diz: (Sociologia) Forma de liderança que se baseia no mérito, nas capacidades e nas realizações alcançadas, em detrimento da posição social.] A pretensão de sofistas de que a arete podia ser ministrada por professores ambulantes que cobravam taxas por seu ensino, ao invés de ser gratuitamente transmitida pelo preceito e exemplo da família e dos amigos e por associação com "pessoas certas", ligados às qualidades de caráter inato de qualquer jovem de bom nascimento, era profundamente chocante para os de ideias conservadoras [Osório diz: bem como para as do autor. Guthrie! (O que se discute, ao fim e ao cabo, não é se a arete pode ser ensinada, o que parece que todos concordam que sim, mas se deve ser ensinada mediante pagamento ou gratuitamente!) No caso do autor, será que ele recebe direitos autorais por esta sua obra? Ele foi ou é professor? Sim. Trabalha de graça?]. Filosoficamente, a questão se era assunto de talento pessoal, ou se se podia adquirir por ensino e prática assídua. [Osório diz: aqui a raiz do platonismo anti-sofístico! A briga era pelo poder político. Disputa de classes pelo poder!]

A sentença de Horácio: “fortes creantur fortibus et bonis... doctrina sed vim promovet insitam”. [Osório diz: é o resumo do pensamento aristocrático! Nenhum poder poderia ser exercido por quem não pertencesse a tal classe!].

 

Tradução de:

 

Doctrina sed vim promovet insitam

Rectique cultus pectora roborant;

Utcumque defecere mores,

Indecorant bene nata culpae. (HORACE, Ode IV, lib. IV)

 

Os bravos nascem dos bravos e dos corajosos;/ há nos touros, há nos cavalos o fervor do pai/ e as águias guerreiras/ não geram pombas fracas: (tradução de Anderson Salvaterra Magalhães).

A velha ideia é exemplificada por Teógnis no séc VI. Escreve [ele] para seu amigo Cirno (vv. 27ss. Diehl; o resto de sua poesia deixa claro que para ele "bom" e "nobre" significa da "classe certa"):

 

Pela afeição que te tenho dir-te-ei o que eu mesmo aprendi de homens bons quando ainda era criança. Não tenhas relações com homens maus, mas apega-te sempre aos bons. Beba, coma e tome assento com os grandes e poderosos e tenha prazer em sua companhia, pois dos nobres aprenderás caminhos nobres, mas se te misturares com os maus perderás o senso que tiveres. Entende isto e associa-te aos bons, e dirás um dia que sou bom conselheiro para meus amigos.

 

Anito expressou seu desprezo pelos profissionais, afirmando que “qualquer cavalheiro ateniense” seria para Meno mais apto para a vida política do que qualquer sofista. [Osório diz: Anito é outro, que bem ou mal, se destacou na vida política ateniense, logo, não era tolo, logo não poderia, também, ter confundido tanto Sócrates com os Sofistas]

Em Eurípedes (fr. 609) soa mais verossímil o lugar-comum que se tornou no dito de Menandro: “Más companhias corrompem os bons costumes”. Um companheiro mau, diz ele, educa os comparsas para serem iguais a ele, e de modo semelhante o bom companheiro, e, por isso, devem os jovens buscara boas companhias; um sentimento repetido num sofista verdadeiro, Antífon (fr. 62): “Um homem vem necessariamente a parecer com quem se associa pela maior parte do dia”. [Osório diz: senhor Guthrie, quer dizer que tinham os sofistas verdadeiros e os falsos? Como se faz para distingui-los? Eram verdadeiros para quem? Para os falsos não-sofistas, os verdadeiros sofistas são os falsos]

A exaltação que Píndaro faz dos dons naturais (phya) é aristocrática, 4 e os contextos em que se expressa mostram como a questão se pode ensinar a arete se insere na antítese geral entre physis e arte, ou physis e nomos.

Ol. 2,86: "Sábios são aqueles para os quais o conhecimento de muitas coisas vem por natureza; mas os que aprendem impetuosos e gárrulos como vacas, pronunciam palavras inúteis.

Ol. 9.100: O que é natural é sempre melhor, mas muitos saltaram rumo à fama através de proezas (aretai) obtidas pelo ensino”. [Osório diz: “proezas obtidas pelo ensino”?! Canalha quase socrático-platônico!]

Não quer dizer que não se possa melhorar talento inato mediante treinamento. [Osório diz: menos mal, não é senhor Píndaro?]

Os poemas de Píndaro foram feitos por encomenda, [Osório diz: pena paga!]

Arete, qualificada adequadamente, significava excelência ou proficiência [nas] atividades. É bastante natural, mas se precisa dizer em vista da tradução tradicional e desorientadora em português como "virtude".

Píndaro, que na décima Pítia (v. 23) escreve de alguém que “conquistando por suas mãos ou pela arete de seus pés, ganha os maiores prêmios por sua força e ousadia” [Argumentando no Meno que arete não se pode ensinar, Sócrates (em 93c-d) comenta sobre o fato de que Temístocles foi incapaz de comunicar suas virtudes de estadista ao próprio filho, e, sem insinuação de ironia, indica a habilidade do jovem de atirar a lança estando montado como prova de que não lhe faltava talento natural. [Osório diz: Isso não é confundir (propositalmente) coisas materiais com imateriais? Vide p. 236 (final) e 237]]. Nesse sentido, também cavalos podem tê-la […] assim como também objetos inanimados ou substâncias como o solo (isto é, fertilidade) [...] ou algodão.

Depois ele continua a expor o seu ponto de vista afirmando que a psyche humana também tem sua função, ou seja, governar os elementos inferiores, deliberar, e, em geral, assegurar uma vida vivida ao melhor nível da capacidade humana, e que sua arete própria se deve identificar com a justiça e a retidão.

Heráclito […] declarou que “a maior arete é o autodomínio”.

Quando pede a Meno que lhe diga “o que é a arete”, Meno pensa que se trata de pergunta fácil, pois ele pode dizer o que seja a virtude de um homem, uma criança, uma mulher, um escravo, ou qualquer pessoa ou qualquer coisa. Mas fica pasmado quando Sócrates replica que ele não quer uma lista de virtudes, mas uma afirmação de essência, forma ou ser de uma entidade ou uma coisa, virtude, que a seu ver deve ser comum a elas todas para justificar chamá-las por um só nome.

Depois de mencionar Sócrates pelo nome como defensor de que autodomínio, coragem e justiça são os mesmos para a mulher como para o homem, Aristóteles continua (…): “Os que falam em termos gerais, dizendo que virtude é 'o bem-estar da alma' ou 'ação correta' ou coisa semelhante, estão errados. Enumerar as virtudes, como fez Górgias, está muito mais perto do alvo do que fazer esse tipo de definição”. [Osório diz: Aristóteles contra Sócrates e a favor de Górgias!]

Para Sócrates é tão legítimo perguntar por uma definição geral de virtude como o é pedir uma definição de um inseto e objetar quando uma lista de insetos é oferecida em vez disso; a Meno talvez não se deva inteiramente censurar quando ele diz que pode entender a pergunta enquanto assim aplicada ao gênero natural, mas não pode captá-la tão facilmente quando ela se transfere à virtude, que ele sente que não é inteiramente paralela com os outros casos mencionados por Sócrates (72d, 73a). [Osório diz: misturar lista de “virtude” com lista de “insetos”, já aparenta um absurdo, mas podemos aceitar para não perder o amigo, mas fazer a comparação entre o “gênero natural” (inseto) e a virtude!]

Górgias teria, sem dúvida, afirmado que Sócrates estava tentando estender um método apropriado à ciência natural além de sua própria esfera [Osório diz: além dos socráticos e asseclas dizerem que Sócrates não se interessava por ciências naturais! Como, então, sabê-las?]. A abertura de sua Helena é um bom exemplo de sua prática pessoal. Para explicar o sentido de kosmos, onde Sócrates teria buscado uma definição oniabrangente, ele escreve: “Kosmos é para uma cidade a masculinidade de seus cidadãos, para um corpo beleza, para uma alma sabedoria, para uma ação virtude, para o discurso verdade. Akosmia é o oposto destas coisas”. Esta relutância em dar uma definição geral é conseqüência da crença sofistica, partilhada por Protágoras, na relatividade dos valores [Compare a leitura minuciosa de Protágoras sobre a relatividade da bondade em Protágoras (pp. 157s acima). Esta observação é feita por Versényi, o qual comenta que "em Protágoras, a relutância não leva à negação da unidade da virtude, mas a uma definição mais formal que material (a equiparação do bem com o útil, adequado, apropriado etc.)". Sobre a diferença entre Sócrates e os sofistas neste assunto vale ver Versényi (Socr. Hum. 41s). V. suas pp. 76ss.]. [Osório diz: no estava certa, já que ninguém conseguiu, até hoje, tal proeza!]

Embora Meno proponha sua pergunta a Sócrates na forma de alternativas precisas, não é provável que alguém acreditasse que a arete seja atingível só pela generosidade da natureza ou por esforço pessoal ou por instrução de outros. Píndaro mesmo admitia que o dote natural pode-se aguçar por treinamento, e, ainda que Hesíodo falasse como camponês, e não como aristocrata, quando pronunciou seu famoso dito sobre os deuses que punham suor na vereda do sucesso (Erga 289), seu poema tornou-se parte da herança grega, e ninguém era tão irrealista para supor que se podia alcançar grandeza sem esforço. Havia, porém, grande diferença na ênfase posta nos três elementos: dote natural, prática ou esforço pessoal, e ensino respectivamente.

Que a “virtude” se podia ensinar era a base da pretensão dos sofistas por um meio de ganhar a vida, e sua justificação se acha na estreita conexão no pensamento grego entre arete e as especiais habilidades e perícias (technai).

As referências de Protágoras, em Platão à “techne do artesão" 10 evidenciam que para ele significavam a mesma coisa [Osório diz: Será? Será que arete e technai são o mesmo? Uma coisa é fazer (technai), outra diversa é saber fazer (arete). Fazer bem feito (arete) é diferente de fazer. Exemplo interessante é “cortar cabelo” (ser um barbeiro)! Cortar cabelo qualquer um corta, saber cortar, com perfeição ou aperfeiçoar o corte é algo fundamentalmente distinto]. Ele mesmo considera a instrução nas technai específicas, que alguns sofistas ofereciam, como inferior a ele, e a "arte política" ou a "virtude política" 11, que é sua especialidade pessoal, aproxima-se mais da virtude moral, pois têm raízes nas qualidades éticas da justiça e do respeito por si mesmo e pelos outros. Sem estes, considera ele, a vida numa sociedade organizada é impossível. (Cf. p. 67 acima). Esta capacidade ou arte política, no entanto, é passível de definição precisa como "prudência nos negócios pessoais e o melhor modo de administrar a própria família, e também nos negócios do Estado, de forma a se tornar mais vigoroso orador e homem de [p. 237] ação" (318d-e) [Osório diz: começar com “prudência” é fazer uma “definição precisa”, senhor Guthrie?], assunto prático e utilitário e ao mesmo tempo passível de um curso de instrução.

A visão de Protágoras sobre se a virtude é natural ou adquirida pode-se haurir do longo e brilhante discurso no Protágoras quando se eliminam seus elementos míticos. Já o fizeram (pp. 66), e basta breve sumário. Não foi, no início, parte da natureza humana como tal. E, sendo assim, ainda que os homens primitivos tivessem a inteligência para aprender várias artes como o uso do fogo, e trabalho em metais etc., tratavam-se entre si de maneira selvática, não conseguindo cooperar suficientemente entre si para se proteger dentro de cidades muradas do ataque de animais mais ferozes e poderosos do que eles. Gradual e dolorosamente alguns deles aprenderam a exercer auto-renúncia e modos honestos suficientemente para capacitá-los a agir em conjunto e assim sobreviver. Ninguém, completamente sem estas virtudes, portanto, está vivo hoje, e mesmo os caracteres mais vis em nossas sociedades civilizadas têm elementos de virtude [Osório diz: como, por exemplo, a obediência e fidelidade dos ladrões ao chefe da quadrilha]. Foram adquiridos por ensino desde a mais tenra infância, primeiro pelos pais e amas, depois pelos mestres da escola, e finalmente pelo Estado, cujo sistema de leis e punições tem finalidade educativa. Censura e punição só não são apropriadas na ausência destas boas qualidades que se podem adquirir por “esmero, prática e ensino”: não são empregadas contra deficiências naturais que um homem não pode fazer nada para mudar. Tudo o que o sofista pode pretender é levar o ensino um pouco mais adiante e fazê-lo um pouco melhor, de forma que seus alunos sejam tanto superiores aos seus concidadãos. Não quer dizer com certeza que todos tenham talento igual para aprender virtude política, não mais que para aprender matemática ou tocar piano. É fato óbvio que nem todos os homens são igualmente dotados pela natureza, e isto não é nem mais nem menos verdade da virtude que qualquer outra realização. [Osório diz: Muito bom esse resumo do pensamento de Protágoras sem o mito!]

Para tudo isso nos apoiamos em Platão, mas está de acordo com as escassas citações do próprio Protágoras [Osório diz: que estão logo a seguir] que têm alguma relação como tema [Osório diz: razões pelas quais, quanto ao mito de Protágoras, se deve e se pode confiar no que diz Platão]. Ensino com êxito, disse ele, requer que o aluno contribua com habilidade natural e assiduidade na prática (askesis), e acrescenta que para aprender é preciso começar desde pequeño (fr. 3). Alhures ele disse (fr. 10) que arte e prática, ou estudo (melete), eram inseparáveis. Platão, uma vez mais (Teet. 167B-c) fá-lo comparar a influência do orador sobre as cidades e a do sofista sobre os indivíduos à do agricultor sobre as plantas, relembrando o que parece ter sido um lugar-comum, a comparação entre educação e agricultura em que o solo representa a capacidade natural do aluno.

Demócrito […] pode-se dizer que tem tendência existencialista. A natureza do homem não está irrevogavelmente fixada desde o nascimento: pode ser alterada por ensino, que, portanto, é um fator na formação de sua natureza [...afirmação de Sarte “que a natureza humana não é fixada, que o homem é de fato uma criatura que se faz a si mesma por processo de constante mudança”. ].

Crítias [fr. 9] diz que mais homens se tornam bons pelo estudo (melete) do que pela natureza.

Anonymus Iamblichi […]: A arete deve-se manifestamente adquirir pela aplicação diligente a ela por longo período de tempo.

Tema desgastado [Osório diz: é como Guthrie trata o tema, sem dizer que Platão foi quem dedicou a ele diálogos! Desgastado quando quer menoscabar os sofistas, mas quando tratado por Platão a coisa muda de conceito!]

Como deverá se ter manifestado até aqui, muito do que se disse sobre o tema era sentencioso e trivial, mas na época pareceu de capital alcance para se saber como se adquiria arete [Osório diz: isso tudo é desdenho do autor, Guthrie, apenas para não dar o braço a torcer dando razão aos sofistas! Até por que quem levanta o tema, pergunta sobre ele é Platão! Mas como Platão não pode ser o pai da criança, vem o desdem!]. Na sociedade competitiva da época, jovens ambiciosos, como Meno e Hipócrates (no Protágoras) queriam gastar fortunas com os sofistas que podiam comunicar o segredo, e a sugestão de que nenhum mestre podia comunicá-la era nos dias de Sócrates ataque a grandes interesses investidos [Osório diz: disputa por poder e por dinheiro!]. Desta discussão participaram vigorosamente Sócrates e Platão [Osório diz: por que eram idiotas, já que se tratava de um “tema batido”!]. No Eutidemo, Platão ridiculariza dois charlatães que pretendiam ensiná-las em face das dúvidas de Sócrates se ela podia ou não podia afinal ser ensinada. No Protágoras, ele expressa as mesmas dúvidas, e Protágoras lhes responde com habilidade e vigor. O Meno é inteiramente dedicado ao tema [Osório diz: “tema batido”]. Às vezes, como na discussão retórica no Fedro já mencionada, Platão se junta à argumentação ao mesmo nível um tanto banal como o resto. 15 Outras vezes faz dela o ponto de partida para desdobrar sua própria filosofia ou a socrática. [Osório diz: chupa Platão! Já que o tema era batido!]

Para Sócrates – seguramente o intelectual mais sem compromisso de todos os mestres da ética – o que homem podia dar a outrem pelo ensino era o conhecimento. Se, pois, a virtude (em que certamente incluía as virtudes morais) podia ser ensinada, ela deve ser uma forma de conhecimento (Meno 87c). Quanto a ensiná-la, sua resposta não era nem rude nem simples (veja o volume sobre Sócrates); mas de que era uma forma de conhecimento ele estava convencido [Osório diz: e se é uma forma de conhecimento, por certo que poderia ser ensinada, como, de resto, mostrou a posteridade]. Mas se a virtude é conhecimento, o vício e o agir injusto só podiam ser devidos à ignorância e resulta que “ninguém peca deliberadamente” [Osório diz: ao contrário, tem gente que ama pecar, mesmo sabendo que faz o mal a si e aos outros. E sem pensar que esse mal para si é um bem para si!]. Ação reta seguirá automaticamente o conhecimento do que é reto. Sócrates julgava outros por si mesmo, pois, por surpreendente que pareça, em seu caso era verdade [Osório diz: como se Sócrates nunca tivesse errado, como o caso de ir para a guerra]. Sua segurança calma de que seguia o itinerário certo era inabalável pelo fato de que o resultado era a taça de cicuta, que engoliu às pressas com total confiança de que “nenhum mal pode vir a um homem bom” [Osório diz: e se deu mal!]. Uma doutrina heróica deste tipo não era para maioria dos homens. Aristóteles diz sem rebuços que estava “em franca contradição com a experiência” (EN 1145b27). Platão faz Sócrates reconhecer a prevalência da visão oposta no Protágoras (352d-e). “Sabes”, diz ele, “que a maioria dos homens não nos acreditam. Eles sustentam que há muitos que reconhecem o melhor, mas não se dispõem a agir de acordo. Pode-se estar patente a eles, mas eles agem de outra forma”. Uma vez que a luta entre a consciência e o desejo, ou a fraqueza de vontade, é essencialmente dramática, não surpreende que algumas das expressões mais notáveis do ponto de vista oposto ocorrem em Eurípides, bastante provavelmente em contradição consciente a Sócrates. Suspeitou-se-o das palavras de Fedra no Hipólito: “Nós sabemos, nós reconhecemos o certo, mas não o fazemos, alguns de nós por preguiça, outros por escolher algum prazer antes que o bem”. Diante da perspectiva de matar seus próprios filhos, Medeia grita (Medeia 1078ss): “Eu entendo o mal que estou inclinada a cometer, mas minhas paixões (thymos) são mais fortes do que meu parecer, a paixão que é a causa dos maiores crimes dos homens”. Neste contexto, a “natureza” com sua “necessidade”, o refúgio desesperado dos que têm vontade fraca, faz sua aparição uma vez mais. (V. p. 96 acima). “Tudo o que me aconselhas eu sei muito bem”, diz outra personagem (fr. 840), “mas, embora o saiba, a natureza me compele”. Também não falta a outra parte da antítese, nomos. “A natureza o quis, e ela não se importa com a lei” é a escusa de mulher que erra: assim foram feitas as mulheres. De novo (fr. 841): “Ai de mim, isto é uma maldição mandada do céu para os mortais: o homem conhece o bem, mas não o segue”. (“Mandada do céu?” comenta o moralizador Plutarco, “não, antes bestial e irracional” [Osório diz: mas não é deus quem cria o homem? O livre arbítrio vem para se tentar sair dessa sinuca de bico]. Veja De aud. Poet. 33e-f). “Ser vencido pelo prazer” era uma frase do dia, frase que se sujeita a investigação crítica por Aristóteles [Osório diz: o autor quis dizer, creio, Sócrates] no Protágoras (352d ss). Para ele, o curso natural era agir como a razão e o conhecimento ditavam, embora não siga (na verdade existe alguma prova em contrário) que ele era inteiramente sem emoções e não seria qualificado para a descrição de Antífon de homem temperante (sophron). “Aquele que nem sentiu o desejo do que é infame e mau, nem entrou em contato com isto”, disse Antífon (fr. 59), “não é temperante, pois nada houve que tivesse de superar para se mostrar bem comportado (kosmion)” [Osório diz: só quem é testado pode saber se passou no teste]. Antífon também inseriu a idéia de “domínio de si”, onde “de si” está pelo eu inferior ou desejos baixos (fr. 58 ad fin.): “O melhor juiz da temperança do homem é alguém que fez de si um baluarte contra os prazeres momentâneos das paixões e foi capaz de conquistar e dominar a si mesmo. Quem quer que escolha entregar-se a suas paixões em qualquer momento escolhe o pior em vez de o melhor”. O autodomínio, porém, não é recomendado por Antífon por motivos puramente morais, mas antes como preço de auto-interesse calculado. Ele acabou de dizer que “temperança” ou auto-retenção (é a própria palavra, sophrosyne, ou seu adjetivo sophron, que infelizmente não se pode cobrir por uma só palavra na tradução) consiste em admitir a verdade do antigo adágio grego de que o agente haverá de sofrer. “Quem quer que pense que pode injuriar seu próximo sem sofrer por sua vez não é homem temperante. Tais esperanças levaram muitos a desastre irreparável, quando vieram a sofrer exatamente o que pensaram infligir a outros”. Por isso, pensa antes de dares rédeas a tuas paixões. Há aí pelo menos o germe do “calculo hedônico” que Sócrates advoga no Protágoras e que obviamente desempenhou papel importante na formação de seu pensamento. Tudo depende de fazer a decisão correta, isto é, o cálculo e a ponderação corretos dos próprios interesses. Isso nos aproxima do intelectualismo socrático. O que se requer para uma escolha correta de prazeres é, na frase de Sócrates, uma “arte da medida”. A diferença entre eles é que para Sócrates nenhum prazer poderia exceder o da boa consciência, e nenhuma dor, embora envolvesse pobreza, desgraça, ferimentos e morte, poderia se sobrepor a ela. Seria melhor, e para o homem que a sofre menos doloroso, sofrer injúria do que infligi-la, pois o que interessa é a alma, a psyche, e não o corpo ou as aparências, e prosperar e gozar o que vulgarmente se chamam de prazeres por meios egoístas e injustos e ferir a própria pysche.

Seu interesse por progresso técnico manifestou-se também numa série de elegíada onde atribui invenções a povos e países em particular. Incluem carruagens, cadeiras, camas, trabalho de ouro e bronze, escrita, navios, a roda do oleiro e (bastante curioso) o jogo de Kottabos (fr. 2). Talvez por este motivo, associado com o estreito relacionamento entre arete em geral e a habilidade do artesão, suas simpatias aristocráticas não o impediram de dizer que mais homens se tornavam bons pela prática do que por dote natural.

A virtude pode ser ensinada e uma vez adquirida não se pode perder (frs. 69, 71). [Osório diz: o ensino da virtude/arete, diz Antístenes] É ensinada pela ação e pelo exemplo mais do que pela argumentação e erudição, e é suficiente em si mesma para assegurar a felicidade. A virtude não precisa de longos discursos.

 

[Osório diz: muito bons os parágrafos a seguir]

[Osório diz: ensino da virtude/sabedoria]

 

O capítulo 6 se intitula: “Com respeito a sabedoria e virtude, se se podem ensinar”, e começa: “Existe um argumento, nem verdadeiro nem novo, de que sabedoria e virtude não se podem ensinar nem aprender”. Enumera depois cinco argumentos usados por defensores deste modo de ver e passa a refutá-los.

1. Se passas algo a outrem, não podes possuí-lo tu mesmo. [Osório diz: caralho! O cara confunde algo material (uma banana) com palavras, algo imaterial (ensinamentos) onde não há algo a ser desgastado/consumido ou em que haja a perda da posse com a transferência! É um grande fdp!].

2. Se se pudesse ensinar, haveria mestres reconhecidos dela, como de música. (Isto aparece no Meno). [Osório diz: e os professores? Para quê e para quem Platão escrevia?]

3. Os sábios da Grécia teriam ensinado sua habilidade aos que lhes eram próximos e queridos. (Assim Sócrates argumenta em Protágoras 319 que Péricles não podia ensinar sua sabedoria a seus próprios filhos e em Meno 90 que nenhum grande estadista a ensinou). [Osório diz: aqui o autor não diz quem eram tais estadistas! Parece um lugar comum! Todos sabiam! Mas o mais grave: isso vai contra a oligarquia em cujo seio a criança aprende com os seus! Suprema contradição de Platão]

4. Alguns foram aos sofistas e nada conseguiram de bom pelo fato. (Em Meno 92, Anito afirma que os sofistas fazem mais mal do que bem a seus alunos) [Osório diz: Anito aqui é queridinho! Outra suprema contradição: se os caras não serviam para nada, por que se preocupar com eles? Volto à pregunta: apenas o oposto da virtude, a “desvirtude”pode ser ensinada?].

5. Muitos ficaram sem frequentar sofistas.

Estes argumentos consistem uma série de objeções em estoque à profissão de sofista. O escritor passa a responder a elas uma a uma.

1. Este argumento, pensa ele, é “muito tolo” (karta euethe), pois ele sabe que os mestres que ensinam a escrever ou tocar conservam o conhecimento que comunicam.

2. Em respeito ao argumento de que não há nenhum mestre reconhecido de virtude, ele pergunta: O que ensinam os sofistas, senão sabedoria e virtude? (No Meno Sócrates sugere que os sofistas são os homens certos para ensinar a virtude. Anito fica furioso com a idéia, e Meno admira Górgias porque, diferindo de outros sofistas, não tem nenhuma pretensão de ensiná-la). E o que, continua ele, eram os seguidores de Anaxágoras e Pitágoras? (Significando presumivelmente que eram alunos que aprendiam sabedoria e virtude de Anaxágoras e Pitágoras).

3. Contra o terceiro argumento, diz simplesmente que Policlito ensinou os filhos a fazerem estátuas (com isso lhes comunicou sua sophia e arete particulares). (Policlito foi citado como exemplo no fim do discurso de Protágoras, Prot. 328c, com a sugestão de que, se os filhos de um homem não ficam iguais a ele na própria arete, isto não era necessariamente por falta de ensino) [Osório diz: como fica o caso dos filhos que superam o próprio pai depois de aprenderem com eles?. De mais a mais, se alguém deixou de ensinar, não é nenhum argumento, pois, se apenas um a ensinou, é prova que ela pode ser ensinada.

4. Se é verdade que alguns não aprenderam sabedoria de sofistas, é também verdade que muitos aos quais se ensinou a ler e escrever não aprenderam estas artes.

5. Contra o quinto argumento ele diz que afinal o talento natural (physis) vale alguma coisa. Alguém que não aprendeu dos sofistas pode fazer muito bem, se tiver o dom de pintar facilmente as coisas, depois de aprender um pouco daqueles que ensinaram a linguagem – ou seja, nossos pais. Um pode aprender do pai, outro da mãe, um mais, e outro menos. Se alguém crê que não aprendemos linguagem, mas nascemos com o conhecimento dela, que leve em conta que, se um recém-nascido fosse logo mandado para a Pérsia e crescesse lá, falaria persa e não grego. Aprendemos a linguagem sem saber quais sejam nossos professores.

Do mesmo modo Protágoras em Prot. 327 introduz a noção de tendência natural (eyphya, cf. euphyes em Dissoi Logoi), sugerindo que alguns tem maior talento para a virtude assim como para tocar flauta, e passa a introduzir a analogia da linguagem, que aprendemos sem saber quais sejam nossos mestres. A educação de uma criança começa no nascimento com seus pais e ama e é continuada pela escola e mais tarde pela própria cidade por meio de suas leis (325c ss). O sofista não pretende ser o único mestre de virtude, mas apenas levar esta educação mais adiante do que outros. [Osório diz: fantástica esta afirmação!]

Uma vez que podemos supor que este documento possa ter sido escrito antes do Protágoras de Platão, mostra que as objeções à tese de que se pode ensinar a virtude, que Sócrates levanta no diálogo para afastar Protágoras, estão baseadas em material bem conhecido de controvérsia corrente e anterior. Quando acrescentamos os pontos em comum entre a resposta do escrito e Protágoras de Platão, temos apoio para ao que se pensaria em todo caso provável, que o longo discurso que Plutão atribui a Protágoras reproduz substancialmente as idéias do próprio sofista. [Osório diz: por que devemos acreditar em Platão quando fala sobre Protágoras].

O capítulo 7 argumenta que o uso da sorte antes que a eleição na designação para o ofício público não é eficiente nem verdadeiramente democrático [Osório diz: Péricles, quando escolheu o legislador para Túrio, não o fez por sorteio!], o capítulo 8 é uma tentativa de sustentar que o bom locutor sabe tudo de tudo [ Não posso concordar com Taylor que o objetivo deste capítulo seja estabelecer a tese socrática de que o dialético é também o filósofo que é idêntico com o "verdadeiro" estadista e orador. Sua afirmação é muito mais semelhante à de Hípias (que Taylor menciona numa nota de rodapé, VS, 127, n. 1) de que o sofista-orador é onisciente. [Osório diz: e Hípias aprendeu com quem?]], [Osório diz: daí que precisa ter estudado sobre o assunto! Daí que não se discursa o “vazio”! Daí que Sócrates, como bom sofista, debe ter estuda física!] e o final, secção imcompleta, trata do valor da boa memória.

O argumento de que magistrados não devem ser indicados pela sorte porque o conhecimento técnico é tão necessário para o governo como para qualquer outra ocupação é argumento usado por Sócrates. O que segue, porém, – que a sorte não é democrática porque deixa ao acaso que se indique um amigo da democracia ou um oligarca – não se teria recomendado a Sócrates, que tinha pesadas duvidas sobre a sabedoria do governo democrático.” [Osório diz: e quando o sorteio for procedido apenas entre técnicos?]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 233-242 e 292-294).

 

Nos ensina Guthrie:

 

Eles pretendiam ensinar arete, mas seria isso algo que se poderia instilar pelo ensino? [Osório diz: isso é contraditório e idiota! Platão diz que a virtude não pode ser ensinada, mas maldade, seu oposto, pode! Ou ambas podem ser ensinadas ou ambas não podem sê-lo] [Osório diz: arete, no caso, é: aceite que alguém manda e alguém obedece. Manda quem nasceu no seis das famílias que nasceram para mandar. De indivíduo nada para família].

Arete, quando usada sem qualificação, denotava as qualidades de excelência humana que fazia o homem líder natural em sua comunidade, e até então crera-se que ela dependia de certos dons naturais e mesmo divinos que eram a marca do bom nascimento e geração. Eram definitivamente assunto da physis, cultivada, à medida que o rapaz crescia, pela experiência de viver com exemplo de seu pai e pessoas mais velhas buscando segui-lo. Assim eram, transmitidos naturalmente e raramente de maneira consciente, uma prerrogativa da classe que nasceu para governar...” [Osório diz: Platão]

[Bluck frisou (sobre Meno 73d) que arete segundo Górgias se diz ser aí "a capacidade de governar os homens", que é precisamente o que o próprio Górgias, em Górgias (425d), alegra ministrar pela arte da persuasão. Veja também p. 171, n. 16, abaixo).]

 

(…)

 

Um defensor da teoria do progresso, que alega ser filósofo por si mesmo, é Protágoras, o primeiro e maior sofista. Na lista de suas obras aparece um título que se pode traduzir por "Sobre o estado original do (p. 64) homem", 21 e supor-se-á aqui que quando Platão põe em seus lábios um discurso sobre este tópico reproduz substancialmente as próprias idéias de Protágoras, mais provavelmente como dadas na obra assim denominada [Esta é a opinião de larga maioria de estudiosos. Para resumo das opiniões v. Untersteiner, (Sophs. 72, n. 24, que concorda com isso, e Havelock, L. T. 407-9, que não concorda; também O'Brien, Socr. Paradoxos, 62s. Aos que estão em favor pode-se acrescentar Heinimann, N.u. Ph. 115, Schmid, Gesch. gr. Lit. 1.3.1, 17, n. 10, Versényi, Socr. Hum. 23, e Bignone, Studi 22, n. 2; aos que estão contra, - Capizzi, Protagora, 259. Cf. também von Fritz em RE XLV. Halbb. 917.

A oposição de Havelock é até certo ponto baseada na questão retórica (L. T. 88): "Por que... devia um gênio ter a preocupação de propagar em seus próprios escritos um sistema já em circulação e definido por representante de escola de pensamento de que desconfiava?", que por sua vez se apóia em § sua crença geral de que "nenhum filósofo em são juízo teria a preocupação de relatar com fidelidade histórica idéias que ele não pode aceitar" (p. 165). O que ele faz é uma "análise crítica" delas. Não se explica como alguém pode propriamente criticar idéias sem ter a preocupação de primeiro relatá-las acuradamente. E possível pensar melhor da filosofia do que isto. Os livros da excelente série Pelican de estudos históricos de filósofos individuais do passado são escritos por filósofos ativos que com certeza não subscreveriam todas estas visões de seus temas. A uma pergunta retórica costuma-se responder com outra, neste caso a de M. Salomon (Savigny-Stift, 1991, 136): "Que interesse pode ter tido Platão, que fala de Protágoras com tão pouco respeito, em impingir sobre ele idéias que distorceriam e falsificariam nossa representação dele?"

A questão foi exaustivamente discutida, e não há interesse em reabri-la. Dois argumentos contra a autenticidade podem-se descartar de imediato: (a) inconsistências internas, pois, um exame do conteúdo mostrará que não há nenhuma que seja séria; (b) a alegação de que é uma paródia ou distorção visando desacreditar o sofista, pois uma leitura com mente aberta do mito e do logos que o segue deixa alguém apenas com sentimentos de profundo respeito por seu autor.]. A passagem em questão é Prot. 320c ss. Protágoras manifestara a pretensão de ensinar arete política (pp. 41s acima), e Sócrates expressou dúvidas de que possa ser ensinada. [Osório diz: autocontraditório! Só o que é ruim pode ser ensinado? A virtude não pode ser ensinada, mas o seu oposto sim!]

Protágoras tem posição difícil de defender, e fá-lo com surpreendente habilidade. Se admitisse que virtude (para usar a tradução comum para arete) é dote natural de todo o gênero humano, antes que algo adquirido por treinamento, teria argumentado que estaria fora de sua tarefa, pois treinamento na virtude é o que acabara de dizer que era sua ocupação. De outro lado, esforçou-se para justificar o princípio subjacente à democracia ateniense, de que questões de política pública não são de nenhum modo técnicas, de sorte que o conselho de um “ferreiro ou sapateiro” pode ser tão bom como qualquer dos outros, que parece implicar que as virtudes necessárias são inatas em todo homem antes ministradas por instrução. Ambas as posições são mantidas no mito e na explicação que lhe segue. 21

(...)

O decreto de Zeus está pelo que, nas antropologias não-míticas (e na mente de Protágoras) era o trabalho do tempo, da experiência amarga e da necessidade [Ao escrever o que aparece acima, percebi que esta observação, que agora escapa até à maioria dos estudiosos, foi feita bastante tempo atrás por Kaerst em Zeitschr. f Pol. 1909, 513, n. 1: "Der Umstand, dass im Mythos des Protagoras erst durch Hermes die dike und aidos an die Menschen verteilt werden, so11 natürlich nur die unbedingte Notwendigkeit der Allgemeinheit der Rechts — und Schamgefühle für das Bestehen des Staates veranschaulichen".]. A estória ensina duas coisas sobre as "virtudes políticas": (a) o mundo civilizado todos as possuem até certo grau (amos ge pos, 323c), b) mas não são inatas ao homem desde o começo. Na explicação que segue ao mito, ele retoma estes dois pontos. O primeiro justifica que os atenienses exijam perícia nas artes técnicas, porém não na arte política, para a qual os primeiros requisitos são justiça e moderação. Todos acreditam, com efeito, que estas virtudes são partilhadas por todos. Um homem inteiramente desprovido de dom artístico — por exemplo, música — é lugar-comum, mas um homem inteiramente sem qualidades morais não poderia levar vida humana, e todo aquele cujo caso fosse este, pensar-se-ia que era louco (322a-c). Se Sócrates encontrasse alguém deste tipo — que ex hypothesi vivesse isolado, sem educação, tribunais de justiça, leis ou qualquer outra das restrições da vida civilizada — consideraria os mais empedernidos criminosos de Atenas como virtuosos em comparação com eles. Em segundo lugar, porém, embora os atenienses como quaisquer outros acreditem que todos têm certa participação nas virtudes políticas, não pensam que são inatas ou automáticas, mas adquiridas por ensino e esforço (323c: estes correspondem, portanto, ao decreto de Zeus no mito). A educação começa na infância com a mãe, a babá e o pai, e continua pelo empenho dos mestres-escola, e na vida adulta pelo Estado, que provê em suas leis padrão segundo o qual viver. De mais a mais, os cidadãos a lembram uns aos outros, pois é de nosso interesse que nossos próximos entendam as normas da vida social organizada (327a-b). Neste processo contínuo é difícil destacar uma classe de mestres de virtude, mas isto não é mais prova de que não pode ser ensinada do que a falta de instrutores em nossa língua nativa provaria o mesmo sobre a fala.

[Refletido em Eur. Suppl. 913-15:

 

didaktos,

legein akouein eiper kai brephos didasketai

lhe d'euandria

ouein th'on mathesin ouch echei. [Osório diz: Tradução: .......]].

 

É nesse contexto que Protágoras aduz sua teoria da punição justamente celebrada, com sua ilustrada rejeição do motivo da vingança e desforra. Vale a pena citar a passagem inteira:

Ao punir malfeitores, ninguém se concentra no fato de que um homem fez o mal no passado, ou pune por causa dele, tomando vingança como um animal. Não, a punição não é infligida por homem racional por causa do crime que foi cometido (afinal não se pode desmanchar o que é passado), mas por causa do futuro prevenir o mesmo homem ou, pelo espetáculo de sua punição, qualquer outro, de voltar a fazer mal. Mas sustentar este modo de ver significa sustentar que a virtude pode ser instilada pela educação; em todo caso a punição é infligida como meio de intimidação. [Osório diz: Por que a punição (Direito Penal?) existe).

Aristóteles disse mais tarde, “estamos equipados pela natureza para adquirir as virtudes, mas as atingimos somente pela prática. [Osório diz: como se a prática não fosse um mestre ou não estivesse sido assistida por um!]

"O ensino precisa tanto da natureza como da prática (askesis: isto é, no aluno)". É esta capacidade antecedente, variando entre indivíduos, que ele invoca contra o outro argumento de Sócrates, segundo o qual alguns bons estadistas parecem incapazes de ministrar sua virtude até ao próprio filho. Se a virtude fosse distribuída com o mesmo princípio que as outras artes (326e ss), com um praticante a muitos leigos, o caso poderia ser diferente, embora mesmo então os filhos de muitos artistas, treinados por seus pais, sequer podem lhes segurar a vela (328c). Mas como ocorre, todos têm algum talento para a virtude e todos continuamente o desenvolvem por vários processos, às vezes não notados. Nesta situação, as vantagens de contato com pai proeminente não podem ter tanto efeito como a capacidade natural do filho, … que pode ser muito inferior.

Quanto a suas próprias pretensões como sofista, dado que a virtude pode ser ensinada, e é continuamente instilada em infinita variedade de formas simplesmente pela experiência de crescer num Estado bem governado, devemos, conclui ele modestamente, estar satisfeitos se pudermos encontrar alguém bastante melhor que o resto para nos fazer avançar pelo caminho, e isso é tudo o que alego ser.

[Osório diz: O que é a virtude? É bem gerir (administrar) sua casa e o Estado, ensina Protágoras].

(...)

Arete, comumente traduzido assim, mas não tenho necessariamente as implicações morais que se costumam ligar com “virtude”. Significa a excelência característica que faculta qualquer criatura, órgão ou instrumento realizar sua função específica.(V. p. 234, abaixo). Em 353a-b Sócrates fala de arete de olhos e ouvidos: até uma faca a tem se é bem desenhada e aguda. Imediatamente depois disso, Trasímaco concorda com Sócrates em que ele chamaria o tirano injusto de "sensato e bom", usando o T hjetivo agathos que corresponde a areie. Não precisa estar envolvido nenhum juízo moral, embora Sócrates o tome na esfera moral acrescentando palavras como kalon e aischron, e Trasímaco inadvertidamente concorda. [Osório diz: vejam como são as coisas! Todos os admiradores de Platão, e é o caso do autor, o têm por genial e sagaz, mas, quando lhes interessa, desonestamente, dizem que ele agiu “inadvertidamente”, logo ele, que tudo que faz é perfeito, estudado, analisado]

(...)

O debate refletia o choque entre ideais aristocráticos mais antigos e as novas classes que surgiam e predominaram sob o sistema democrático de governo em Atenas e que buscavam estabelecer o que hoje se chamaria de meritocracia [Temo que seja tarde demais para eliminar este termo bastardo e feio substituindo-o por seu meio irmão “axiocracia”. [Osório diz: ???]]. [Osório diz: (Sociologia) Forma de liderança que se baseia no mérito, nas capacidades e nas realizações alcançadas, em detrimento da posição social.] A pretensão de sofistas de que a arete podia ser ministrada por professores ambulantes que cobravam taxas por seu ensino, ao invés de ser gratuitamente transmitida pelo preceito e exemplo da família e dos amigos e por associação com "pessoas certas", ligados às qualidades de caráter inato de qualquer jovem de bom nascimento, era profundamente chocante para os de ideias conservadoras [Osório diz: bem como para as do autor. Guthrie! (O que se discute, ao fim e ao cabo, não é se a arete pode ser ensinada, o que parece que todos concordam que sim, mas se deve ser ensinada mediante pagamento ou gratuitamente!) No caso do autor, será que ele recebe direitos autorais por esta sua obra? Ele foi ou é professor? Sim. Trabalha de graça?]. Filosoficamente, a questão se era assunto de talento pessoal, ou se se podia adquirir por ensino e prática assídua. [Osório diz: aqui a raiz do platonismo anti-sofístico! A briga era pelo poder político. Disputa de classes pelo poder!]

A sentença de Horácio: “fortes creantur fortibus et bonis... doctrina sed vim promovet insitam”. [Osório diz: é o resumo do pensamento aristocrático! Nenhum poder poderia ser exercido por quem não pertencesse a tal classe!].

 

Tradução de:

 

Doctrina sed vim promovet insitam

Rectique cultus pectora roborant;

Utcumque defecere mores,

Indecorant bene nata culpae. (HORACE, Ode IV, lib. IV)

 

Os bravos nascem dos bravos e dos corajosos;/ há nos touros, há nos cavalos o fervor do pai/ e as águias guerreiras/ não geram pombas fracas: (tradução de Anderson Salvaterra Magalhães).

 

A velha idéia é exemplificada por Teógnis no séc VI. Escreve [ele] para seu amigo Cirno (vv. 27ss. Diehl; o resto de sua poesia deixa claro que para ele "bom" e "nobre" significa da "classe certa"):

 

Pela afeição que te tenho dir-te-ei o que eu mesmo aprendi de homens bons quando ainda era criança. Não tenhas relações com homens maus, mas apega-te sempre aos bons. Beba, coma e tome assento com os grandes e poderosos e tenha prazer em sua companhia, pois dos nobres aprenderás caminhos nobres, mas se te misturares com os maus perderás o senso que tiveres. Entende isto e associa-te aos bons, e dirás um dia que sou bom conselheiro para meus amigos.

 

Anito expressou seu desprezo pelos profissionais, afirmando que “qualquer cavalheiro ateniense” seria para Meno mais apto para a vida política do que qualquer sofista. [Osório diz: Anito é outro, que bem ou mal, se destacou na vida política ateniense, logo, não era tolo, logo não poderia, também, ter confundido tanto Sócrates com os Sofistas]

Em Eurípedes (fr. 609) soa mais verossímil o lugar-comum que se tornou no dito de Menandro: “Más companhias corrompem os bons costumes”. Um companheiro mau, diz ele, educa os comparsas para serem iguais a ele, e de modo semelhante o bom companheiro, e, por isso, devem os jovens buscara boas companhias; um sentimento repetido num sofista verdadeiro, Antífon (fr. 62): “Um homem vem necessariamente a parecer com quem se associa pela maior parte do dia”. [Osório diz: senhor Guthrie, quer dizer que tinham os sofistas verdadeiros e os falsos? Como se faz para distingui-los? Eram verdadeiros para quem? Para os falsos não-sofistas, os verdadeiros sofistas são os falsos]

A exaltação que Píndaro faz dos dons naturais (phya) é aristocrática, e os contextos em que se expressa mostram como a questão se pode ensinar a arete se insere na antítese geral entre physis e arte, ou physis e nomos.

Ol. 2,86: "Sábios são aqueles para os quais o conhecimento de muitas coisas vem por natureza; mas os que aprendem impetuosos e gárrulos como vacas, pronunciam palavras inúteis.

Ol. 9.100: O que é natural é sempre melhor, mas muitos saltaram rumo à fama através de proezas (aretai) obtidas pelo ensino”. [Osório diz: “proezas obtidas pelo ensino”?! Canalha quase socrático-platônico!]

Não quer dizer que não se possa melhorar talento inato mediante treinamento. [Osório diz: menos mal, não é senhor Píndaro?]

Os poemas de Píndaro foram feitos por encomenda, [Osório diz: pena paga!]

Arete, qualificada adequadamente, significava excelência ou proficiência [nas] atividades. É bastante natural, mas se precisa dizer em vista da tradução tradicional e desorientadora em português como "virtude".

Píndaro, que na décima Pítia (v. 23) escreve de alguém que “conquistando por suas mãos ou pela arete de seus pés, ganha os maiores prêmios por sua força e ousadia” [Argumentando no Meno que arete não se pode ensinar, Sócrates (em 93c-d) comenta sobre o fato de que Temístocles foi incapaz de comunicar suas virtudes de estadista ao próprio filho, e, sem insinuação de ironia, indica a habilidade do jovem de atirar a lança estando montado como prova de que não lhe faltava talento natural. [Osório diz: Isso não é confundir (propositalmente) coisas materiais com imateriais? Vide p. 236 (final) e 237]]. Nesse sentido, também cavalos podem tê-la […] assim como também objetos inanimados ou substâncias como o solo (isto é, fertilidade) [...] ou algodão.

Depois ele continua a expor o seu ponto de vista afirmando que a psyche humana também tem sua função, ou seja, governar os elementos inferiores, deliberar, e, em geral, assegurar uma vida vivida ao melhor nível da capacidade humana, e que sua arete própria se deve identificar com a justiça e a retidão.

Heráclito […] declarou que “a maior arete é o autodomínio”.

Quando pede a Meno que lhe diga “o que é a arete”, Meno pensa que se trata de pergunta fácil, pois ele pode dizer o que seja a virtude de um homem, uma criança, uma mulher, um escravo, ou qualquer pessoa ou qualquer coisa. Mas fica pasmado quando Sócrates replica que ele não quer uma lista de virtudes, mas uma afirmação de essência, forma ou ser de uma entidade ou uma coisa, virtude, que a seu ver deve ser comum a elas todas para justificar chamá-las por um só nome.

Depois de mencionar Sócrates pelo nome como defensor de que autodomínio, coragem e justiça são os mesmos para a mulher como para o homem, Aristóteles continua (…): “Os que falam em termos gerais, dizendo que virtude é 'o bem-estar da alma' ou 'ação correta' ou coisa semelhante, estão errados. Enumerar as virtudes, como fez Górgias, está muito mais perto do alvo do que fazer esse tipo de definição”. [Osório diz: Aristóteles contra Sócrates e a favor de Górgias!]

Para Sócrates é tão legítimo perguntar por uma definição geral de virtude como o é pedir uma definição de um inseto e objetar quando uma lista de insetos é oferecida em vez disso; a Meno talvez não se deva inteiramente censurar quando ele diz que pode entender a pergunta enquanto assim aplicada ao gênero natural, mas não pode captá-la tão facilmente quando ela se transfere à virtude, que ele sente que não é inteiramente paralela com os outros casos mencionados por Sócrates (72d, 73a). [Osório diz: misturar lista de “virtude” com lista de “insetos”, já aparenta um absurdo, mas podemos aceitar para não perder o amigo, mas fazer a comparação entre o “gênero natural” (inseto) e a virtude!]

Górgias teria, sem dúvida, afirmado que Sócrates estava tentando estender um método apropriado à ciência natural além de sua própria esfera [Osório diz: além dos socráticos e asseclas dizerem que Sócrates não se interessava por ciências naturais! Como, então, sabê-las?]. A abertura de sua Helena é um bom exemplo de sua prática pessoal. Para explicar o sentido de kosmos, onde Sócrates teria buscado uma definição oniabrangente, ele escreve: “Kosmos é para uma cidade a masculinidade de seus cidadãos, para um corpo beleza, para uma alma sabedoria, para uma ação virtude, para o discurso verdade. Akosmia é o oposto destas coisas”. Esta relutância em dar uma definição geral é conseqüência da crença sofistica, partilhada por Protágoras, na relatividade dos valores [Compare a leitura minuciosa de Protágoras sobre a relatividade da bondade em Protágoras (pp. 157s acima). Esta observação é feita por Versényi (Socr. Hum. 41s) o qual comenta que "em Protágoras, a relutância não leva à negação da unidade da virtude, mas a uma definição mais formal que material (a equiparação do bem com o útil, adequado, apropriado etc.)". Sobre a diferença entre Sócrates e os sofistas neste assunto vale ver Versényi. V. suas pp. 76ss.]. [Osório diz: no estava certa, já que ninguém conseguiu, até hoje, tal proeza!]

Embora Meno proponha sua pergunta a Sócrates na forma de alternativas precisas, não é provável que alguém acreditasse que a arete seja atingível só pela generosidade da natureza ou por esforço pessoal ou por instrução de outros. Píndaro mesmo admitia que o dote natural pode-se aguçar por treinamento, e, ainda que Hesíodo falasse como camponês, e não como aristocrata, quando pronunciou seu famoso dito sobre os deuses que punham suor na vereda do sucesso (Erga 289), seu poema tornou-se parte da herança grega, e ninguém era tão irrealista para supor que se podia alcançar grandeza sem esforço. Havia, porém, grande diferença na ênfase posta nos três elementos: dote natural, prática ou esforço pessoal, e ensino respectivamente.

Que a “virtude” se podia ensinar era a base da pretensão dos sofistas por um meio de ganhar a vida, e sua justificação se acha na estreita conexão no pensamento grego entre arete e as especiais habilidades e perícias (technai).

As referências de Protágoras, em Platão à “techne do artesão" evidenciam que para ele significavam a mesma coisa [Osório diz: Será? Será que arete e technai são o mesmo? Uma coisa é fazer (technai), outra diversa é saber fazer (arete). Fazer bem feito (arete) é diferente de fazer. Exemplo interessante é “cortar cabelo” (ser um barbeiro)! Cortar cabelo qualquer um corta, saber cortar, com perfeição ou aperfeiçoar o corte é algo fundamentalmente distinto]. Ele mesmo considera a instrução nas technai específicas, que alguns sofistas ofereciam, como inferior a ele, e a "arte política" ou a "virtude política", que é sua especialidade pessoal, aproxima-se mais da virtude moral, pois têm raízes nas qualidades éticas da justiça e do respeito por si mesmo e pelos outros. Sem estes, considera ele, a vida numa sociedade organizada é impossível. (Cf. p. 67 acima). Esta capacidade ou arte política, no entanto, é passível de definição precisa como "prudência nos negócios pessoais e o melhor modo de administrar a própria família, e também nos negócios do Estado, de forma a se tornar mais vigoroso orador e homem de ação" (318d-e) [Osório diz: começar com “prudência” é fazer uma “definição precisa”, senhor Guthrie?], assunto prático e utilitário e ao mesmo tempo passível de um curso de instrução.

A visão de Protágoras sobre se a virtude é natural ou adquirida pode-se haurir do longo e brilhante discurso no Protágoras quando se eliminam seus elementos míticos. Já o fizeram (pp. 66), e basta breve sumário. Não foi, no início, parte da natureza humana como tal. E, sendo assim, ainda que os homens primitivos tivessem a inteligência para aprender várias artes como o uso do fogo, e trabalho em metais etc., tratavam-se entre si de maneira selvática, não conseguindo cooperar suficientemente entre si para se proteger dentro de cidades muradas do ataque de animais mais ferozes e poderosos do que eles. Gradual e dolorosamente alguns deles aprenderam a exercer auto-renúncia e modos honestos suficientemente para capacitá-los a agir em conjunto e assim sobreviver. Ninguém, completamente sem estas virtudes, portanto, está vivo hoje, e mesmo os caracteres mais vis em nossas sociedades civilizadas têm elementos de virtude [Osório diz: como, por exemplo, a obediência e fidelidade dos ladrões ao chefe da quadrilha]. Foram adquiridos por ensino desde a mais tenra infância, primeiro pelos pais e amas, depois pelos mestres da escola, e finalmente pelo Estado, cujo sistema de leis e punições tem finalidade educativa. Censura e punição só não são apropriadas na ausência destas boas qualidades que se podem adquirir por “esmero, prática e ensino”: não são empregadas contra deficiências naturais que um homem não pode fazer nada para mudar. Tudo o que o sofista pode pretender é levar o ensino um pouco mais adiante e fazê-lo um pouco melhor, de forma que seus alunos sejam tanto superiores aos seus concidadãos. Não quer dizer com certeza que todos tenham talento igual para aprender virtude política, não mais que para aprender matemática ou tocar piano. É fato óbvio que nem todos os homens são igualmente dotados pela natureza, e isto não é nem mais nem menos verdade da virtude que qualquer outra realização. [Osório diz: Muito bom esse resumo do pensamento de Protágoras sem o mito!]

Para tudo isso nos apoiamos em Platão, mas está de acordo com as escassas citações do próprio Protágoras [Osório diz: que estão logo a seguir] que têm alguma relação como tema [Osório diz: razões pelas quais, quanto ao mito de Protágoras, se deve e se pode confiar no que diz Platão]. Ensino com êxito, disse ele, requer que o aluno contribua com habilidade natural e assiduidade na prática (askesis), e acrescenta que para aprender é preciso começar desde pequeno (fr. 3). Alhures ele disse (fr. 10) que arte e prática, ou estudo (melete), eram inseparáveis. Platão, uma vez mais (Teet. 167B-c) fá-lo comparar a influência do orador sobre as cidades e a do sofista sobre os indivíduos à do agricultor sobre as plantas, relembrando o que parece ter sido um lugar-comum, a comparação entre educação e agricultura em que o solo representa a capacidade natural do aluno.

Demócrito […] pode-se dizer que tem tendência existencialista. A natureza do homem não está irrevogavelmente fixada desde o nascimento: pode ser alterada por ensino, que, portanto, é um fator na formação de sua natureza [...afirmação de Sarte “que a natureza humana não é fixada, que o homem é de fato uma criatura que se faz a si mesma por processo de constante mudança”.].

Crítias [fr. 9] diz que mais homens se tornam bons pelo estudo (melete) do que pela natureza.

Anonymus Iamblichi […]: A arete deve-se manifestamente adquirir pela aplicação diligente a ela por longo período de tempo.

Tema desgastado [Osório diz: é como Guthrie trata o tema, sem dizer que Platão foi quem dedicou a ele diálogos! Desgastado quando quer menoscabar os sofistas, mas quando tratado por Platão a coisa muda de conceito!]

Como deverá se ter manifestado até aqui, muito do que se disse sobre o tema era sentencioso e trivial, mas na época pareceu de capital alcance para se saber como se adquiria arete [Osório diz: isso tudo é desdenho do autor, Guthrie, apenas para não dar o braço a torcer dando razão aos sofistas! Até por que quem levanta o tema, pergunta sobre ele é Platão! Mas como Platão não pode ser o pai da criança, vem o desdem!]. Na sociedade competitiva da época, jovens ambiciosos, como Meno e Hipócrates (no Protágoras) queriam gastar fortunas com os sofistas que podiam comunicar o segredo, e a sugestão de que nenhum mestre podia comunicá-la era nos dias de Sócrates ataque a grandes interesses investidos [Osório diz: disputa por poder e por dinheiro!]. Desta discussão participaram vigorosamente Sócrates e Platão [Osório diz: por que eram idiotas, já que se tratava de um “tema batido”!]. No Eutidemo, Platão ridiculariza dois charlatães que pretendiam ensiná-las em face das dúvidas de Sócrates se ela podia ou não podia afinal ser ensinada. No Protágoras, ele expressa as mesmas dúvidas, e Protágoras lhes responde com habilidade e vigor. O Meno é inteiramente dedicado ao tema [Osório diz: “tema batido”]. Às vezes, como na discussão retórica no Fedro já mencionada, Platão se junta à argumentação ao mesmo nível um tanto banal como o resto. 15 Outras vezes faz dela o ponto de partida para desdobrar sua própria filosofia ou a socrática. [Osório diz: chupa Platão! Já que o tema era batido!]

Para Sócrates – seguramente o intelectual mais sem compromisso de todos os mestres da ética – o que homem podia dar a outrem pelo ensino era o conhecimento. Se, pois, a virtude (em que certamente incluía as virtudes morais) podia ser ensinada, ela deve ser uma forma de conhecimento (Meno 87c). Quanto a ensiná-la, sua resposta não era nem rude nem simples (veja o volume sobre Sócrates); mas de que era uma forma de conhecimento ele estava convencido [Osório diz: e se é uma forma de conhecimento, por certo que poderia ser ensinada, como, de resto, mostrou a posteridade]. Mas se a virtude é conhecimento, o vício e o agir injusto só podiam ser devidos à ignorância e resulta que “ninguém peca deliberadamente” [Osório diz: ao contrário, tem gente que ama pecar, mesmo sabendo que faz o mal a si e aos outros. E sem pensar que esse mal para si é um bem para si!]. Ação reta seguirá automaticamente o conhecimento do que é reto. Sócrates julgava outros por si mesmo, pois, por surpreendente que pareça, em seu caso era verdade [Osório diz: como se Sócrates nunca tivesse errado, como o caso de ir para a guerra]. Sua segurança calma de que seguia o itinerário certo era inabalável pelo fato de que o resultado era a taça de cicuta, que engoliu às pressas com total confiança de que “nenhum mal pode vir a um homem bom” [Osório diz: e se deu mal!]. Uma doutrina heroica deste tipo não era para maioria dos homens. Aristóteles diz sem rebuços que estava “em franca contradição com a experiência” (EN 1145b27). Platão faz Sócrates reconhecer a prevalência da visão oposta no Protágoras (352d-e). “Sabes”, diz ele, “que a maioria dos homens não nos acreditam. Eles sustentam que há muitos que reconhecem o melhor, mas não se dispõem a agir de acordo. Pode-se estar patente a eles, mas eles agem de outra forma”. Uma vez que a luta entre a consciência e o desejo, ou a fraqueza de vontade, é essencialmente dramática, não surpreende que algumas das expressões mais notáveis do ponto de vista oposto ocorrem em Eurípides, bastante provavelmente em contradição consciente a Sócrates. Suspeitou-se-o das palavras de Fedra no Hipólito: “Nós sabemos, nós reconhecemos o certo, mas não o fazemos, alguns de nós por preguiça, outros por escolher algum prazer antes que o bem”. Diante da perspectiva de matar seus próprios filhos, Medeia grita (Medeia 1078ss): “Eu entendo o mal que estou inclinada a cometer, mas minhas paixões (thymos) são mais fortes do que meu parecer, a paixão que é a causa dos maiores crimes dos homens”. Neste contexto, a “natureza” com sua “necessidade”, o refúgio desesperado dos que têm vontade fraca, faz sua aparição uma vez mais. (V. p. 96 acima). “Tudo o que me aconselhas eu sei muito bem”, diz outra personagem (fr. 840), “mas, embora o saiba, a natureza me compele”. Também não falta a outra parte da antítese, nomos. “A natureza o quis, e ela não se importa com a lei” é a escusa de mulher que erra: assim foram feitas as mulheres. De novo (fr. 841): “Ai de mim, isto é uma maldição mandada do céu para os mortais: o homem conhece o bem, mas não o segue”. (“Mandada do céu?” comenta o moralizador Plutarco, “não, antes bestial e irracional” [Osório diz: mas não é deus quem cria o homem? O livre arbítrio vem para se tentar sair dessa sinuca de bico]. Veja De aud. Poet. 33e-f). “Ser vencido pelo prazer” era uma frase do dia, frase que se sujeita a investigação crítica por Aristóteles [Osório diz: o autor quis dizer, creio, Sócrates] no Protágoras (352d ss). Para ele, o curso natural era agir como a razão e o conhecimento ditavam, embora não siga (na verdade existe alguma prova em contrário) que ele era inteiramente sem emoções e não seria qualificado para a descrição de Antífon de homem temperante (sophron). “Aquele que nem sentiu o desejo do que é infame e mau, nem entrou em contato com isto”, disse Antífon (fr. 59), “não é temperante, pois nada houve que tivesse de superar para se mostrar bem comportado (kosmion)” [Osório diz: só quem é testado pode saber se passou no teste]. Antífon também inseriu a idéia de “domínio de si”, onde “de si” está pelo eu inferior ou desejos baixos (fr. 58 ad fin.): “O melhor juiz da temperança do homem é alguém que fez de si um baluarte contra os prazeres momentâneos das paixões e foi capaz de conquistar e dominar a si mesmo. Quem quer que escolha entregar-se a suas paixões em qualquer momento escolhe o pior em vez de o melhor”. O autodomínio, porém, não é recomendado por Antífon por motivos puramente morais, mas antes como preço de auto-interesse calculado. Ele acabou de dizer que “temperança” ou auto-retenção (é a própria palavra, sophrosyne, ou seu adjetivo sophron, que infelizmente não se pode cobrir por uma só palavra na tradução) consiste em admitir a verdade do antigo adágio grego de que o agente haverá de sofrer. “Quem quer que pense que pode injuriar seu próximo sem sofrer por sua vez não é homem temperante. Tais esperanças levaram muitos a desastre irreparável, quando vieram a sofrer exatamente o que pensaram infligir a outros”. Por isso, pensa antes de dares rédeas a tuas paixões. Há aí pelo menos o germe do “calculo hedônico” que Sócrates advoga no Protágoras e que obviamente desempenhou papel importante na formação de seu pensamento. Tudo depende de fazer a decisão correta, isto é, o cálculo e a ponderação corretos dos próprios interesses. Isso nos aproxima do intelectualismo socrático. O que se requer para uma escolha correta de prazeres é, na frase de Sócrates, uma “arte da medida”. A diferença entre eles é que para Sócrates nenhum prazer poderia exceder o da boa consciência, e nenhuma dor, embora envolvesse pobreza, desgraça, ferimentos e morte, poderia se sobrepor a ela. Seria melhor, e para o homem que a sofre menos doloroso, sofrer injúria do que infligi-la, pois o que interessa é a alma, a psyche, e não o corpo ou as aparências, e prosperar e gozar o que vulgarmente se chamam de prazeres por meios egoístas e injustos e ferir a própria pysche. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 28-29, 64-69, 87, 233-242).

 

Ensina Kerferd:

 

A discussão da relação entre natureza e aretê leva diretamente ao que foi um dos principais temas de debate tanto na segunda metade do século V a.C. como em quase todos os diálogos de Platão: a questão de saber se aretê, ou virtude, pode ser ensinada. A tradução tradicional de aretê por "virtude" corre o perigo de obscurecer a importância desse debate. De modo geral, a virtude denotada por aretê compreendia todas aquelas qualidades que, no homem, contribuíam para o sucesso na sociedade grega e que seguramente garantiam a admiração dos seus concidadãos, sendo acompanhada, em muitos casos, por substanciais recompensas materiais. A possibilidade de serem ensinadas haveria de ter uma influência fundamental no funcionamento e na estrutura da sociedade na qual o ensino se realizasse. Como já foi rapidamente mencionado no Capítulo 4 (p. 67), a aquisição desse tipo de aprendizagem torna possível a qualquer um elevar-se a qualquer altura numa dada comunidade. E, portanto, uma chave para a mobilidade social. Um resultado eventual é que aqueles que são capazes de desenvolver tais qualidades em outros, isto é, os que ensinam, têm uma parte particularmente importante a desempenhar na promoção da mudança social ou, pelo menos, em ajudar a torná-la possível. Sob Péricles, a sociedade ateniense estava mudando muito e não é por acaso que foi ele, acima de tudo, quem favoreceu e encorajou o movimento sofista em Atenas. [Osório diz: daí o ódio nutrido a eles por Crítias e seu sobrinho Platão!]

Saber se virtude pode ser ensinada é o assunto do capítulo VI no Dissoi Logoi, capítulo que provê um resumo proveitoso, se não muito profundo, de alguns dos argumentos envolvidos. Tem se asseverado, nos é dito no parágrafo inicial, que sabedoria e virtude não podem nem ser ensinadas, nem aprendidas. Este logos, é dito, não é nem novo nem verdadeiro, e o capítulo conclui com a afirmação: "eu não digo que sabedoria e virtude podem ser ensinadas, mas apenas que as provas acima mencionadas são suficientes para mim" [O texto clássico aqui é normalmente corrigido para dizer: "mas as provas acima mencionadas não são suficientes para mim". Mas isso destrói a antítese, e a leitura do manuscrito deveria ser retida, segundo, p. ex., Untersteiner, Softstí, Testimonianze e Frammenti, fase. III, 182.]. O propósito dessa declaração final é, presumivelmente, manter um elemento de ceticismo sobre a validade objetiva de afirmações desse tipo — seu sentido, então, será "Eu estou plenamente satisfeito quanto à possibilidade de serem ensinadas, não importa o que outros possam dizer". De fato, pode-se bem compreender que a profissão sofista, como um todo, simplesmente não podia aceitar a doutrina de que virtude não pode ser ensinada, e Protágoras, tal como representado no Teeteto de Platão, foi muito franco a esse respeito. Não seria de esperar que algum sofista discordasse, do mesmo modo que não seria de esperar que um moderno profissional do ensino aceitasse a opinião de que ensinar é impossível. [Osório diz: para os sofistas a virtude é ensinável!]

Uns cinco argumentos são mencionados, no Dissoi Logoi, em favor da intolerável doutrina de que virtude não pode ser ensinada. O primeiro é que não é possível reter com você alguma coisa que você entregou a outra pessoa. Um argumento desse tipo só pode ter surgido no seio do movimento sofista, não fora dele. Faz lembrar a opinião exposta por Górgias, na terceira parte do seu Sobre a natureza, que não é possível comunicar o que se sabe a alguém mais. O compilador do Dissoi Logoi não tem dificuldade em descartar isso como "mera tolice", visto que sabe, como todo mundo, que há professores que ensinam a ler e escrever, embora continuem possuindo o conhecimento daquilo que ensinam; a mesma coisa acontece com os que tocam lira. Isso sugere que quem compilou o Dissoi Logoi não estava falando como um partidário de Górgias, assim como a conclusão do capítulo igualmente sugere que não estamos tratando com um discípulo de Protágoras.

Os quatro argumentos restantes, contudo, têm certamente afinidades com os que Protágoras estava preocupado em responder. São eles: que teria havido professores de virtude reconhecidos, como os de música, se virtude pudesse ser ensinada; que os homens sábios teriam transmitido sua sabedoria a seus amigos e suas famílias; que alguns alunos tinham ido para os sofistas e não tinham obtido nenhum benefício deles; e que muitas pessoas que se elevaram à eminência não estiveram associadas aos sofistas. Será conveniente considerar esses argumentos na sua forma mais extensa, tal como é vista na discussão no Protágoras de Platão; Protágoras, no início do diálogo, é apresentado com um novo aluno, Hipócrates, e declara o que se propõe a ensiná-lo: "a prudência nos negócios domésticos que o capacite a dirigir a sua própria casa, e a sabedoria nos negócios públicos que melhor o qualifique para falar e agir nos negócios do Estado" (318e). Sócrates pergunta se essa é a arte da política e se Protágoras está se encarregando de fazer dos homens bons cidadãos, e Protágoras concorda (319a). Sócrates replica que supunha que essa arte não pudesse ser ensinada, e dá duas razões: (1) os atenienses são tidos como sábios, entretanto, embora introduzam especialistas na assembleia para os aconselhar em assuntos técnicos, consideram todos os cidadãos igualmente capazes de aconselhá-los em assuntos relativos à cidade (319b-d) [Osório diz: Platão versus Sócrates! Este fala aos atenienses]; (2) os mais sábios e melhores dos cidadãos não são capazes de transmitir essa virtude aos outros. Assim, Péricles educou bem seus filhos em tudo que poderia ser ensinado por professores, mas não tentou ensinar-lhes, ou providenciar que lhes fosse ensinada, a sua própria sabedoria, mas deixou que eles a adquirissem sem ajuda (319d-320b). [Osório diz: mais uma contradição platônica!]

Agora Protágoras, tem-se assinalado, está numa posição difícil. Ele se vê aparentemente confrontado com a escolha entre admitir que virtude não pode ser ensinada e que sua profissão é uma fraude, ou declarar que a teoria da democracia ateniense é falsa, e seu patrono, Péricles, é ignorante da verdadeira natureza da virtude política. Sua resposta toma a forma de um mito seguido de um argumento estereotipado (logos). [Osório diz: contra quem briga Platão?]

O mito, propriamente dito, se estende de 320c8 a 322d5. É seguido por uma passagem explanatória, 322d5-323a4, e esta, por sua vez, é seguida pelo que parece ser uma série de argumentos independentes até 324dl. Aí Protágoras diz que ainda resta uma dificuldade (a dos filhos de homens bons). "A respeito deste ponto, Sócrates, não lhe relatarei um mito, mas um logos." Esta sentença deixa claro duas coisas: o logos só começa aqui, e não antes, em 323a4, e, em certo sentido, considera-se que a discussão do mito continua até este ponto, 324dl. Como o mito propriamente dito claramente termina em 322d5, isso só pode significar que a seção toda 322d5-324dl é considerada uma explanação e aplicação do mito. Então a última sentença da seção, 324c5-dl, deve ser considerada um resumo do conteúdo do mito.

O mito propriamente dito (320c8-322d5) descreve como, antes do dia predeterminado em que as criaturas mortais deviam vir à luz, saindo de dentro da terra, Epimeteu distribuiu os vários "poderes" entre os animais segundo um princípio igualador, para garantir-lhes proteção tanto um contra o outro como contra os elementos (320d-321c). Mas os seres humanos não receberam nenhum desses poderes e por isso ficaram desprotegidos. Por isso Prometeu roubou, para eles, a habilidade artesanal, junto com o fogo, capacitando-os, assim, para viver. Tudo isso acontece, evidentemente, antes de os homens virem à luz do dia pela primeira vez. Ao chegar à superfície da terra, os homens desenvolveram a religião, a fala e os elementos materiais da civilização. Para se defenderem dos animais selvagens, fundaram postos (poleis) fortificados, mas, como lhes faltava a arte da política, a injustiça impediu-os de viver juntos e eles logo se dispersaram de novo (322a-b). Por isso Zeus enviou Hermes para dar aos homens aidós e dikê para garantir-lhes proteção. As artes foram distribuídas entre os homens da mesma forma como os poderes entre os animais, a saber, diferentes artes para pessoas diferentes [Osório diz: uns mandam, outros obedecem: Platão!]. Mas aidós e dikê devem ser dados a todos os homens, e todos os homens devem participar deles. Qualquer homem incapaz de participar deles deve ser morto, como sendo uma praga para a cidade. [Osório diz: Protágoras e a pena de morte]

Tendo mostrado, assim, que todos os homens são considerados detentores de alguma participação na justiça e na virtude política, Protágoras imediatamente passa a declarar que essa participação não é por natureza, nem é adquirida espontaneamente, mas por instrução e pela prática (323c3-324dl). Os homens não punem outros por defeitos naturais ou casuais, mas os punem por falta de aprender. De fato, nas sociedades civilizadas a punição é uma espécie de ensino. Punição se inflige por deficiências em justiça e virtude. De modo que, por ambos os motivos, justiça e virtude são consideradas ensináveis. Assim baseia-se Protágoras no seu mito, e antes de deixá-lo, resume de novo as duas principais conclusões: virtude é partilhada com todos e pode ser produto de ensino (324c5-dl).

A esta altura, Protágoras abandona o mito e continua com o seu logos. Restam três pontos principais a ser tratados: (1) como todos os homens obtêm a sua participação na virtude, se não é por natureza; (2) por que os homens bons, na opinião comum, não ensinam virtude aos filhos; (3) por que os filhos de homens notáveis tão frequentemente deixam de manifestar a excelência de seus pais. [Osório diz: ensina-se, mas uns não são capazes de aprender!] Ele responde que, como virtude é a base de todas atividades, ela é ensinada sob todas as formas correntes de ensino — por pais, amas, professores na escola, professores de música e instrutores de ginástica. Além disso, ela é ensinada por toda a comunidade através das leis e das punições. É importante notar que Protágoras não está simplesmente dizendo que as pessoas absorvem inconscientemente as tradições da comunidade nas quais vivem — não é uma questão casual, é uma parte essencial do ensino formal recebido por todos. Foi Sócrates quem tinha sugerido a visão inconsciente da educação moral. A resposta de Protágoras é bem categórica: os homens bons realmente educam seus filhos na virtude, e se esforçam muito nisso (cf. especialmente 325d7-9). O que ele quer dizer é que o ensino da virtude é universal através da comunidade e aqueles que a ensinam não têm um nome especial como professores de virtude. É a mesma coisa que ele disse antes, no diálogo: que tinha havido muitos sofistas antes dele aos quais faltava apenas o nome (316d3-e5). [Osório diz: isso parece Platão tentando livrar Sócrates de possíveis críticas]

Finalmente, a diferença, na virtude, entre pais e filhos se explica como devida a variações da aptidão natural das pessoas em questão. Isso há de se verificar sempre que todas as pessoas tiverem praticamente o mesmo ensino e as mesmas oportunidades de aprender. Além disso, algumas pessoas adquirem mais instrução do que outras (326c3-6) e uns professores são melhores do que outros. É um destes professores que Protágoras julga ser (328a8-b5).

O logos que conclui isso não é uma continuação do mito; é, antes, uma alternativa a ele. Assim Protágoras afirma que o logos e o mito mostram, cada um, que virtude pode ser ensinada, e explica a diferença, na virtude, entre filhos e pais (328c3-6). Ambos, mito e logos, claramente oferecem explicações de como todos os homens compartilham a virtude. Por conseguinte, a instrução universal de virtude, no logos, deveria ser considerada uma declaração alternativa da concessão de aidós e dikê, por Zeus, no mito. Os dois são a mesma coisa, um expresso em forma mítica, o outro em forma racionalizada. A concessão de aidós e dikê é o ensino que todas as pessoas recebem na comunidade.

Interpretada assim, a réplica de Protágoras às objeções de Sócrates é consistente de ponta a ponta. Recapitulando: Sócrates objetou que virtude não podia ser ensinada, porque se considera que todos os homens a compartilham, e os que são preeminentes em virtude não transmitem essa preeminência aos seus filhos. Protágoras replica que todos os homens compartilham virtude porque ela é ensinada a todos, e a diferença entre pais e filhos se deve às diferenças em aptidões naturais para a aprendizagem.

A explicação de Protágoras da maneira como se dá a educação numa comunidade é plausível e extremamente persuasiva. Ela de forma alguma é criticada por Sócrates, nas elaboradas discussões que constituem o resto do diálogo. Entretanto, na conclusão, Sócrates mantém (361a-c) que ambos, Protágoras e ele mesmo, agora mudaram para a posição oposta à que tinham no início. Sócrates tinha começado por negar que virtude pudesse ser ensinada ao passo que Protágoras mantinha que podia. Ao final, contudo, Sócrates sustenta que virtude pode ser ensinada, e afirma que a inferência da posição de Protágoras é que ela não pode ser ensinada. Sócrates pôde chegar a essa afirmação somente como resultado da elaborada série de discussões a respeito de virtude com que se ocupa o diálogo a partir de 329b. Nele Sócrates mantém duas coisas: (1) que a única coisa que pode ser ensinada é conhecimento; (2) que virtude é conhecimento, e que as várias virtudes são, afinal de contas, idênticas e constituem uma única virtude indivisa, a qual, por sua vez, resulta da aplicação de um conhecimento indiviso que constitui o que se poderia chamar de saber como ser um homem bom.

Na verdade, a posição de Protágoras é consistente do começo ao fim do debate, e a sugestão de que, no final, ele tinha invertido sua posição baseia-se em nada mais do que ilusão e mistificação [Osório diz: Platão, quando escreve os seus diálogos – e Sócrates já está morto –, tenta mostrar o sofismo, sem contudo, procurar briga com os seus partidários. Deixa aos seus leitores que descubram as características de seu personagem Sócrates]. Sócrates, na sua conclusão (361b3-50), afirma que Protágoras agora está tentando dizer que virtude é alguma coisa diferente de conhecimento. Mas é necessário compreender que conhecimento pode ser de várias coisas diferentes. Uma distinção moderna, familiar agora, é entre saber como fazer alguma coisa e saber que alguma coisa é fato. Ainda podemos conhecer alguma coisa por experiência, quando estamos ou estivemos diretamente em confronto com ela, e isso será diferente do conhecimento baseado em descrições. Sócrates está usando o argumento socrático padrão, segundo o qual só se pode dizer que sabemos do que estamos falando quando estamos em condição de dar uma definição ou outra especificação verbal disso, e é esse conceito de conhecimento que está subjacente a todos os argumentos a respeito das virtudes, de 329b em diante. E ele insiste na suposição de que, no caso das virtudes, esse será um conhecimento único e universal do que é virtude.

Protágoras simplesmente não aceita isso. Como muito bem disse C. C. Taylor, o que Protágoras está empenhado em explicar é (a) que é possível ensinar a alguém como ser um homem bom, em sentido lato de "ensinar", que inclui condicionamento nos costumes sociais bem como instrução em técnicas específicas tais como retórica, e (b) que as disposições inalteráveis de caráter, que produzem a conduta especificada como apropriada às várias virtudes particulares (p. ex. ações justas ou corajosas), não são idênticas entre si.

Platão retornou ao problema no Mênon, que muito provavelmente foi composto um pouco mais tarde do que o Protágoras. O diálogo se abre com uma pergunta direta feita por Mênon: "Você pode me dizer, Sócrates, se virtude pode ser ensinada? Ou não se ensina, mas é algo que se adquire pela prática? Ou, se não se a obtém pela prática, nem pelo ensino, é ela dada aos homens pela natureza [physis] ou de alguma outra maneira?" A resposta, replica Sócrates, requer uma resposta à questão do que é Virtude. Não se chega, realmente, a nenhuma resposta satisfatória, no diálogo. Mas finalmente concorda-se que talvez se possa proceder baseado num fundamento descrito como hipotético. Procedendo dessa maneira, podemos dizer que, se virtude pode ser ensinada, ela é conhecimento, mas se não pode ser ensinada não é conhecimento. Mênon, então, é levado, talvez facilmente demais, a concordar que, como não há professores de virtude claramente identificáveis, conclui-se que virtude não é algo que se ensina. Convém notar, incidentalmente, que os sofistas são desprezados como professores — eles tornam seus alunos piores, e são visivelmente uma praga e a corrupção daqueles que os frequentam (91 c). [Osório diz: foi isso, exatamente, que condenou Sócrates! E se não se ensina, o que queria o Sócrates platônico falando aos demais atenienses? Se não ensinava, falava por falar? Era “uma planta que fala”, como diz Aristóteles?]

Mas nesse estágio, no Mênon (96d), Sócrates pensa melhor. Não é só sob a orientação do conhecimento que as ações humanas são bem e corretamente feitas. Virtude pode, realmente, ser dirigida pelo conhecimento, mas essa não é a única maneira. Opinião correta (orthê doxa) pode ser tão bom guia quanto o conhecimento para a finalidade de agir corretamente. Ambos, conhecimento e opinião correta, são adquiridos e não vêm pela natureza. Tanto os estadistas como outros homens agem baseados na opinião, não no conhecimento, quando agem corretamente; e a própria expressão orthê para correta, no caso da opinião, sugere pelo menos uma consciência da doutrina sofista do orthos logos, expressão também usada, ocasionalmente, pelo próprio Platão (cf. don 73alO, Leis 890d7, Crítias 109b2). A conclusão que seria de esperar é que, visto que opinião correta se adquire, ela é também adquirida pelo ensino, e parece provável que Platão estava bem consciente de que essa seria a conclusão sofista normal. Mas ele não aceita essa conclusão. Opinião correta se adquire, sim, mas não por ensino, visto que ensino se refere apenas ao conhecimento. Resta que a posição dos estadistas que agem orientados pela opinião correta não deve ser diferente da dos profetas e dos que proferem oráculos, que sob a inspiração divina dizem muitas coisas verdadeiras, mas não têm conhecimento do que estão dizendo. Platão, naturalmente, não pode dizer que os sofistas estão agindo sob inspiração divina, mas o que se infere da discussão, no non, é que, na medida em que possuem opinião correta, se é que, a seu ver, realmente a possuem, eles adquiriram, de algum modo, certo grau de percepção. Na medida em que fossem capazes de comunicar essa percepção estariam, por consequência, desempenhando uma função de valor para a comunidade. [Osório diz: as voltas de Platão]

Da insistência de Sócrates em dizer que virtude é conhecimento conclui-se que vício e mau procedimento só podem ser devidos à ignorância. Isto, por sua vez, leva à famosa afirmação socrática de que "ninguém peca deliberadamente", interpretada como significando que quem possui conhecimento do que é bom e do que é mau invariavelmente faz o que é bom. Para surpresa dos comentadores, descobrimos Protágoras, no diálogo que leva o seu nome, dando o seu assentimento a essa proposição exatamente (Prot. 352c8-d3). Entretanto, ambos, Protágoras e Sócrates estão bem conscientes de que essa não é a opinião comum. Como diz Sócrates (352d): "Você está consciente de que a maioria das pessoas não ouvirá nem a você, nem a mim; mas digamos que muitos, mesmo sabendo o que é melhor, não estão dispostos a fazê-lo, embora tenham poder de fazê-lo e, ao invés, fazem outras coisas. E sempre que lhes perguntei a razão disso, eles dizem que os que agem assim estão agindo sob a influência do prazer ou da dor, ou de algumas das coisas mencionadas agora mesmo" (a saber, impulsividade ou raiva [thumos], prazer, dor, desejo sexual e, frequentemente, medo). O resultado é que consideram o conhecimento um escravo que é arrastado de um lado para outro por todo o resto (352b-c).

A surpresa diante da concordância de Protágoras com Sócrates nesse ponto talvez seja, em parte, produto da concentração no aspecto positivo do ensino de Sócrates, a saber, que virtude é conhecimento e que mau procedimento é, conseqüentemente, uma questão de deficiência intelectual. É certo que não há testemunho nenhum de que o próprio Protágoras sustentasse a doutrina segundo a qual ninguém faz o mal voluntariamente. Contudo, num nível fundamental, não há razão para surpresa. Tanto Sócrates como Protágoras acreditam na educação como a chave para todos os problemas sociais e políticos. Eles divergem radicalmente a respeito de seu conteúdo, mas é só [Osório diz: concordância e divergência entre Protágoras e Sócrates]. Eles acreditam que se as pessoas pudessem ser levadas a compreender a injustiça de suas ações elas não as praticariam. Nem Sócrates, nem Protágoras estão prontos para aceitar a doutrina, claramente tão bem conhecida no seu tempo como no nosso, segundo a qual não se pode esperar das pessoas que resistam aos seus impulsos.

A doutrina de que virtude pode ser ensinada leva naturalmente à célebre teoria da punição desenvolvida por Protágoras. E que é mais bem expressa nas palavras que Platão atribui a ele (Prot. 324a-c):

 

Ninguém pune os que fazem o mal, concentrando-se simplesmente no fato de terem feito o mal no passado, a menos que esteja se vingando cegamente, como um animal selvagem. Quem visa a punir de maneira racional, não o faz por causa da ação má que foi cometida — pois isso não suprimiria o passado — mas o faz em vista do futuro, a fim de que nem o próprio autor do mal, nem ninguém mais que o vê punido, cometa o mal de novo. O homem que é desta opinião considera que virtude pode ser ensinada pela educação. Pois no mínimo ele está punindo a fim de coibir.” [Osório diz: para que serve a punição, segundo Protágoras]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 223-236).

 

 

 

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