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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

51.6 – Democracia, por Pródico.

 

Pontua Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

No parágrafo 3º do apólogo de Héracles, Pródico passa à condenação da homossexualidade: Areté estigmatiza o fato “de usar homens como se fossem mulheres”. Vê-se, portanto, como era falso dizer que a homossexualidade era geral na Grécia antiga [Osório diz: a homossexualidade na Grécia antiga. Platão era viado!]; era mais característica da aristocracia dórica, e limitada a esta casta guerreira. Pode-se deduzir desta passagem o afastamento de Pródico relativamente aos costumes e tradições aristocráticas, dado que “por toda a Grécia, os aristocratas sofreram uma forte influência dórica”. Este cambiante está confirmado por uma outra conotação política do texto quanto à escolha de Héracles. Depois de ter declarado: “sou honrada mais do que qualquer outra”, Excelência (Areté) delineia o campo da sua atividade; é “colaboradora amada pelos artistas”, “companheira bondosa dos servos”. Reconhecer que os artistas e servos têm parte na virtude, isto é, na excelência, revela a amplitude do humanismo de Pródico e traduz tendências políticas preferentemente democráticas ou, pelo menos, não oligárquicas. A preocupação política não estava ausente do ensino de Pródico, que definia o sofista como “um intermediário entre o filósofo e o político”; por isso, dedicava-se à formação dos cidadãos que se destinavam a participar ativamente nos assuntos políticos e os seus ouvintes deviam ser ou democratas ou aristocratas que aceitavam fazer o jogo da democracia e adaptar-se às suas regras.” (Fonte: Gilbert Romeyer-Dherbey, Os sofistas, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 65-66).

 

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51.5 – Teologia natural, por Pródico.

 

Ensina Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

Esta história do homem é uma história natural: para Pródico, o desenvolvimento da civilização faz-se essencialmente por meio de tudo o que se relaciona com a terra e com a agricultura. Por esta religião da terra, Pródico relaciona intimamente culto e cultura; não opõe, portanto, nomos e physis, mas faz derivar, em continuidade de uma com a outra, a lei da natureza. [Osório diz: não opositor entre nomos e phýsis, mas harmonizador]

Um testemunho de Epifânio, acrescentando à coleção de Diels-Kranz por Untersteiner, declara que “Pródico chama deuses aos quatro elementos, além do sol e da lua. De fato, dizia que destes deriva para todos o princípio vital”.

Ora, o divino, para o sentimento religioso politeísta de que Pródico se faz aqui eco ou psicólogo, pode ser ainda mais humilde e mais próximo, e transformar-se na própria substância da vida de todos os dias: divinos são o pão e o vinho, a água e o fogo, já respectivamente chamados Deméter, Dioniso, Poseídon e Hefaístos. [Osório diz: quem são os deuses]

(...)

Estas descobertas visam, talvez, a transformação do trigo em farinha, das uvas em vinho; as artes poderiam designar o uso do fogo para o cozimento dos alimentos.

(...)

Evemerismo – … Evémero que é posterior à Pródico. O evemerismo é um ateísmo: parte do suposto de que aqueles que chamamos deuses não são, na sua origem, senão homens divinizados pela crença popular. [Osório diz: diferença entre Pródico e Evêmero].

Pelo contrário, parecem estreitas as relações entre a doutrina de Pródico e os cultos inicáticos, os mistérios de Elêusis principalmente, que se dedicavam sobretudo ao culto de Deméter, deusa da Agricultura, “princípio do trabalho civilizador”. Os descobridores de que fala Pródico não seriam, portanto, homens, que inventaram o que antes não existia e que o reconhecimento dos seus semelhantes diviniza a seguir; designam antes “os que produziram tudo o que existe de útil para o homem na natureza”.

Os gregos desta época opõem menos os ateus aos crentes do que – sendo o ateísmo uma posição extrema – aqueles que acreditam que os deuses não se preocupam com os negócios humanos, como Trasímaco, ou, pelo contrário, deles se ocupam, como parece ser Pródico.” [Osório diz: divergência entre os sofistas quanto aos deuses]. (Fonte: Gilbert Romeyer-Dherbey, Os sofistas, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 61, 62-63 e 64).

 

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(uma biografia do conhecimento)

 

51.4Ética de situação – conceito.

 

Nos ensina Guthrie:

 

"Ética de situação" de hoje:

 

Os valores tradicionais estão abrindo caminho para uma ‘ética de situação’ - que diz que nada é intrinsecamente certo ou errado, mas deve ser julgado no contexto pelo impulso do momento” [Cf. Time Magazine (22 de abril de 1966)].

 

Moral de situação", a ênfase no imediatamente prático e a desconfiança em regras e princípios gerais e permanentes.

 

Ética de situação: é aquela que diz que nada é intrinsecamente certo ou errado, mas deve ser julgado no contexto pelo impulso do momento”. (Fonte: Cf. Time Magazine (22 de abril de 1966), citado por W. K. C. Guthrie, Os sofistas, Paulus, São Paulo: 1995, p. 61.).

 

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51.3 – Ética heroica, por Pródico.

 

Nos diz Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

Não partilhamos o desprezo de Guthrie pelo apólogo de Héracles na encruzilhada dos caminhos, em que ele só vê “banalidades morais elementares”. [Osório diz: Porque não é da autoria de Sócrates?Platão].

Héracles, na sua adolescência, retira-se para um lugar solitário para deliberar sobre a orientação que deve dar à sua vida. Surgiram, então, duas mulheres, exaltando cada qual o gênero de existência que representam: um, dedicado à procura da volúpia, o outro, à procura da excelência. A primeira via é atraente e fácil; a segunda exige um esforço contínuo em todos os domínios, mas atrai a estima a quantos se lhe consagram. A excelência é recompensada na terra pela posse de bens sólidos e duradouros; permite ao corajoso subir ao cúmulo da felicidade. As duas vias estão, pois, orientadas para a felicidade, mas uma sob a forma do prazer sensível imediato, a outra sob a forma de alegria racional, que sabe defender-se do excesso e da perversidade. Tal é o quadro geral desta alegoria, que mistura alguns dos temas maiores da sabedoria antiga. Limitemo-nos a algumas observações sobre certos pontos particulares do texto:

O que dramatiza o confronto entre a Excelência (Areté) e a Maldade (Kakía) é a hesitação do jovem colocado na encruzilhada dos caminhos: o fato de se pôr o problema da escolha, isto é, da decisão pessoal, mostra o despertar da individualidade naquela época [Osório diz: o nascer da individualidade]. O homem já não observa cegamente as normas e os tabus tribais; compara os valores e decide-se, mediante uma vontade divina. É uma das conquistas do humanismo antigo que o Quod iter sectabos vitae de Ausónio irá resumir e de que ainda se recordará Descartes.

O segundo tema de Héracles é o voluntarismo heróico. A excelência não é a aquisição fácil; daqui a exaltação da dor e do esforço. Pródico é, assim, a primeira etapa do caminho que parte de Hesíodo para chegar, passando por Antístenes, ao poema que Aristóteles dedica à Areté e, claro, ao estoicismo. Há que sublinhar, apesar de tudo, que esta apologia do trabalho e da fadiga não constitui, de modo nenhum, um dolorismo: as provas que a excelência impõe para se realizar conduzem-na à felicidade, a que contém a maior bem-aventurança. O fim da existência reside, como mais tarde na Ética a Nicómaco, na eudemonia [Osório diz: é toda doutrina que considera a busca de uma vida plenamente feliz - seja em âmbito individual seja coletivo - o princípio e fundamento dos valores morais, julgando eticamente positivas todas as ações que conduzam o homem à felicidade. É toda doutrina moral que, recolocando o bem na felicidade (eudaimonia), persegue-a como um fim natural da vida humana. Segundo Abbagnano, eudemonismo é toda doutrina que assume a felicidade como princípio e fundamento da vida moral.

O eudemonismo distingue-se do hedonismo, segundo o qual, o fim da ação humana é a obtenção do prazer imediato, entendido como gozo (pela escola cirenaica, de Aristipo) ou entendido como ausência de dor (segundo a concepção epicurista)].

Um terceiro tema importante de Héracles é a determinação clara dos “géneros de vida”. O ideal da vida teorética não aparece aqui, o que nos mostra que Pródico visa, antes de mais, uma formação para a vida prática. É por isso que esta fábula constituirá um modelo ético da virilidade preferido pela Antiguidade, que é o resultado da educação, que prova aqui toda a sua importância. Maldade promete a Héracles, que não terá, em primeiro lugar, que se preocupar “nem da guerra nem da coisa pública”; pensamos logo em Aristóteles, que ainda confessará que “o exercício das virtudes práticas se faz no campo da política ou da guerra”. A grande crítica a Sócrates, nos diálogos platônicos, pelos adversários do filósofo teórico, é precisamente a de não fazer política e, por consequência, de não ser um homem verdadeiramente realizado. [Osório diz: seria Sócrates um frustrado? Suas virtudes não tinham práticas e, sem práticas, eram imprestáveis para a vida em sociedade, que é constituída pela política]

No parágrafo 3º do apólogo de Héracles, Pródico passa à condenação da homossexualidade: Areté estigmatiza o fato “de usar homens como se fossem mulheres”. Vê-se, portanto, como era falso dizer que a homossexualidade era geral na Grécia antiga [Osório diz: a homossexualidade na Grécia antiga. Platão era viado!]; era mais característica da aristocracia dórica, e limitada a esta casta guerreira. Pode-se deduzir desta passagem o afastamento de Pródico relativamente aos costumes e tradições aristocráticas, dado que “por toda a Grécia, os aristocratas sofreram uma forte influência dórica”. Este cambiante está confirmado por uma outra conotação política do texto quanto à escolha de Héracles. Depois de ter declarado: “sou honrada mais do que qualquer outra”, Excelência (Areté) delineia o campo da sua atividade; é “colaboradora amada pelos artistas”, “companheira bondosa dos servos”. Reconhecer que os artistas e servos têm parte na virtude, isto é, na excelência, revela a amplitude do humanismo de Pródico e traduz tendências políticas preferentemente democráticas ou, pelo menos, não oligárquicas. A preocupação política não estava ausente do ensino de Pródico, que definia o sofista como “um intermediário entre o filósofo e o político”; por isso, dedicava-se à formação dos cidadãos que se destinavam a participar ativamente nos assuntos políticos e os seus ouvintes deviam ser ou democratas ou aristocratas que aceitavam fazer o jogo da democracia e adaptar-se às suas regras. O campo da doutrina não falhava na amplitude, já que cobria, pelo menos – vimo-lo antes – o fenómeno religioso e o fenômeno ético.” (Fonte: Gilbert Romeyer-Dherbey, Os sofistas, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 64-67).

 

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51.2 – Semântica (estudo), por Pródico.

 

Nos diz Fausto dos Santos que:

 

Lembremo-nos de Pródico, que é convidado por Sócrates, no referido diálogo, a ajudá-lo por ser, reconhecidamente, um estudioso de questões semântica. De acordo com suas teses, seria necessário "aprender o exato emprego das palavras" (PLATÃO, Eutidemo, 277 c).”

(Fonte: Fausto dos Santos, Filosofia Aristotélica da Linguagem, Ed. Universitária Argos. Capecó-SC, 2002, p. 57-58).

 

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51 – Pródico e 51.1 – Discurso, por Pródico.

 

Pontua Kerferd:

 

A situação é um pouco mais clara quando nos voltamos para Pródicos. Ele era famoso, em toda a Antiguidade, pelo seu estudo de sinônimos, que deve seguramente ter figurado na sua preleção Sobre a correção dos nomes. A discussão dos sinônimos era considerada um aspecto distintivo de todo o seu ensino e de suas preleções. O aspecto mais notável de seu estudo das palavras era a maneira pela qual distinguia os sentidos de conjuntos de palavras — mais comumente duas, mas às vezes três ou mais —, todas elas de sentido muito semelhante. Isso pode ser ilustrado melhor com um exemplo de sua arte, fornecido por Platão no Protágoras (337a-c = DK 84A13):

 

Os que frequentam discussões desse tipo devem ouvir ambos os oradores imparcialmente, mas não igualmente. Pois há uma diferença: deveríamos ouvir ambos com imparcialidade, contudo não dar igual atenção a cada um e, sim, mais ao mais sábio e menos ao menos instruído. De minha parte, Protágoras e Sócrates, peco-vos que concordem com meu pedido de disputar, não brigar, um com o outro, por causa dos vossos argumentos: pois amigos disputam com amigos em espírito de boa vontade, ao passo que briga é entre es que estão em desacordo e em estado de inimizade um com o outro. Dessa forma, nossa reunião será o maior sucesso, visto que vós, os oradores, ganharão, assim, a maior estima, mas não louvor, de nós que vos ouvimos. Pois estima está presente no âmago das almas dos ouvintes, sendo algo genuíno e livre de engano, mas louvor se encontra frequentemente na linguagem daqueles que falam ao contrário de sua real opinião. E nós, que ouvimos, teríamos, assim, a maior alegria, mas não prazer. Pois o homem obtém alegria quando aprende alguma coisa e ganha uma cota de compreensão puramente em seu espírito, ao passo que tem prazer quem come algo ou tem alguma outra experiência corporal prazerosa. [Osório diz: diferença entre disputa e briga].

 

Essa passagem deixa evidente a possível aplicação retórica da técnica de Pródicos. Mas é claro que ele não queria que suas distinções entre palavras fossem meramente arbitrárias — seu objetivo era relacionar cada nome, ou onoma, a uma determinada coisa, e a nenhuma outra, exatamente como o nome de uma pessoa é o nome dessa determinada pessoa e de nenhuma outra (cf. DK 84A19), na crença de que é valioso e importante usar somente o nome certo em cada caso. Mas os exemplos dados na passagem do Protágoras deixam evidente que onoma, ou nome, era usado para palavras em geral, não simplesmente para o que hoje chamamos de nomes. Seus exemplos são, na maioria, compostos de verbos e adjetivos. Na verdade, todas as partes de uma sentença, e até uma sentença inteira, são tratadas como um nome, ou onoma, no Crátilo, de Platão. Mas um nome, para ser um nome, precisa ser o nome de alguma coisa. A coisa que é nomeada é considerada o significado do nome em questão. Daí se segue que um nome que não é o nome de coisa alguma não é um nome no sentido real do termo, e não tem, necessariamente, nenhum sentido. Assim, no Eutidemo (283e9-286b6), de Platão, é dito que o que uma sentença ou logos afirma é aquilo a que se refere a sentença. A cada segmento da realidade pertence exatamente um logos e a cada logos corresponde exatamente um segmento distinto da realidade.

As consequências dessa maneira de ver as palavras são, contudo, paradoxais, e os paradoxos assim gerados fornecem matéria para uma considerável parte da história da filosofia grega em ambos os períodos, arcaico e clássico2. Primeiro, priva de sentido toda declaração manifestamente negativa, visto que o que não é não pode ser nomeado, e isso leva à doutrina que não se pode contradizer — ouk estin antilegein — discutida abaixo (pp. 151ss) [Osório diz: em algum canto eu, Osório, disse que Parmênides leva a Protágoras quanto a tal doutrina]. Segundo, há uma dificuldade mais ou menos crucial que tem de ser enfrentada no caso de todas as expressões que envolvem qualquer grau de negação. Sentimo-nos obrigados a dizer que muitas declarações incluindo vários tipos de negação são, de fato, verdadeiras. Mas, nesse caso, o que é que eles querem dizer com a sua concepção do significado resumida acima? Heráclito estava pronto a rejeitar muito do que as pessoas sem conhecimento ordinariamente declaram ser fato. Mas ele mantinha que seu próprio logos, ou explicação, também era uma explicação correta da estrutura da realidade. Mas essa explicação correta era, para ele, uma explicação de estados de coisas que são contraditórias — o mundo aparente ao qual se refere a linguagem se acha cheio de contradições objetivas. [Osório diz: por que é impossível a contradição! A melhor explicação que encontrei!].

(...)

O método de procedimento de Pródicos não estava limitado a ele — segundo Platão (DK 84A17), ele o obteve de Damon e dele partilhavam também outros sofistas. O método consistia em Diaeresis ou Divisão dos nomes e assim é regularmente rotulado por Platão e, depois dele, por Aristóteles3. Podemos dizer que seu método normal consistia, como argumentou Classen, em pôr dois nomes um contra o outro a fim de abstrair deles o sentido básico que partilham e descobrir as sutilezas de sentido em que diferem. Mas as palavras não são definidas individualmente — ele não está perguntando "o que é x?", mas "em que aspecto x é diferente de y?" Isso serve para distinguir a sua abordagem da de Sócrates, do qual, no entanto, ele continua sendo o precursor em todos os pontos essenciais. Sócrates pergunta simplesmente “o que é x?”. Mas não há por que tentar descobrir uma outra diferença, sugerindo que Pródicos está interessado no sentido próprio das palavras, ao passo que Sócrates está interessado na coisa real. Como vimos, para ambos, o significado de uma palavra consiste naquilo a que ela se refere, e a visão correta foi expressa por Classen, quando diz que ao descrever qualquer objeto, ou uma dada situação, Pródicos observará: essa palavra é apropriada, ao passo que aquela, embora quase equivalente e idêntica quanto ao sentido, não é. Sócrates vai pelo mesmo caminho, exceto que, quando indaga o que é x, o onoma ou nome que está investigando não é usualmente uma única palavra, mas antes uma fórmula consistindo em uma série de palavras, um logos ou uma definição.” (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 122-125 e 129-130).

 

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(uma biografia do conhecimento)

 

50 – Hípias e o Conhecimento.

 

Ensina Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

Antífon e Hípias exaltaram a natureza face ao nomos, o qual representa a tradição e o arcaísmo.

Pode-se ter uma idéia da concepção que Hípias tinha da natureza? [Osório diz: o que era a natureza, para Hípias] Parece que a idéia de totalidade desempenhou um papel fundamental nesta concepção; a natureza é “natureza do todo”. Mas esta totalidade natural não é para Hípias totalidade monolítica, como a dos Eleatas; o sofista concebe o universo como constituído por seres múltiplos particularizados e qualificados que chama tá prágmata, as coisas. Essas coisas, e Hípias opõe-se aqui a Górgias, existem independentemente do conhecimento que o homem delas adquire e da expressão linguística que lhes dá; o conhecimento verdadeiro é possível e consiste em decalcar as palavras sobre as coisas. Este tema é várias vezes retomado nos Discursos duplos, que afirma que “o que é diferente quanto ao nome também o é quanto à coisa” [Osório diz: e quando o nome é igual para coisas diferentes? Manga, por exemplo?].

Conceber a natureza como uma totalidade considerando-a composta de coisas distintas exige que se preste uma atenção especial à continuidade que as une. É o que Hípias faz, antes demais, opondo-se à dialética – dissolvente, segundo ele, porque exclusivamente analítica – de Sócrates. Começa por criticar a Sócrates as suas posições limitadas, especializadas: “Tu não examinas as coisas na sua totalidade”. Estas concepções fragmentárias traduzem-se pela deslocação do seu discurso; são estas – diz Hípias – as discussões de Sócrates, “bagatelas e restos de discursos reduzidos a migalhas”. A seguir contrapõe-lhe o seu ideal de um conhecimento atento à concatenação universal, apto para captar a continuidade que faz de cada coisa um corpo e de todos os corpos uma natureza; ora, Sócrates e os que o frequentam não dispõem senão de uma dialética separadora, de um método que separa e divide: “É por isso que nos escapam os conjuntos naturais, tão vastos e contínuos do ser”. Esta persuasão da continuidade dos seres, unidos como que por síntese, explica o interesse que Hípias presta a Tales; com efeito, para Tales, não é correto falar de seres inanimados, opostos aos seres dotados de uma alma, isto é, vivos; os objetos ditos inertes são também percorridos pela vida universal, isto é, possuem uma alma, um princípio interno de movimento, pelo qual se aliam aos outros seres: “Aristóteles e Hípias dizem que Tales atribuía uma alma aos seres inanimados, extraindo uma prova do íman e do âmbar”. Que tudo absolutamente esteja vivo explica a atração recíproca dos elementos do mundo; esta atração, que qualifica a physis, traduzir-se-á ao nível antropológico pela amizade (philia), que une os homens entre si pelo simples fato de serem homens.

A realidade será contínua se não há vazio no universo.

A intuição do grande todo que vibra em uníssono explica também a rejeição por Hípias de toda a forma de separatismo e, principalmente, a cisão entre o ser concreto e a essência, que o Sócrates de Platão professa numa discussão sobre a natureza da beleza. Lembramo-nos de que à pergunta – o que é a beleza? – Hípias responde: é uma bela rapariga, e que Sócrates ridiculariza a resposta, perguntando, porque não então uma bela marmita? No espírito do Sócrates platônico, a beleza deve conceber-se separadamente das coisas belas, e em si mesma; para Hípias, o belo é uma realidade imanente e não abstrata [Osório diz: a realidade]; é preciso, portanto, defini-lo, como observa Dupréel, “não em si e por si, mas na sua estreita relação com termos consistentes do que se afirma”. É nesta ótica que importa situar, pensamos nós, a famosa mnemotécnica praticada por Hípias. Ela procede, com efeito, por via de metaforização, isto é, pela relação que utiliza a semelhança entre uma ideia abstrata e a sua origem ou a sua ilustração concretos; no caso dos nomes próprios, esta semelhança obtém-se pelo exercício do jogo das palavras: para nos lembrarmos de “Crisipo”, há que pensar no “cavalo de ouro”; de “pirilampo”, no “fogo brilhante”.

Finalmente, a intuição da continuidade dos seres exprime-se, para Hípias, pela adoção do grande princípio de Empédocles da semelhança (homoiosis). O recurso a este princípio verifica-se numa passagem de contexto antropológico, mas o princípio tinha, sem dúvida, tanto em Hípias como em Empédocles, um alcance cosmológico: “Com efeito, o semelhante é por natureza aparentado com o semelhante”, faz-lhe dizer Platão, e a palavra sungenés, de que se serve, retoma a sungéneia tou prágmatos de Empédocles. A semelhança une os seres e sutura o universo, mas há que ver que a homoisis é também o princípio do conhecimento: o conhecimento, intelectual ou sensível, é um encontro, e é porque o universo é contínuo que se pode conhecer. O verdadeiro saber será, portanto, à imagem e a semelhança do cosmos, um todo; o enciclopedismo é, para o sábio, um dever e, de modo algum, uma vaidade. O discurso erudito tece, para o espírito, uma trama que é a do mundo; será, pois, discurso totalizador, e a sua totalização não representará a morna reiteração de um real reduzido ao mesmo, mas um poder fazer ver a complexidade e de integrar, sem as perder, as infinitas variedades mediante as quais o real aparece sempre novo. O próprio Hípias dá-nos uma amostra do seu método, no início de um discurso em que declara:

Estes problemas foram talvez abordados, alguns por Orfeu, outros por Museu, em síntese, por um de uma maneira e por outro de outra; outros por Homero, outros por poetas de épocas diferentes, outros nas obras históricas, quer dos Gregos, quer dos Bárbaros. Eu, mediante a síntese dos mais importantes e homogêneos de todos estes elementos, farei um discurso novo e multifacetado.”

Recolecção não repetitiva, totalização diferenciante que renova ao retomar, que complica ao explicar, o saber, segundo Hípias, aparece como que pintado de barroquismo. Pelo seu enciclopedismo, pelo seu princípio de continuidade, pelo seu sentido do complexo e pela arte de fazer reverberar o múltiplo no uno, o sofista não deixa, em todos estes pontos, de anunciar Leibniz. Por outro lado, enquanto filómato e pluri-especialista, seria o intelectual ideal para a ciência moderna a busca da interdisciplinaridade. [Osório diz: duas inovações de Hípias]

O conhecimento, para Hípias, decalca-se, portanto, adequadamente pela estrutura da realidade. Deste modo restaura, em oposição muito consciente a Protágoras e sobretudo a Górgias, um realismo ontológico e um otimismo epistemológico que, sem razão, se recusa muitas vezes à sofística; o sábio é capaz de “conhecer a natureza das coisas” e, por conseguinte, “conhecer a verdade das coisas”, porque pode captar “a natureza do todo”. A racionalidade reencontra em Hípias um fundamento; com isso, diz Dupréel, Hípias apresenta-se como “um precursor do aristotelismo”. [Osório diz: precursor de Aristóteles]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 80-84).

 

 

 

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(uma biografia do conhecimento)

 

49.7 – Gnosiologia sofística, por Crítias.

 

Disserta Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

O que distingue a aristocracia é a longa e difícil formação educativa que se lhe dá e que ela a si se dá. Esta tese orienta o pensamento de Crítias para um voluntarismo que vai confirmar a sua gnoseologia. Crítias traça uma linha de demarcação nítida entre o sentir e o conhecer; para isso opõe o pensamento – que conhece – e as diferentes instâncias corporais – que sentem. Pensamento e sensações opõem-se como a unidade à multiplicidade. Um outro fragmento permite-nos relacionar o primeiro tema da ascese [Osório diz: Ascetismo. Prática de devoção e meditação religiosa (consiste na prática da renúncia do prazer ou mesmo a não satisfação de algumas necessidades primárias, com o fim de atingir determinados fins espirituais. O conceito abrange, por isso, um grande espectro de práticas, em culturas e etnias muito diferentes, que vão dos ritos iniciáticos (maus tratos, incisições e escoriações no corpo, repreensões de extrema severidade, a mutilação genital ou a participação em provas que exigem atos excessivos de coragem) aos hábitos monásticos de diversas religiões, incluindo o celibato, o jejum e a mortificação do corpo por diversos meios. Segundo as interpretações mais correntes, alguns dos fenômenos religiosos e místicos, envolvendo visões ou estados de êxtase resultam do enfraquecimento do corpo e da alteração do equilíbrio sensorial. Segundo o idealismo platônico, a ascese servirá, exatamente, para aproximar a pessoa (o asceta) da verdadeira realidade espiritual e ideal, ao desligar-se da imperfeição e materialidade do corpo. A religião cristã ligará, também, os desejos corporais à ideia de pecado que deve ser refreado a todo o custo, caso se pretenda atingir a santidade e os dons divinos que, ainda assim, são concedidos pela graça de Deus e não pela virtude do asceta.)] com a teoria do pensamento:

 

Se tu próprio te exercitas para seres de pensamento penetrante, experimentarás assim por isso mesmo o menor prejuízo."

 

Por isso mesmo” designa provavelmente aqui as sensações: assim, pelo exercício torna-se mais forte e mais acutilante a gnôme, que é então capaz de dominar as múltiplas solicitações do sentir. Esta distinção pensamento-sensações não anuncia a ulterior distinção alma-corpo, porque – para Crítias – como nos informa Aristóteles, a alma é essencialmente poder de sentir; ora, se a sensação se produz devido ao sangue, segue-se que a alma é o sangue. A alma, poder de vida, é, por conseguinte, indistinta do corpo. Esta doutrina da alma-sangue não basta para classificar esta antropologia de materialista já que, acima da alma e diferente dela, há, como se viu, a gnôme.

Untersteiner propõe que se relacione gnôme com tropos o “caráter”, que seria a sua “manifestação concreta”. A teoria do caráter aparece então em Crítias como o elo de ligação entre a sua concepção do homem e a respectiva concepção política; explica a sua idolatria por Esparta e a sua educação guerreira, os seus costumes, a sua Constituição. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 111-112).

 

 

 

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49.6 – Antropologia sofística, por Crítias.

 

Expõe Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

A chave do pensamento de Crítias encontra-se, talvez, no fragmento que pareceu, a muitos intérpretes, paradoxal: “os bons são-no muito mais pelo exercício do que por natureza”. Com efeito, pensa-se, geralmente, em referência a Píndaro, que um aristocrata só podia fazer depender a areté da natureza, isto é, do nascimento. Parece-nos, pelo contrário, que, neste fragmento, Crítias responde a Antífon, para o qual a natureza mostra a igualdade dos homens: se os homens são iguais por natureza, diferem enormemente pela cultura. O que distingue a aristocracia é a longa e difícil formação educativa que se lhe dá e que ela a si se dá. Esta tese orienta o pensamento de Crítias para um voluntarismo que vai confirmar a sua gnoseologia. Crítias traça uma linha de demarcação nítida entre o sentir e o conhecer; para isso opõe o pensamento – que conhece – e as diferentes instâncias corporais – que sentem. Pensamento e (p. 111) sensações opõem-se como a unidade à multiplicidade. Um outro fragmento permite-nos relacionar o primeiro tema da ascese [Osório diz: Ascetismo. Prática de devoção e meditação religiosa (consiste na prática da renúncia do prazer ou mesmo a não satisfação de algumas necessidades primárias, com o fim de atingir determinados fins espirituais. O conceito abrange, por isso, um grande espectro de práticas, em culturas e etnias muito diferentes, que vão dos ritos iniciáticos (maus tratos, incisições e escoriações no corpo, repreensões de extrema severidade, a mutilação genital ou a participação em provas que exigem atos excessivos de coragem) aos hábitos monásticos de diversas religiões, incluindo o celibato, o jejum e a mortificação do corpo por diversos meios. Segundo as interpretações mais correntes, alguns dos fenômenos religiosos e místicos, envolvendo visões ou estados de êxtase resultam do enfraquecimento do corpo e da alteração do equilíbrio sensorial. Segundo o idealismo platônico, a ascese servirá, exatamente, para aproximar a pessoa (o asceta) da verdadeira realidade espiritual e ideal, ao desligar-se da imperfeição e materialidade do corpo. A religião cristã ligará, também, os desejos corporais à ideia de pecado que deve ser refreado a todo o custo, caso se pretenda atingir a santidade e os dons divinos que, ainda assim, são concedidos pela graça de Deus e não pela virtude do asceta.)] com a teoria do pensamento:

 

Se tu próprio te exercitas para seres de pensamento penetrante, experimentarás assim por isso mesmo o menor prejuízo."

 

Por isso mesmo” designa provavelmente aqui as sensações: assim, pelo exercício torna-se mais forte e mais acutilante a gnôme, que é então capaz de dominar as múltiplas solicitações do sentir. Esta distinção pensamento-sensações não anuncia a ulterior distinção alma-corpo, porque – para Crítias – como nos informa Aristóteles, a alma é essencialmente poder de sentir; ora, se a sensação se produz devido ao sangue, segue-se que a alma é o sangue. A alma, poder de vida, é, por conseguinte, indistinta do corpo. Esta doutrina da alma-sangue não basta para classificar esta antropologia de materialista já que, acima da alma e diferente dela, há, como se viu, a gnôme.

Untersteiner propõe que se relacione gnôme com tropos o “caráter”, que seria a sua “manifestação concreta”. A teoria do caráter aparece então em Crítias como o elo de ligação entre a sua concepção do homem e a respectiva concepção política; explica a sua idolatria por Esparta e a sua educação guerreira, os seus costumes, a sua Constituição.” (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 111-112).

 

 

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

49.4 – Justiça, por Crítias.

 

Segundo Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

A justiça é, por conseguinte, obra do direito natural; esta noção deve ser tomada aqui no sentido que Aristóteles dá, mais tarde ao seu physikon dikáion, e não no sentido de Hobbes ou de Espinosa. Hípias concilia natureza e ética; a sua rejeição do nomos político é feito em nome de uma lei maior e mais ampla, mais rigorosa também. A invocação da natureza – há ainda que insistir nisto – não tem como resultado, para Hípias, permitir a ilegalidade e de alguma maneira avalizá-la; o Anónimo de Jâmblico, atribuído por Untersteiner a Hípias, insiste na exigência da igualdade. Tomemos um dos exemplos que cita: a lei da natureza, que estabelece a interdependência econômica. A justiça consiste, pois, em obedecer à lei, mas não à lei escrita da natureza; o nomos é assim superado, ao mesmo tempo que o estreito quadro da cidade que lhe dava origem. A teoria hipiana do direito natural desemboca então no cosmopolitismo, que se adapta plenamente ao enciclopedismo sofista. Hípias chamava à Ásia e à Europa “filhas do Oceano”, estabelecendo assim uma identidade entre estes dois continentes, que era costume contrapor para demonstrar a clivagem entre Bárbaros e Gregos. Por este cosmopolitismo, Hípias opõe-se antecipadamente ao que Hípias chama o “nacionalismo inumano” de Platão; anuncia a filantropia estóica e, em certo sentido, a “catolicidade” cristã. Pensa-se, com efeito, na resposta de Eudoro a Cimodoceu em Chateaubriand, quando Eudoro cobre com o seu manto um escravo encontrado à beira do caminho; Cimodoceu diz-lhe: “Pensaste, sem dúvida, que este escravo era algum deus? – Não, respondeu Eudoro, pensei que era um homem”. [Osório diz: pqp! Que coisa linda!]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 88-89).

 

 

49.5 – Conhecimento, por Crítias.

 

Ensina Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

Antífon e Hípias exaltaram a natureza face ao nomos, o qual representa a tradição e o arcaísmo.

Pode-se ter uma ideia da concepção que Hípias tinha da natureza? [Osório diz: o que era a natureza, para Hípias] Parece que a ideia de totalidade desempenhou um papel fundamental nesta concepção; a natureza é “natureza do todo”. Mas esta totalidade natural não é para Hípias totalidade monolítica, como a dos Eleatas; o sofista concebe o universo como constituído por seres múltiplos particularizados e qualificados que chama tá prágmata, as coisas. Essas coisas, e Hípias opõe-se aqui a Górgias, existem independentemente do conhecimento que o homem delas adquire e da expressão linguística que lhes dá; o conhecimento verdadeiro é possível e consiste em decalcar as palavras sobre as coisas. Este tema é várias vezes retomado nos Discursos duplos, que afirma que “o que é diferente quanto ao nome também o é quanto à coisa” [Osório diz: e quando o nome é igual para coisas diferentes? Manga, por exemplo?].

Conceber a natureza como uma totalidade considerando-a composta de coisas distintas exige que se preste uma atenção especial à continuidade que as une. É o que Hípias faz, antes demais, opondo-se à dialética – dissolvente, segundo ele, porque exclusivamente analítica – de Sócrates. Começa por criticar a Sócrates as suas posições limitadas, especializadas: “Tu não examinas as coisas na sua totalidade”. Estas concepções fragmentárias traduzem-se pela deslocação do seu discurso; são estas – diz Hípias – as discussões de Sócrates, “bagatelas e restos de discursos reduzidos a migalhas”. A seguir contrapõe-lhe o seu ideal de um conhecimento atento à concatenação universal, apto para captar a continuidade que faz de cada coisa um corpo e de todos os corpos uma natureza; ora, Sócrates e os que o frequentam não dispõem senão de uma dialética separadora, de um método que separa e divide: “É por isso que nos escapam os conjuntos naturais, tão vastos e contínuos do ser” [Um pouco mais adiante, Sócrates mostra que compreendeu a crítica do sofista evocando “a essencial continuidade do ser da preferência de Hípias”. (p. 81)]. Esta persuasão da continuidade dos seres, unidos como que por síntese, explica o interesse que Hípias presta a Tales; com efeito, para Tales, não é correto falar de seres inanimados, opostos aos seres dotados de uma alma, isto é, vivos; os objetos ditos inertes são também percorridos pela vida universal, isto é, possuem uma alma, um princípio interno de movimento, pelo qual se aliam aos outros seres: “Aristóteles e Hípias dizem que Tales atribuía uma alma aos seres inanimados, extraindo uma prova do íman e do âmbar”. Que tudo absolutamente esteja vivo explica a atração recíproca dos elementos do mundo; esta atração, que qualifica a physis, traduzir-se-á ao nível antropológico pela amizade (philia), que une os homens entre si pelo simples fato de serem homens.

A realidade será contínua se não há vazio no universo.

A intuição do grande todo que vibra em uníssono explica também a rejeição por Hípias de toda a forma de separatismo e, principalmente, a cisão entre o ser concreto e a essência, que o Sócrates de Platão professa numa discussão sobre a natureza da beleza. Lembramo-nos de que à pergunta – o que é a beleza? – Hípias responde: é uma bela rapariga, e que Sócrates ridiculariza a resposta, perguntando, porque não então uma bela marmita? No espírito do Sócrates platônico, a beleza deve conceber-se separadamente das coisas belas, e em si mesma; para Hípias, o belo é uma realidade imanente e não abstrata [Osório diz: a realidade]; é preciso, portanto, defini-lo, como observa Dupréel, “não em si e por si, mas na sua estreita relação com termos consistentes do que se afirma”. É nesta ótica que importa situar, pensamos nós, a famosa mnemotécnica praticada por Hípias. Ela procede, com efeito, por via de metaforização, isto é, pela relação que utiliza a semelhança entre uma idéia abstrata e a sua origem ou a sua ilustração concretos; no caso dos nomes próprios, esta semelhança obtém-se pelo exercício do jogo das palavras: para nos lembrarmos de “Crisipo”, há que pensar no “cavalo de ouro”; de “pirilampo”, no “fogo brilhante”.

Finalmente, a intuição da continuidade dos seres exprime-se, para Hípias, pela adoção do grande princípio de Empédocles da semelhança (homoiosis). O recurso a este princípio verifica-se numa passagem de contexto antropológico, mas o princípio tinha, sem dúvida, tanto em Hípias como em Empédocles, um alcance cosmológico: “Com efeito, o semelhante é por natureza aparentado com o semelhante”, faz-lhe dizer Platão, e a palavra sungenés, de que se serve, retoma a sungéneia tou prágmatos de Empédocles. A semelhança une os seres e sutura o universo, mas há que ver que a homoisis é também o princípio do conhecimento: o conhecimento, intelectual ou sensível, é um encontro, e é porque o universo é contínuo que se pode conhecer. O verdadeiro saber será, portanto, à imagem e a semelhança do cosmos, um todo; o enciclopedismo é, para o sábio, um dever e, de modo algum, uma vaidade. O discurso erudito tece, para o espírito, uma trama que é a do mundo; será, pois, discurso totalizador, e a sua totalização não representará a morna reiteração de um real reduzido ao mesmo, mas um poder fazer ver a complexidade e de integrar, sem as perder, as infinitas variedades mediante as quais o real aparece sempre novo. O próprio Hípias dá-nos uma amostra do seu método, no início de um discurso em que declara:

 

Estes problemas foram talvez abordados, alguns por Orfeu, outros por Museu, em síntese, por um de uma maneira e por outro de outra; outros por Homero, outros por poetas de épocas diferentes, outros nas obras históricas, quer dos Gregos, quer dos Bárbaros. Eu, mediante a síntese dos mais importantes e homogêneos de todos estes elementos, farei um discurso novo e multifacetado.”

 

Recolecção não repetitiva, totalização diferenciante que renova ao retomar, que complica ao explicar, o saber, segundo Hípias, aparece como que pintado de barroquismo. Pelo seu enciclopedismo, pelo seu princípio de continuidade, pelo seu sentido do complexo e pela arte de fazer reverberar o múltiplo no uno, o sofista não deixa, em todos estes pontos, de anunciar Leibniz. Por outro lado, enquanto filómato e pluri-especialista, seria o intelectual ideal para a ciência moderna a busca da interdisciplinaridade. [Osório diz: duas inovações de Hípias]

O conhecimento, para Hípias, decalca-se, portanto, adequadamente pela estrutura da realidade. Deste modo restaura, em oposição muito consciente a Protágoras e sobretudo a Górgias, um realismo ontológico e um otimismo epistemológico que, sem razão, se recusa muitas vezes à sofística; o sábio é capaz de “conhecer a natureza das coisas” e, por conseguinte, “conhecer a verdade das coisas”, porque pode captar “a natureza do todo”. A racionalidade reencontra em Hípias um fundamento; com isso, diz Dupréel, Hípias apresenta-se como “um precursor do aristotelismo”.” [Osório diz: precursor de Aristóteles]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 80-84).

 

 

 

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