visão geral

Você está aqui: Home | Sofistas da Atenas de Péricles

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

57 – Calúnia, segundo os sofistas.

 

É Guthrie quem nos diz:

 

Da calúnia disse que era maldição porque a lei não prescreveria nenhuma punição para ela como o faz para o roubo, embora seja de fato o roubo da melhor coisa da vida, a saber, amizade e afeição (philia). Sua natureza oculta a faz pior que violência aberta. Temos aí um exemplo concreto de sua censura ao nomos, e, pelo menos quanto a isso, ele consideraria as leis de hoje como melhoria.” (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 264).

 

1

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

56 – Arte – techne – o que é e como foi utilizado pela Sofística.

 

Nota à obra de Guthrie afirma:

 

Nenhuma palavra portuguesa produz exatamente o mesmo efeito que a grega techne. “Arte” sofre por suas associações estéticas, e também pela oposição entre “as artes” e as ciências naturais. Os que não sabem grego podem ser ajudados pela própria palavra: sua incorporação em nossas palavras “técnico” e “tecnologia” não é casual. Envolve todo o ramo de habilidade humana ou divina (cf. Platão, Soph. 265e), ou inteligência aplicada, enquanto oposta ao trabalho só da natureza sem ajuda alheia.” [Osório diz: isso é ARTE] .(Ver o que mesmo Guthrie diz no livro sobre os filósofos). (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 110).

 

1

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

55 – A virtude como privilégio da aristocracia, seu combate pela Sofística.

 

Guthrie diz:

 

Arete, quando usada sem qualificação, denotava as qualidades de excelência humana que fazia o homem líder natural em sua comunidade, e até então crera-se que ela dependia de certos dons naturais e mesmo divinos que eram a marca do bom nascimento e geração. Eram definitivamente assunto da physis, cultivada, à medida que o rapaz crescia, pela experiência de viver com exemplo de seu pai e pessoas mais velhas buscando segui-lo. Assim eram, transmitidos naturalmente e raramente de maneira consciente, uma prerrogativa da classe que nasceu para governar...” [Osório diz: Platão]

Teógnis está cheio de máximas éticas, algumas de alcance geral e outras em apoio da supremacia da alta classe. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 28-29).

 

Ensina Kerferd:

 

O solvente da ideia de igualdade, contudo, teve um impacto maior em outras áreas além da econômica. Talvez o mais importante tenha sido na área das reivindicações de superioridade baseada no nascimento e nas origens da família. Caso se possa confiar na restauração um tanto incerta de uma passagem em papiro, parece que Antífon disse que respeitamos e admiramos os filhos de pais ilustres, mas os que não vieram de lares ilustres, nem admiramos, nem respeitamos (DK 87B44, II, p. 352). Se a restauração estiver correta, isso deve se relacionar com o que ele diz nas linhas que se seguem imediatamente, a saber, que por natureza, todos nós somos da mesma natureza sob todos os aspectos (para a passagem inteira, ver abaixo p. 268-269). O sofista Licofron (DK 83.4) é citado como tendo dito que "nobreza de nascimento é totalmente inútil. Pois disse ele que sua beleza não é alguma coisa que se possa ver, sua grandeza é uma questão do que os homens dizem (logos) — a preferência por ela é só uma questão de opinião. Na verdade, os que são ignóbeis não diferem em nada dos bem-nascidos" [Osório diz: nobreza e hereditariedade]. Aqui, as referências à verdade e à opinião sugerem que Licofron não está fazendo apenas uma declaração social e política, mas está também tentando sustentá-la recorrendo à oposição sofista entre physis e nomos.

Nossa informação sobre Licofron vem do diálogo Sobre o bom nascimento, composto por Aristóteles. Se tivéssemos mais do que os pouquíssimos fragmentos que sobraram dele, é provável que se revelasse ser um bom resumo do que ocorria nas discussões sofistas sobre o assunto. Nas atuais condições, podemos provavelmente obter mais informação sobre isso em uma notável passagem no Teeteto (174e-175b), de Platão, onde Sócrates louva a percepção do verdadeiro filósofo. Apesar de sua extensão, vale a pena citá-la toda.

Quando as pessoas cantam louvores da linhagem e dizem quão nobre é alguém porque pode mencionar sete ricos antepassados, ele pensa que o louvor vem de pessoas cuja visão é baça e míope, pessoas que, por causa de sua falta de instrução, são incapazes de manter os olhos fixos no todo, e não podem calcular que cada homem teve inúmeros milhares de ancestrais e antepassados, dentre os quais houve incontáveis casos de homens ricos e pobres, de reis e escravos, de bárbaros e gregos. Quando as pessoas se dão ares por conta de uma lista de vinte e cinco antepassados e traçam sua descendência desde Hércules, o filho de Anfitrion, isso o impressiona como revelador de uma estranha estreiteza de visão. Ele ri daqueles que não podem calcular que foi apenas uma questão de sorte o tipo de pessoa que foi o vigésimo quinto de Anfitrion para trás, ou o qüinquagésimo. Em todos esses cados, é do próprio filósofo que muitos riem, por parecer arrogante e por sua incapacidade de compreender os fatos [consagrados] da vida cotidiana. [Osório diz: Sócrates histórico e a nobreza de nascimento].

Semelhante, nas suas implicações, é a declaração do coro, em um fragmento de Alexandres de Eurípides, preservado por Estobeu (fr. 52N), onde lemos:

 

Nosso logos vai longe demais, se louvamos bom berço entre os mortais. Pois, quando há muito tempo viemos à existência, e a Terra que tinha dado nascença aos mortais depois separou uns dos outros, a terra, por seu processo de criação, imprimiu, em cada um, uma aparência igual. Não temos marcas especiais. Bem-nascidos e mal-nascidos são da mesma raça. É o tempo que, pelo nomos, faz do bom berço uma questão de orgulho.[Osório diz: os bem nascidos].

 

Aqui talvez valha a pena dizer que esta passagem não está dizendo que todos os homens são de igual mérito, somente que mérito não deve estar relacionado com bom berço. [Osório diz: mérito e berço]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 263-264).

 

3

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

54 – Contrato Social, segundo os sofistas.

 

Nos ensina Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

Qual é, em rigor, o significado desta teoria? Karl Popper nega-se a falar, a seu propósito, de contrato social sob o pretexto de que não se apresenta “sob uma forma historicista”. É verdade que a concepção histórica moderna é estranha ao mundo grego, mas, apesar de tudo, há em Lícofron uma teoria contratual da comunidade na medida em que esta não é espontânea (natural) e tem a sua origem num pacto de aliança (lei convencional). O pressuposto da teoria é a afirmação do individualismo, o que não é para espantar num sofista. O indivíduo existe por natureza, a Cidade é uma construção. Esta construção não tem senão o alcance limitado de uma aliança, limitada no tempo, limitada pela condição de aliança. Isto explica que a lei não atinja verdadeiramente a natureza profunda do homem e que seja impotente para a modificar: “não é capaz de tornar bons e justos os cidadãos”. A política não pode, portanto, coroar a esperança que Platão nela virá a pôr: caminhar de mãos dadas com a moral, o governante íntegro elaborando leis boas, as leis boas formando governados íntegros. Esta ineficácia ética das leis não impede, no entanto, de se resolver o problema político: basta que o cidadão esclarecido se aperceba de que há interesse em respeitar, pelo menos exteriormente, o direito. Pensamos em Kant, que dirá, mais tarde, que o problema político tem solução até no seio de uma comunidade de demônios, contanto que tenham senso comum.

A natureza cria, portanto, não cidadãos, mas indivíduos. Estes indivíduos naturais são todos iguais e, por conseguinte, a nobreza (que se chama impropriamente “nascimento”) não é mais do que um efeito de sociedade e, como esta, uma pura convenção. Se a convenção social se justifica pelo utilitarismo, a nobreza não o consegue e, então, não é mais do que uma “noção completamente vazia” porque “em verdade, nada distingue os não-nobres dos nobres”. No seu escrito perdido Da nobreza, Aristóteles cita literalmente Lícofron, dando-nos assim, uma amostra preciosa da sua maneira de escrever: “Invisível a beleza da nobreza, a sua majestade reside só nas palavras”. A posição política de Lícofron está, com isto, fixada: é um adepto da democracia, pelo menos um adversário dos oligarcas. Neste sentido, integra-se perfeitamente na corrente sofística tal como nos aparece. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 56-57).

 

Já Guthrie diz “O contrato social”:

 

[Mais comumente conhecido como a "teoria do contrato social", em larga medida por influência do Contrat social de Rousseau, embora também Hume tenha escrito sobre The original contract. Mas tanto Rousseau como Hume usam termos mais gerais como "compact" e "pact" indiferentemente, e como Peter Laslett frisa (Locke's Two Treatises, 112). Locke raramente aplica a palavra "contract" a assuntos políticos absolutamente; é o "compact" ou "acordo" que cria uma sociedade. Ao falar dos gregos, pelo menos, o termo menos específico e legal se deve provavelmente preferir.

Não é preciso dizer que havia diferenças na situação histórica. Aqueles que estavam descobrindo sua identidade e determinando o lugar da monarquia depois das guerras de religião e da Reforma estavam em posição muito diversa da dos sofistas. Uma coisa que ambos têm em comum é a passagem de visão religiosa de lei a secular, da atividade de Deus à do homem. Kaerst frisou acertadamente (Ztschr. f. Pol. 1909, 506) que a teoria do contrato tem dois elementos que devem ser mantidos distintos, embora estejam combinados em algumas formulações modernas. Estes elementos são (a) a doutrina de um contrato social propriamente dito, isto é, um acordo de associação entre iguais (b) o pactum subiectionis, pelo qual o cidadão comum se liga na sujeição a uma autoridade ou soberania mais alta. Só o primeiro tem sua origem na especulação grega [Osório diz: as vezes os autores dão a impressão de quererem que os gregos tivessem dito tudo ou especulado tudo, quando eram homens e agiram como tais! O importante é a implantação do embrião]. (Para a história do conceito do mundo antigo em diante v. o artigo de Kaerts; M. D'Addio, L'idea dei contratto sociale dai Sofisti alia Riforma; J. W. Gough, The social contract).]

Diferem as opiniões até que ponto a teoria do contrato social, tal como se entendeu nos sécs. XVII e XVIII d.C., foi antecipada neste período do pensamento grego...

Uma crença antiga sobre a lei atribuía-a em última instância aos deuses. O legislador ou criador humano da constituição (cuja existência não se negava) era apenas o canal pelo qual os mandamentos do céu se tornavam conhecidos e eficazes. No poema de Tirteu (séc. VII, fr. 3 Diehl), a constituição de Licurgo para Esparta foi ditada em detalhe por Apolo em Delfos. Mais tarde, tendeu-se a dizer que Licurgo fez a constituição, mas foi a Delfos para ter a segurança de que o deus a aprovava…” [Osório diz: o início da besteira de incluir deus na história]

As leis cretenses por sua vez foram, como se disse, obra de Zeus (Platão, Leis, no iníc.). Mesmo Clêistenes, fazendo suas reformas democráticas no fim do séc. VI, recebeu os nomes de suas novas tribos de Pítia (Artist. Ath. Pol. 21-6). [Osório diz: como ficam as maldades não vistas pela lei? Deus cochilou? As lacunas legais, sempre existentes, matam isso!]

Pelo séc. V, uma natureza impessoal tinha substituído nas mentes de alguns homens os deuses como poder universal que produziu a ordem inteira de que os homens são uma parte. Para outros, como Hípias, ambos podem existir confortavelmente lado a lado, e Eurípides, quando fala em linguagem pré-socrática da “ordem perene da natureza imortal”, e alhures em sua poesia, manifesta o desejo de vê-los unidos. Quando, pois, como vimos, ganhava terreno a idéia de que a lei é instituição meramente humana visando a ir ao encontro de necessidades determinadas, com nada de permanente ou sagrado em si, ela pôde ser contraposta ou à ordem divina ou à ordem natural ou a ambas. Dentro desta contraposição, costuma-se dizer que o ato de legislação resultou de um acordo ou contrato (syntheke) entre os membros da comunidade, que “puseram juntos”, compuseram, ou entraram em acordo sobre certos artigos. [Osório diz: a lei é fragmentária] [Osório diz: origem da lei!! MUITO BOM!].

Os relatos de Protágoras não contêm a palavra "contrato", mas, quando os deuses são afastados de sua parábola (como em vista de seu agnosticismo devem ser), descrevem-se os homens perecendo por lhes faltar a arte de viver juntos em cidades e aprendendo por dura experiência a agir justamente e respeitar os direitos dos outros, e fundando assim comunidades políticas. Trata-se de questão de "autodomínio e justiça" (Prot. 322e). Protágoras, disse Ernest Barker, não era "nenhum crente na doutrina de contrato social". Em parte se o deve à convicção errônea de Barker ter "concebido o Estado como ordenação de Deus, existindo jure divino, antes do que como criação do homem, existindo ex contractu", e em parte porque "um contrato que resulta numa unidade artificial mantida por leis artificiais logo se romperia ao se formar. Aquilo de que se precisa e é tudo, é... uma mente comum para perseguir um propósito comum de vida boa". Isto é verdade, mas implicar-se-á na teoria do contrato esta artificialidade?

Não estará certo Popper quando afirma que “a palavra ‘contrato’ sugere... talvez mais do que toda outra teoria, que a força das leis está na prontidão do indivíduo a aceitar e obedecer a eles”?

As virtudes morais que tornavam possível uma vida em comum (aidos, dike, sophrosyne) eram pré-condições necessárias para a fundação de uma polis, mas, uma vez que Protágoras não acreditava que as leis eram obras da natureza ou dos deuses, deve ter crido, como outros pensadores contemporâneos progressistas, que foram formuladas como resultado de um consenso de opinião entre os cidadãos que desde então se consideravam por elas vinculados. [Osório diz: BOM! Protágoras - nascimento e manutenção das leis].

Na "defesa de Protágoras", empreendida por Sócrates no Teeteto (167c), encontramos uma teoria que só se refere às condições presentes, embora não seja discordante com uma crença num contrato original no passado. "Quaisquer atos que possam parecer justos e convenientes a determinado Estado, são-no para este Estado enquanto neles crê; mas quando em caso particular eles são onerosos para os cidadãos, o sábio os substitui por outros que parecem ser benéficos". Este dito segue da doutrina de Protágoras do "homem como medida" (pp. 173ss abaixo), e, como diz Salomon, é um dito de fato e não normativo: aquilo sobre que uma cidade concorda, é justo para a cidade enquanto continuar a considerá-lo válido (nomitze — aceita-o como nomos) [Osório diz: BOM!]. O contrato tornou justo e certo para os cidadãos observar as leis até que sejam alteradas, ainda que a cidade possa prosperar mais sob leis diferentes. De modo semelhante, Aristóteles, mais tarde, distinguindo entre justiça natural e legal, equipara esta última com "justiça por acordo". As primeiras palavras de Antífon fr. 44 A ("Digo que justiça consiste em não transgredir as leis e usos do seu próprio Estado") e a identificação de justo com legal por Sócrates em Xenofonte (Mem. 4.4.12, p. 106 acima) sugerem que esta concepção legal de justiça estava em voga entre os pensadores progressistas da época, e as várias conclusões tiradas dela estavam sob vívida discussão. Deixava aberta a questão se justiça assim definida era ou não "benéfica" (sympheron). [Osório diz: Sim, era! Pois beneficiava assim arguir até para modificá-la, se fosse o caso. Até a identificação de justo com legal poderia ser boa, se ele fosse um democrata! Mas não era!].

Podemos seguramente inserir Protágoras entre os que explicavam o surgimento de comunidades políticas em termos de contrato ou acordo. [Osório diz: ANTECIPAM Locke e Rousseau]

Hípias, para quem lei e natureza estavam em forte contraste... definiu leis explicitamente como “alianças feitas pelos cidadãos pelas quais eles promulgaram por escrito o que devia ou não fazer” (linguagem que lembra Antífon, ...), e indicou a rapidez com que podem ser mudadas como motivo para não levá-las muito a sério [Osório diz: ou para levá-las a sério sim, humanamente. Platão não entra na história por que ele fala diretamente com deus e dele recebe as leis. Moisés é o Platão da bíblia!].

Antífon, no mesmo contexto de oposição entre natureza e lei, também chama as leis de resultados de acordo, que para ele (diversamente de Protágoras) justifica ignorá-las em favor dos preceitos da natureza. [Osório diz: assim atuam os parlamentos!]

No Sísifo de Crítias, onde as leis e suas sanções são instituídas pelos homens para controlar a selvageria do estado de natureza.

As concepções de lei como contrato humano e como dom da divina providência. Mas por alguma razão sempre se atribuíram as honras a Licófron, conhecido por Aristóteles como sofista e de quem se pensava ter sido discípulo de Górgias. E até se afirmou ter sido o fundador da teoria do contrato social em sua forma mais primitiva, embora, uma vez que provavelmente não escreveu antes do séc. IV, a documentação já examinada torne isso impossível.

Nossa autoridade é Aristóteles em sua Política (128b10). Discutindo a perene questão da relação entre lei e moral, ele afirma que a meta e alvo do Estado é promover a vida boa [Osório diz: com ou sem dor? Mas isso não é hedonismo?] e, portanto, ele tem direito e dever de se interessar pela bondade moral de seus cidadãos. “De outra forma”, continua ele, “a sociedade política torna-se mera aliança, diferindo apenas quanto à localização das alianças entre países distantes; e a lei torna-se um contrato, e como Licófron, o Sofista, disse, uma garantia dos direitos recíprocos dos homens, e não meio de tornar os cidadãos bons e justos”. [Osório diz: Aristóteles não era hedonista por quê?]

Lei são "uma garantia dos direitos recíprocos dos homens"

A limitação da lei ao papel negativo de proteger os cidadãos uns contra os outros foi proclamada antes como um ideal por Hipódamo, o célebre planejador de cidades e teórico político que viveu em Atenas em meados do séc. V, [Osório diz: legal] reconstruiu o Pireu com o plano de uma grade e ocupou-se com a nova cidade colonial de Thurii para Péricles. Em seu Estado ideal, admitiria apenas três ofensas passíveis de sanção penal, que se podem traduzir por insulto, injúria (a pessoa ou propriedade) e assassínio. 10 De mais a mais, foi o primeiro a propor um supremo tribunal de apelo contra julgamentos errôneos. [Osório diz: a chamada segunda instância nas organizações judiciais].

Licófron e Hipódamo teriam concordado com J. S. Mill [Osório diz: ou foi este que concordou com aqueles!?] que o único propósito pelo qual a lei podia ser justamente imposta contra um membro da comunidade era prevenir danos a outros; seu próprio bem, físico ou moral, não era garantia suficiente. Ao ver de Aristóteles, isto ignora o real propósito da associação política, que era assegurar não só a vida, mas vida boa. Ele teria estado do lado de Lord Simons, que em 1962 declarou ser “o propósito supremo e fundamental da lei a manter não só a segurança e a ordem, mas também o bem-estar moral do Estado”, e sua concepção geral se aproxima da de Lord Devlin, segundo o qual “o que faz uma sociedade é uma comunidade de idéias, não só idéias políticas, mas também idéias acerca da maneira como seus membros devem se comportar e governar suas vidas”. [Osório diz: os gregos devem seguir os ingleses!!!].

No Crito de PIatão, Sócrates expõe na cela de sua prisão a doutrina de um acordo entre ele mesmo e as leis de sua cidade como argumento contra a tentativa de escapar do julgamento que aquelas leis proferiram contra ele. Ele não diz nada sobre a origem da lei, mas não há nenhuma sugestão de que fosse divina. A argumentação é que, uma vez que seus pais foram casados sob as leis de Atenas, Sócrates deveu seu nascimento, sua educação e seu meio de vida àquelas leis. De mais a mais, elas lhe deram liberdade, se ele achasse qualquer coisa de objetável nelas, para deixar Atenas com toda sua propriedade e ir morar alhures. Uma vez que não escolhera deixá-la, deve agora considerar-se seu filho e seu servo. Era "justo" para ele aguardar suas decisões, e, assim como tinha arriscado sua vida na batalha sob seu comando, assim também devia entregá-la agora que a exigiam dele. Este era o acordo entre eles (50c, 52d), e era necessário para a própria existência do Estado. Se indivíduos privados desprezassem os julgamentos da lei por seu próprio capricho, abalar-se-ia todo o fundamento da vida da cidade. [Osório diz: isso tira dele a possibilidade de contestar, como fez em seu julgamento, uma vez que a lei é aquilo que o julgador diz que ela é? Pode-se dizer que ele não contestou a lei, mas a acusação. Mas nem isso a ele aproveita, pois os julgadores, com ou sem sua defesa, são a boca da lei! O julgador é a lei falando! Ele contra-argumentou! Mas não precisava, os juízes sabem o direito! Além do mais, como ele mesmo disse, era conhecido de todos!].

Nas obras de Platão vimos também a concepção de leis como contrato exposto por testemunhas hostis a ela, Cálicles e os “eles” de Gláucon. Os que promulgaram as leis, diz Cálicles, são a maioria fraca; e também a justiça e o autocontrole e tudo o que milita contra uma vida de desregramento e licença são “acordos humanos contrários à natureza”. Contra elas Cálicles exalta o super-homem que estruturará seus laços e viverá uma vida de tirano auto-indulgente. “Eles”, de outro lado – a massa da humanidade enquanto pintada por Gláucon – não entretêm nenhuma destas idéias heróicas. Elas aceitam a existência do contrato como segundo bem melhor de preferência a ser capaz de fazer exatamente o que se quer, uma vez que para todos se comportarem assim é uma impossibilidade prática. O comportamento egoísta limita-se a escapar da lei quando se pode dela escapar sem medo de ser percebido. O próprio Platão é com certeza advogado do nomos, como o manifesta Crito, e em seus anos posteriores montou vigorosos ataque contra os que sustentavam que ele podia ser de alguma forma oposto a physis. Opõe-se, portanto, tanto ao ideal do super-homem que sendo lei para si mesmo segue a “justiça da natureza”, como idéia mais comum de que as leis se devem aceitar como mal necessário, mas se devem transgredir sempre que se possa fazê-lo com segurança.

[Pode ser relevante mencionar a posição pessoal de Barker, que é uma reconciliação de physis e nomos, pelo menos no plano humano. O governo é para ele "atributo essencial da sociedade política, que por sua vez é essencial atributo da natureza humana"(G. P. T. 160.).

Para ser honesto com Barker, deve-se acrescentar que em sua introdução a Nat. Law de Gierke (1934), ele foi mais cauteloso em sua expressão. Ele disse aí ...: “Pensadores da lei natural foram capazes de falar de um a-histórico ‘estado de natureza’ e de um ato histórico de contrato pelo qual os homens saíram dele... de outro lado... pensadores da lei natural não tratavam realmente dos antecedentes históricos do Estado: estavam interessados por suas pressuposições lógicas; e ainda existe uma questão a propor quanto à visão de que o Estado, enquanto distinto da sociedade, é associação legal que repousa fundamentalmente na pressuposição do contrato”.].

Cross e Woozley, cujo critério para uma teoria do contrato social é que deve expressar uma obrigação moral de obedecer às leis conseqüente à promessa do indivíduo de fazê-lo, e que qualquer fato supostamente histórico sobre a origem da lei é irrelevante a ela, insistem que o que Gláucon propõe não é "a teoria do contrato social", pela razão mesma que levou Barker a afirmar que era, ou seja, que "a ênfase recai inteiramente na proposição fatual, ou supostamente histórica, que pretende dar-se conta do que induziu os homens a emergir de um estado de natureza para a organização de uma comunidade social" [Comm. on Rep. 71ss. Como definida aí, a teoria certamente excluiria o relato de Gláucon, mas não é desorientados falar de "a teoria do contrato social?" (grifei). O que os autores mesmos dizem de Hobbes Locke e Rousseau, todos tidos por eles como contratualistas, mostra que é antes uma questão desta ou daquela teoria do filósofo de um contrato social, cada uma sustentando-a de uma forma um tanto diferente; e dificilmente se pode negar que a de Gláucon seja uma teoria contratualista (359a synthesthai allelois... nomous tithesthai kai synthekas). Dizer que a única teoria do contrato social é teoria que não se apoia em afirmação histórica, e por isso está imune das objeções levantadas contra ela naquela forma, é certamente tomar uma questão como provada. Parece mais proveitoso começar com o fato de que há duas formas principais da teoria, como Popper o faz quando distingue a forma teórica, interessada somente pelo fim do Estado (que ele mesmo vê em Licófron), da "tradicional teoria historicista do contrato social" (O.S. 114).]. [Osório diz: hipótese de trabalho]

 

teoria histórica da evolução da sociedade

 

os homens a sujeitar seus instintos selvagens

 

[Para esta teoria veja pp. 60ss e Apêndice p. 78, acima. Também (Sófocles no coro de Antígona... menciona a regulamentação legal da vida social como algo que o homem “desenvolveu para o seu próprio benefício, por seus próprios esforços”. … [Osório diz: fantástica esta obsrvação].]a ele.

Como observamos, [a teoria do contrato social] acompanhou teorias científicas pré-socráticas sobre a origem da vida física, constituindo uma reação contra relatos míticos mais antigos de degeneração humana. Protágoras e Crítias ambos sustentaram esta teoria, e ambos acreditavam no contrato social como um fato histórico.

As idéias de Antífon e (tais como relatadas) de Hípias não fazem nenhuma referência explícita a origens históricas, mas também não realizam as condições de Cross-Woozley para "a teoria do contrato social" afirmando uma obrigação moral de obedecer à lei. No seu modo de ver, o fato de que as leis não são naturais, mas meramente acordos livra o cidadão do dever de lhes obedecer em todas as circunstâncias. [Osório diz: é a mesma coisa! A lei do contrato social também é desobedecida constantemente!].

No séc. IV, o autor do discurso contra Aristógeiton [Osório diz: Demóstenes, no caso] tirou a moral oposta: as leis seriam instituídas contra a natureza porque a natureza é "desordenada" e a lei introduz imparcialidade e justiça igual para todos. Como decisões de homens sábios guiados pelos deuses, foram aceitas por comum acordo e devem-se-lhes obediência. A documentação para Licófron é pouca, mas, ao chamar as leis de "uma garantia de direitos recíprocos”, deve ter tido em mente modo semelhante de considerar.

Se aceitarmos como marca essencial de uma teoria do contrato social que não faça nenhuma afirmação histórica sobre a origem da lei, porém mantenha que todo membro de um Estado tem obrigação moral de obedecer às suas leis porque ele mesmo entrou em acordo e comprometeu-se, pelo menos implicitamente, a fazê-lo, então um seguidor indiscutível dela neste período é Sócrates. [Osório diz: mas isso já é a lei posta e sendo executada!].

Existe outra possibilidade a ser considerada, a de que um filósofo pode propor sua teoria em forma histórica sem querer que seja entendida literalmente. Ele pode apenas querer apresentar uma "definição genética”, uma análise de um estado de coisas em seus elementos constitutivos, acreditando que a melhor forma de tornar clara sua estrutura é representá-la como sendo construída peça por peça dos elementos sem implicar que tal processo de construção tenha tomado alguma vez forma temporal. [Osório diz: legal, mas idiota! Embora seja isso que ocorre] Um geômetra pode explicar a estrutura de um cubo em termos da construção de um quadrado desde quatro linhas retas e depois um cubo desde seis quadrados sem significar que linhas retas existiam antes no tempo de figuras planas, nem figuras antes de sólidos. [Osório diz: para que serve? Vida de homens não é diferente?].

Dos discípulos imediatos de Platão em diante, comentadores disputaram se ele quis que sua cosmogonia fosse entendida desta forma, ou se acreditou num processo literal de criação. A ideia de definição genética foi estendida da física para a teoria política por Hobbes. Em geral, "se alguém quer 'saber' de algo, deve ele mesmo constituí-lo; deve fazê-lo desenvolver de seus elementos individuais". Ubi generatio nulla... ibi nulla philosophia intelligitur. [Osório diz: só apontamos os furos dos nossos desafeto!).

Todavia, lendo os escritos dos teóricos do contrato social, descobrimos que a distinção entre uso literal e instrutivo de exposição genética não é absolutamente preciso. Afirmando, de um lado, que a proposição histórica, de que antes do contrato os homens viveram num estado de natureza, é irrelevante para sua teoria, parecem todavia ansiosos de lhe darem todo fundamento histórico que podem. Assim o próprio Hobbes: [Osório diz: Platão não precisa provar a existência de deus!].

Rosseau no prefácio no Discurso sobre a origem da desigualdade chama o estado de natureza de um estado que “talvez nunca existiu, e provavelmente nunca vai existir; e todavia é necessário ter idéias verdadeiras dele, para formar uma juízo adequado do nosso estado presente” [Osório diz: essa mesma observação serve para os deuses? Isso não é construir sobre o nada?]. Ele diz que fatos não atacam a questão, e que suas pesquisas “não se devem considerar como verdades históricas, mas apenas como meros raciocínios condicionais e hipotéticos, antes calculados para explicar a natureza de coisas do que apurar sua origem real”. Este parece um exemplo perfeito de definição genética, e no Contrato social achamos o seguinte: “Eu admito, por causa da argumentação, que foi alcançado um ponto na história da humanidade...” [Osório diz: a linguagem como fato de construção da sociedade política!] e “pelo contrato social entregamos a vida e a existência ao corpo político” (o grifo é meu). Todavia mais tarde, em A origem da desigualdade ele escreve: “Tal foi, ou pode ter sido, a origem da sociedade”, e, na página seguinte, depois de repetir que a causa real originadora das sociedades políticas é indiferente a esta argumentação [Osório diz: eis a palavra criando o que se tornou realidade!], ele passa a dar razões pelas quais a que ele expôs é “a mais natural” e a defendê-la contra outras. ...De modo semelhante a Locke, Cross e Woozley dizem (sem dar nenhuma referência) que “como Locke viu mais claramente do que Hobbes, a proposição de fato, mesmo que fosse verdadeira, não forneceria nenhum apoio à teoria”. Todavia os §§ 99s do Segundo tratado mostra claramente que para Locke era fato histórico. Ele não só faz a afirmação inequívoca: “Isto, e somente isto, deu ou pôde dar começo a todo governo legal no mundo”, mas também continua mencionando e rebatendo a objeção de que nenhum exemplo histórico se pode citar do estabelecimento de um governo desta maneira. A recordação da história, frisa ele, só pode começar quando a sociedade civil já começou a existir há muito tempo para permitir o desenvolvimento do lazer literário. [Osório diz: história era (e é) memória, pois somente era (é) escrita em fase posterior à ocorrência dos fatos!].

Dos teóricos gregos, parece mais provável que foi Protágoras que deu uma definição genética. Sua intenção não é fazer um relato histórico da origem da civilização, e sim responder à pergunta de Sócrates se a virtude política pode ser ensinada; e lhe é indiferente dar esta resposta na forma de argumento arrazoado ou de narrativa. Ademais, quando vem a narrativa ela tem sabor de conto de fada e muitos elementos míticos. Todavia ela assume tanto de teorias seriamente sustentadas da história, que, como seus sucessores do pós-renascimento, provavelmente manteve um pé nos dois campos [Tudo o que ele diz sobre o assunto no logos que segue o mythos é: "O Estado estabelece as leis, que são invenção dos bons legisladores de tempos antigos, e compele os cidadãos a governar e ser governados em conformidade com elas" (326d). [Osório diz: esse pensamento que levou Péricles a escolhê-lo legislador de Túrio?]. Quanto aos outros que consideramos, Hípias, Antífon e Licófron, nossa documentação, na medida de seu alcance, não dá nenhum indício de propor uma teoria histórica da origem da lei, o que também não se manifesta no discurso contra Aristógeiton ou no Cálicles de Platão. A doutrina de Sócrates enfaticamente não é uma doutrina historicista. Somente Gláucon na Rep. 2 pretende dar relato histórico.

Finalmente, ao perguntar se os gregos acreditavam na teoria do contrato social, estamos lhes propondo uma pergunta que eles mesmos não se propuseram [Osório diz: precisavam ter batizado? Animal peçonhento que rasteja e pode injetar veneno com suas presas salientes e tem a língua partida! É mais eles não a chamaram de cobra, logo, não pensaram sobre o tema! VsF!]. A pergunta que propuseram era se “justo” era a mesma coisa “legal”. As respostas eram de dois tipos, normativas e fatuais. Ou a justiça retinha seu sentido de ideal ético, e este ideal era equiparado com observar as leis, ou se pretendia que, ao usarem os homens a palavra altamente sonora “justiça”, tudo o que queriam dizer por ela era observância das leis existentes, o que podia de fato ser uma conduta imprudente ou danosa [Osório diz: aqui recomeça o questionamento da lei! Justamente quando os poderosos manobraram para assumir sua produção!]. Em Protágoras, apresenta-se em primeira linha Protágoras: a justiça, que é elemento essencial da “excelência humana” em seu conjunto (325a), identifica-se com “excelência política”, o respeito pela lei que levantou o homem do estado de selvageria e sem a qual a sociedade pode sofrer colapso. No Teeteto, parece que ele adota a segunda interpretação, a fatual, como sua teoria do “homem como medida” exige: o que é justo é somente o que o próprio Estado declara ser justo. O Estado pode ser persuadido de que errou e a emendar suas leis, pelo que o conteúdo da ação justa neste Estado será alterado [Osório diz: Essa é a prova da falibilidade! Se a lei é obra dos deuses estas são falíveis! Mas Protágoras mostra que não, que é obra do homem, logo, sujeita a eternos melhoramentos]. Mas ele ainda afirmaria que a observância daquelas leis defeituosas, até serem alteradas por processos constitucionais adequados, era moralmente correta como alternativa ao caos que seguiria se todo cidadão se sentisse livre para desconsiderá-las [Osório diz: que maior “moralidade” se pode exigir de um homem desses?]. Antífon e Hípias de outro lado sustentavam que, uma vez que tudo o que se queria dizer com justiça era conformidade ao nomos, ela não acarretava nenhuma obrigação moral e se poderia fazer melhor seguindo os preceitos contrários da physis [Osório diz: desde que, e Guthrie não diz agora e o diz veladamente, os preceitos do nomos fossem contrários ao da phýsis! O correto é dizer: quando os preceitos do nomos contrariarem o da phýsis, prefere estes! É que não teria sentido incentivar a observância da phýsis quando o nomos está de acordo com ela!]. Tal crença podia, se bem que não precisasse, levar ao egoísmo brutal exemplificado por Cálicles.

Sócrates concordava com Protágoras que era justo (no sentido de moralmente obrigatório) obedecer às leis ou então fazê-las mudar por persuasão pacifica (esta alternativa é mencionada no Crito [Osório diz: onde? Ao contrário, é nisso que Sócrates acaba se aprisionando! Ele não admite a contestação das leis da cidade! Ele é contrário aos Sofistas e a Protágoras em particular. Ele não aceita a mudança da lei! Aí seu pensamento se torna o ridículo que é]) e que a omissão de fazê-lo destruiria a sociedade.

Mas dois outros pontos podem se notar. Primeiramente, existe uma alusão no Crito a algo que não ocorre alhures, ou seja, uma distinção entre as leis mesmas e sua administração [Osório diz: mas aí o cidadão quer assumir a função de intérprete que não é dele. É a lei quem diz quem é o intérprete e se ela o diz não pode ser contestada, segundo Sócrates]. Na conversa imaginária de Sócrates com as leis de Atenas, estas dizem que, se ele se conformar com a decisão do tribunal e concordar em ser executado em vez de tentar escapar, "tu serás a vítima de uma injustiça feita a ti, não por nós, mas por teus compatriotas" [Osório diz: quem diz a lei, afinal?]. Se, por outro lado, ele fugir, ele estará se comportando desonestamente por transgredir seus acordos e contratos com as próprias leis. Em outras palavras, uma vez que se deu legalmente o veredicto, não existe alternativa legal à sua execução [Osório diz: perfeito!]. Sócrates nada viu de errado nisto mesmo no caso de sua própria sentença de morte, mas parece que havia espaço para a proposta de Hipódamo de um tribunal de apelo. Em segundo lugar, ao dizer que "justo" era idêntico com "legal", Sócrates inseria as leis não-escritas universais e divinas e levava em conta o julgamento na vida futura bem como nesta vida [Osório diz: começou a idiotice de vida futura!]. Para as leis não-escritas temos a documentação de Xenofonte, e, no Crito, as leis continuam, imediatamente a partir do ponto já mencionado, a dizer que as leis no mundo futuro não o receberão com cortesia se elas sabem que ele tentou destruir seus irmãos [Osório diz: Idiotice do mundo das ideias de Platão quanto ao mundo futuro. E quanto aos irmãos e os que ele matou na guerra? Ou ele foi para guerra para perguntar “o que é a guerra”? Ou será que ele usou lanças inteligentes, como os drones atuais?] nesta vida.” (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 127, 128-137).

 

Prossegue Guthrie:

 

Voltando-nos de causas para facetas de mudança (à medida que se podem distinguir os dois aspectos), destas últimas a mais fundamental é a antítese entre physis e nomos que se desenvolveu nesta época entre filósofos naturais e humanistas igualmente. (p. 25) [Osório diz: Natureza e Leis].

O individualismo desmedido dos que, como Cálicles de Platão, defendiam que idéias de lei e justiça eram mero expediente da maioria de fracos para afastar o homem forte, que é o homem justo da natureza, do lugar que por direito lhe cabe.

Na idéia de que leis são assuntos de acordo humano, "alianças feitas pelos cidadãos", como Hípias as chamou (p. 130 abaixo)

Temos a essência da teoria do pacto social que se desenvolveu sobretudo na Europa dos sécs. XVII e XVIII.

Uma afirmação inequívoca da teoria contratual da lei é atribuída por Aristóteles a Licófron, discípulo de Górgias, e, em sua forma histórica, como teoria da origem da lei, é afirmada claramente por Gláucon na República como modo de ver corrente que ele gostaria de refutar.

Além de leis no sentido comum, a opinião contemporânea reconheceu-a existência de "leis não-escritas", e a relação entre ambas ilustra bem a natureza transitória deste período de pensamento. Para uns, a frase denotava certos princípios morais eternos, válidos universalmente e prevalecendo sobre as leis positivas dos homens porque tinham sua origem nos deuses. Esta noção é mais bem conhecida pelas esplêndidas linhas de Sófocles na Antígona (450ss), onde Antígona defende o funeral de seu irmão morto contrário ao edito de Crêon declarando: "Não foi Zeus nem foi a Justiça que decretaram estes nomoi entre os homens, nem julgo tua proclamação tão poderosa que tu, um mortal, possas subverter as leis seguras e não-escritas dos deuses". Mais tarde veremos outras referências a estas leis divinas que existiram em todo tempo, e sua superioridade sobre os decretos falhos e mutáveis dos homens. Contudo, com a difusão de ideias democráticas, a frase ganhou sentido novo e mais sinistro. A codificação da lei veio a ser considerada proteção necessária para o povo. Não só Eurípedes (Suppl. 429ss) considerou-a garantia para direitos iguais e baluarte contra a tirania, mas também na prática a democracia restaurada no fim da guerra do Peloponeso proibiu expressamente ao magistrado fazer uso de leis não-escritas. [Osório diz: lei não escrita era a burguesia!] [Osório diz: cada coisa no seu contexto!].

(...)

O crescimento do ateísmo e do agnosticismo nesta época também esteve conexo com a ideia de nomos. [Osório diz: Religião]

Ele foi um dos que opunham lei e natureza e defendia esta última por motivos morais e humanitários, e não egoísticos e ambiciosos. Defendeu uma forma da teoria de contrato social da lei: a lei positiva, sendo assunto de acordo humano e freqüentemente alterado, não se devia considerar como fornecendo padrões fixos e universais de comportamento. Podia ser “um tirano fazendo violência à natureza”. Acreditava, porém, que havia leis não-escritas, divinas de origem e universais na aplicação, referentes a coisas tais como a adoração dos deuses e o respeito para com os pais. Com a crença em leis naturais universais (e para Hípias natural e divino parece ser o mesmo) ia a crença na unidade básica do gênero humano, cujas divisões são apenas assunto de nomos, isto é, lei positiva e convenções e hábitos estabelecidos, mas errados. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 26, 27 e 263-264).

 

Kerferd ensina:

 

Algumas outras implicações da doutrina de Protágoras serão consideradas abaixo. Mas primeiro será conveniente descrever alguns outros modelos para a estrutura das sociedades humanas que também se originaram no período sofista. Um deles concerne à doutrina do contrato social, que viria a se tornar tão famosa e importante nos séculos XVII e XVIII, quando foi desenvolvida por Hobbes, Locke e Rousseau [Osório diz: a doutrina do Contrato Social pelos Sofistas]. Na sua forma convencional, a teoria do contrato social sustenta que as sociedades humanas se assentam em um acordo implícito e, portanto, não-histórico, ou em um acordo real e histórico, de estabelecer uma comunidade organizada. Às vezes supunha-se que antes desse contrato não havia obrigações sociais ligando um homem a outro, e que o próprio contrato, sendo baseado no consentimento dado racionalmente com base no interesse próprio individual, era a fonte lógica donde se deveriam deduzir todos os direitos e deveres dos cidadãos. Outros supunham que, independentemente de tal contrato, havia direitos que fluíam, por exemplo, de deus ou da lei natural, mas que a obrigação de obedecer a um governo civil não tinha outra fonte que o contrato social no qual esse governo se baseava. Em qualquer um dos casos, supunha-se que o governo devia se assentar no consentimento dos governados, quer dado de uma vez por todas, quer sujeito a uma contínua confirmação. [Osório diz: a legitimidade dos governos, segundo os Sofistas].

Portanto, a essência da teoria é a opinião segundo a qual a obrigação política dimana de um acordo contratual, real ou implícito. A tentativa de atribuir tal opinião a Protágoras deve ser rejeitada como equivocada, como por exemplo a de Guthrie, que escreve: "visto que Protágoras não acreditava que as leis eram obra da natureza ou dos deuses, ele deve ter acreditado, como outros pensadores progressistas contemporâneos, que foram formuladas como resultado de um consenso de opinião entre cidadãos que, daí em diante, se consideraram ligados por elas". Essa inferência é claramente impossível, visto que a rejeição de deus ou da natureza não deixa como única possibilidade a de a sociedade ser baseada em um contrato. Não defendeu Trasímaco, por exemplo, uma teoria do contrato? Mais importante que a não-validade da inferência é a completa ausência de qualquer sugestão, nos testemunhos existentes, de que esse era o modo pelo qual Protágoras via a questão. [Osório diz: Kerferd queimando Guthrie].

Mas tais teorias eram conhecidas no período que nos interessa aqui. Segundo Xenofonte (Mem. IV, 4.13), Hípias falava das leis como declarações escritas do que devia e não devia ser feito, em decorrência de acordos realizados entre os cidadãos de um Estado; mas depois ele passa a minimizar as obrigações que deles resultam. Sua própria opinião, como vimos, era que se deve preferir a natureza à lei, e que é a natureza a verdadeira fonte das obrigações humanas. No segundo livro da República, o irmão de Platão, Glauco, pretende declarar (358cl) o que é que os homens dizem que é a natureza e a origem da justiça. O que eles dizem (358e3ss.) é que, por natureza, praticar a injustiça é bom, e ser injustiçado é mau, mas que as desvantagens de sofrer a injustiça excedem as vantagens de infligi-la. Depois de provar ambas, portanto, os homens, que são incapazes de escapar de uma e alcançar a outra, decidem que lhes é mais vantajoso entrar em acordo um com o outro, tendo por base que nenhum mal deve ser infligido, e nenhum deve ser sofrido. Começaram, por conseguinte, a fazer leis e contratos por conta própria, e dão o nome de legal e justo ao que a lei prescreve. Essa é a origem e a natureza da justiça [Osório diz: legislação (lei) e justiça]. Não é diferente a posição esboçada no fragmento do Sísifo (DK 88B25), conforme a qual a ausência de recompensas e de punições para os bons e para os maus, no estado original em que os homens a princípio se encontraram, levou-os a estabelecer leis a fim de que reinasse a justiça. Embora o termo "acordo" não esteja incluído, a implicação aponta exatamente para essa base.

Mais discussão se concentrou em torno de Críton, onde Platão representa as leis de Atenas (50a6ss.) implorando ardentemente a Sócrates que não fuja da prisão, alegando que ele tinha livremente concordado com as leis em conformar-se com os veredictos legais pronunciados pela cidade. Esse acordo é dito ter sido feito por Sócrates, não com palavras, mas por suas ações, ao passar, voluntariamente, toda a sua vida, até aquela data, na cidade de Atenas (52d5), e não deve ser agora violado por ele [Osório diz: Platão incentivando Sócrates a morrer?!]. Muito mais tarde, o tratado As Leis de Platão vai acrescentar ainda outras considerações que não nos concernem necessariamente aqui; mas é provável que o Sócrates histórico estivesse pelo menos interessado na opinião de que o fundamento da obrigação de obedecer às leis jaz num acordo implícito.

A noção de que as leis são o produto de um tipo de acordo contratual se encontra na lista de expressões encomiásticas a elas aplicadas no chamado Anônimo Peri Nomôn (Ps. Demóstenes XXV, 16). Essa noção é mencionada, com desaprovação, por Aristóteles, na Política (III, 9.8 = DK 83.3), no que pode ser (longe de qualquer certeza) uma referência ao sofista Licofron, um aluno de Górgias. O que Aristóteles com toda certeza atribui a Licofron é o que veio a ser conhecido como a visão protecionista do Estado, segundo a qual o Estado existe meramente para garantir os direitos dos homens, uns contra os outros. Nessa visão, sua função é ser uma espécie de associação cooperativa para a prevenção do crime, em antecipação da moderna concepção do Estado como uma instituição laissez-faire, em vez de ser, como Aristóteles queria que fosse, uma instituição que fizesse os membros da polis bons e justos. [Osório diz: mais uma antecipação sofística!].

Na visão protecionista, o Estado teria sua função reduzida, com limites bem definidos, e a associação política se assentaria sobre um consentimento de âmbito limitado. Umas poucas referências esparsas sugerem que era também conhecido e discutido, na época, um conceito mais positivo, a saber, o de um tipo de consenso político, baseado na mentalidade comum a todos os cidadãos concernente aos modos de vida, classificada sob o termo homonoia. Esse era um termo que denotava o que viria a ser um ideal político muito importante entre os estóicos e na teoria da monarquia helênica, a partir do tempo de Alexandre, o Grande, e que, no devido tempo, seria equiparado à palavra latina concórdia. É lastimável que não seja possível recuperar a história do termo no pensamento do século V. O que podemos dizer é, primeiro, que ele ocorre em dois fragmentos de Demócrito, a saber, em DK 68B250, onde nos é dito que somente em consequência da homonoia é que as cidades podem realizar grandes obras, inclusive guerras, tema que faz parte da crítica que Sócrates faz da injustiça como fonte de desacordo desmantelador, no primeiro livro da República [Osório diz: Sócrates critica a guerra? Mas ele não foi um guerreiro?]; e em DK 68B255, que tem sido descrito, talvez com algum exagero, o único mais notável pronunciamento de um teórico político em Hélade. Este é o fragmento onde nos é dito que, nas ocasiões em que os poderosos têm a coragem de adiantar dinheiro para servir e beneficiar os que não têm, há piedade e fim da solidão, e há também amizade e ajuda mútua. Os cidadãos se tomam de uma só mentalidade e outras bênçãos resultam, e tantas, que nenhum homem pode enumerá-las. Sabemos, também, que Górgias falou do assunto da homonoia em Olímpia (82B8a). Esse foi o título de uma obra de Antífon (DK 87B44a), cujo conteúdo, contudo, permanece enigmático. Finalmente, temos uma declaração geral de Xenofonte (Memoráveis IV, 4.16) posta na boca de Sócrates, onde se diz que homonoia é o maior bem que uma cidade pode possuir, e quando ela está presente as leis são obedecidas, a cidade é uma cidade boa. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 250-254).

 

23

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

53.3 – Religião – teorias racionalistas – (a) agnosticismo e (b) ateísmo.

 

Nos diz Guthrie:

 

Religião: teorias racionalistas: (a) agnosticismo, (b) ateísmo, c) Monoteísmo: Antístenes.

 

a) Agnosticismo: Protágoras.

 

Segundo Diógenes Laércio (9.24), o filósofo eleata Melisso disse que era errado fazer qualquer pronunciamento sobre os deuses porque era impossível o seu conhecimento. Mas o caso clássico de agnóstico neste século é o seu contemporâneo Protágoras, que ficou famoso por ter escrito:

 

Quanto aos deuses, sou incapaz de descobrir se existem ou não, ou que forma têm; pois há muitos empecilhos para o conhecimento, a obscuridade do assunto e a brevidade da vida humana. [Osório diz: o cara confessa uma fraqueza sincera (o desconhecimento) e é condenado? Deveria ele mentir, como faz Platão? Aliás, mentir sobre deus é a melhor coisa, pois é impossível provar a mentira na forma que se requer!]

(...)

A forma da afirmação é de uma opinião pessoal (“Sou incapaz...") e contrasta significativamente com uma expressão como a de Xenófanes (fr. 34) de que nenhum homem viu, e nenhum homem também nunca saberá a verdade sobre os deuses [Osório diz: Protágoras não fecha portas! Não diz que o tema deva ser encerrado. Não o dá por findo para o homem, apenas para ele próprio, Protágoras]. Alguns acreditavam nos deuses e outros não, e, sendo assim, de acordo com o princípio "o homem é a medida", os deuses existiam para alguns e não para outros; mas para o próprio Protágoras a suspensão de juízo era a única maneira possível [Isto se acomoda satisfatoriamente coma alegação de T. Gomperz (GT, 1, 457) de que se Protágoras cresse, como Platão disse que cria, que "toda a verdade de um homem é a verdade que lhe parece", ele não poderia ter dito o que disse sobre os deuses. [Osório diz: claro que poderia. Uma coisa não exclui outra! Para ele, Protágoras era assim. Isso não impedia que para outro fosse diferente! Mas, daí seu gênio: um poderia convencer o outro de sua tese! Ess Gomperz, tanto pai quanto filho são dois fanáticos!]]. [Osório diz: isso mesmo! Enfim o autor, Guthrie, reconhece o que deveria ser do conhecimento de todos! Protágoras jamais proibiu, até porque nem poderia, a crença nos deuses, mas a entregou a cada qual!]

Protágoras (…) defendeu o culto religioso segundo os nomoi antepassados.

 

b) Ateísmo: Diágoras, Pródico, Crítias; os dois tipos de ateísmo de Platão.

 

"Como credo dogmático, consistindo na negação de toda espécie de poder sobrenatural, o ateísmo não foi com frequência sustentado seriamente em qualquer período do pensamento civilizado". (p. 219) [Osório diz: e onde o foi no incivilizado? / Seriamente para quem?]

Que tais ateístas ("que não criam inteiramente na existência dos deuses", 908b) eram comuns pela época de Platão é certo por sua menção deles nas Leis, onde os distingue cuidadosamente dos que afirmam (a) que existem os deuses, mas não têm nenhum interesse pela conduta humana, (b) que eles podem ser comprados por oferendas. [Osório diz: as oferendas!]

Diágoras (...) A única razão alegada para ele, e que está nas fontes tardias, é moral: diz-se que começou como poeta ditirâmbico temente aos deuses, e que depois se convenceu da não-existência dos deuses pelo espetáculo da injustiça com bom êxito e não-punida, neste caso uma ofensa específica feita a ele próprio, embora sua natureza seja narrada de várias formas. Além de sua descrença, o único outro fato registrado sobre ele por seus contemporâneos é que foi condenado por acusação de impiedade pelos atenienses, e oferecido um prêmio por sua cabeça em sua ausência da cidade.

[Osório diz: piedade: cumprimento dos deveres para com os pais, a pátria, os deuses. 1. Prática das leis religiosas. = DEVOÇÃO. 2. Vontade de diminuir ou se solidarizar com o sofrimento alheio. = COMPAIXÃO, DÓ, LÁSTIMA, MISERICÓRDIA].

Jacoby está certo quando diz que todas as testemunhas igualmente lhe atribuem "um repúdio puro e simples de todo o conceito de deuses, um ateísmo radical, extremo e sem compromisso". [Osório diz: e deveria ter compromisso com o que? Deveria ser um ateu temente a deus?].

Pródico (…) diversamente de Demócrito, viu a origem da crença religiosa na gratidão, e não no medo [Osório diz: origem da crença religiosa]. Temos as referências seguintes:

(a) “Perseu evidencia-se destrutivo, ou ignorante, do divino ao declarar em seu livro sobre os deuses que não era improvável o que escreveu Pródico, ou seja, que as coisas que nos alimentam e beneficiam eram as primeiras a ser consideradas deuses e honradas como tais, e, depois delas, os descobridores de alimentos e abrigo e as outras artes práticas tais como Demétrio, Dionísio e os...” [Osório diz: crítica estúpida! / Guthrie, na outra obra, explica isso e a idiotice não é tão idiota assim!].

(b) “Pródico diz que foram aceitos como deuses os que em suas viagens descobriram novas plantações, contribuindo assim para o bem-estar humano”.

(c) Cícero, N. D. 1.37.118: "Que espécie de religião nos deixou Pródico de Ceos, que disse que coisas úteis à vida humana foram contadas como deuses?"

(d) Ib. 15.38: "Perseu diz que os que foram considerados deuses foram os que descobriram o que era especialmente útil para a vida civilizada, e que as coisas úteis e salutares foram elas mesmas chamadas com os nomes de deuses".

(e) Sext. Math. 9.18: Pródico de Ceos diz: "Os antigos consideraram como deuses o sol e a lua, os rios, as fontes, e em geral todas as coisas que ajudam nossa vida, por causa do auxílio que elas dão, da mesma forma como os egípcios deificam o Nilo". Ele acrescenta que por esta razão o pão foi chamado Demétrio, o vinho Dionísio, a água Posêidon, o fogo Hefesto, e assim por diante com tudo o que prestava serviço. (Repete-se isso com palavras um pouco diferentes no capítulo 52).

(f) Ib. 51 inclui Pródico numa lista de ateístas "que dizem que não existe nenhum deus".

(g) ib. 39-41 critica “os que dizem que supuseram que todas as coisas que beneficiam a vida são deuses – sol e lua, rios e lagos e semelhantes”, pelo motivo de que (a) os antigos não podiam ter sido tão estúpidos para atribuir divindade a coisas que viam parecer ou mesmo comiam e destruíam eles mesmos, e (b) com este argumento deve-se também crer que homens, especialmente filósofos, são deuses, e mesmo animais e utensílios inanimados, pois todos estes trabalham por nós e melhoram nossa sorte. [Osório diz: crítica estúpida! O crítico é Sexto Empírico, como se vê na página seguinte.]

Sexto, é verdade (passagem g),

O traço da teoria de Pródico que mais impressionou foi que a origem da religião está na tendência do homem primitivo de considerar as coisas úteis para sua vida — incluindo sol, lua e rios bem como pão e vinho — como deuses. Esta teoria viria facilmente à mente de um grego racionalizante, pois em sua literatura, de Homero em diante, encontraria o nome do deus respectivo para a substância mesma, como Hefesto para fogo ("Espetaram as entranhas e as puseram sobre Hefesto, Il. 2.426), e o sol, a lua e os rios eram deuses. "Meu noivo foi um rio", diz Deianeira muito naturalmente (Soph. Trach. 9), e, sendo um deus, podia tomar qualquer forma que quisesse — de touro, de homem ou de serpente, como também da água. Empédocles deu nomes de deuses aos quatro elementos, e (pelo que possa valer) Epifânio diz que Pródico os chamou de deuses, como também o sol e a luz, "porque a vida de tudo depende deles".

Uma passagem notável nas Bacchae (274ss) mostra quão facilmente a mente grega podia escorregar da idéia de uma substância enquanto incorporando um deus vivo à do deus como seu inventor ou descobridor. Tentando acalmar a ímpia hostilidade de Penteu para com Dionísio, Tirésias lhe diz que

 

duas coisas são primárias na vida humana: primeiro, a deusa Demeter — ela é Terra, mas chama-a com qualquer nome que queiras [e com certeza Ge, a terra, era também grande deusa por aquele nome]. Ela dá aos homens todo alimento que é de natureza sólida. Para balancear isto veio o filho de Sêmele, que descobriu a substância fluida da uva... Ele, sendo deus, é derramado para os deuses.

 

Aí Dionísio, o deus do vinho, é descrito ao mesmo tempo, sem nenhuma percepção de incongruência, como o descobridor do vinho e o próprio vinho. Está, pois aí, com toda probabilidade, a chave para a doutrina de Pródico. No piedoso profeta Tirésias ele veria um exemplo perfeito (e, uma vez que é certo que Eurípedes conheceu seu ensino, também viu um exemplo) da mentalidade de que surgiu a religião: perguntar se os homens imaginaram seu alimento, bebida ou outras coisas que dão e sustentam a vida como deuses, ou alternativamente os seres que os descobriram e forneceram, era fazer distinção psicologicamente irreal. Dionísio era ao mesmo tempo vinho e doador do vinho, Hefesto fogo e doador do fogo.

Foi Pródico ateísta? Crer que vinho e pão são deuses com certeza não é ateísta, é precisamente a crença que Pródico disse que “os antigos” tinham e da qual surgiu a religião. Para o próprio Pródico eles eram apenas vinho e pão.

A afirmação de que a própria concepção de deuses resultou da prática da agricultura não soa como se viesse de crente neles.

Pródico pode ser justamente saudado como um dos mais antigos antropólogos, com uma teoria sobre a origem meramente humana da crença em deuses que não teria envergonhado o séc. XIX.

Pródico, como era de se esperar de alguém que era tanto sofista como filósofo natural [Osório diz: isso também era Sócrates, acredito, por Aristófanes] e que escreveu sobre cosmogonia, evidentemente defendia uma teoria do desenvolvimento humano como “progresso” e não “degeneração” [Osório diz: isso é darwinismo antes de Darwin?!]... e, como Protágoras, ele pensou na religião, junto com condições sedentárias, construção de cidades, o governo da lei e o avanço do conhecimento, como um dos frutos da civilização e essencial à sua preservação. Para defender estas idéias não é necessário crer na existência de deuses como objetos de adoração independentemente da concepção dos homens sobre eles [ … Frederic Harrison, que “considerou todas as religiões falsas, mas insistiu na necessidade humana da adoração”.]. [Osório diz: bom!]

Crítias [Osório diz: tio de Platão!]... era rico aristocrata que teria desprezado com altivez ser sofista profissional, mas partilhava da perspectiva intelectual que veio a ser conhecida como sofística. Em sua peça Sísifo descreveu a crença religiosa como deliberada impostura imposta pelo governo para assegurar uma sanção última e universal para o bom comportamento de seus súditos. [Osório diz: sofista por perspectiva intelectual] [Osório diz: religião como objetivo de manter o bom comportamento].

 

Portanto, se a lei impedia os homens de ações públicas de violência e eles continuavam a cometê-las em segredo, creio que homem de mente muito sagaz e sutil inventou para os homens o temor dos deuses, a fim de que houvesse algo para aterrorizar os maus ainda que agissem, falassem ou pensassem em segredo. Para isso introduziu a concepção de divindade. Existe, dizia ele, um espírito que goza de vida sem fim, que ouve e vê com sua mente, excessivamente sábio e onividente, portador de natureza divina. Ouvirá tudo o que se fala entre os homens e verá tudo o que se faz. Se estiveres tramando em silêncio o mal, este não ficará escondido aos deuses, pois são muito sagazes. Com esta estória apresentou o mais sedutor dos ensinamentos, dissimulando a verdade com palavras mentirosas. Por moradas, ele lhes deu o lugar cuja menção mais vigorosamente golpeia os corações dos homens, donde sabia ele, medos e temores caem sobre os mortais e vem ajuda para suas vidas ignóbeis, donde percebia os relâmpagos e os estrondos temerosos dos trovões, e a face e forma estrelada do céu bem trabalhada pela arte do tempo, donde também o meteoro incandescente faz o seu percurso e a chuva líquida desce sobre a terra. Com tais temores ele cercou a humanidade, e, dando, assim, por sua estória, à divindade uma bela casa em lugar apropriado, eliminou a falta de lei por ordenações... Assim sobretudo, penso eu, alguém persuadiu os homens a acreditar que existe a raça dos deuses. [Osório diz: para as ações humanas visíveis por testemunhas, a lei; para as não vistas, deus! Origem divina da lei. / Quando não tem lei, deus! Criação da religião]

 

É a primeira ocorrência na história da teoria da religião como invenção política para assegurar bom comportamento, que foi elaboradamente desenvolvida por Políbio em Roma e reviveu na Alemanha do século XVIII [ … Contudo não é o mesmo que as teorias da exploração por políticos de crenças religiosas já existentes, correntes no Renascimento e depois, e que culminaram no marxismo,...]. Não há nenhuma outra menção dela nesta época, e, sendo assim, pode muito bem ter sido original como era ousada [ ...embora dizer: “o medo conduz ao culto dos deuses” não seja o mesmo que dizer que o culto baseado no medo leve ao bom comportamento e seja inventado para este objetivo. E expressar descrença no mais incrível dos mitos (...) não era certamente ateísmo. Não há absolutamente nenhuma prova para a alegação de Nestle (V MzuL, 416) de que o ateísmo de Diágoras baseava-se na mesma teoria que o de Crítias, e era na verdade sua fonte.], e engenhosa na maneira como se subsume sob a teoria mais geral do ensino de Demócrito e Pródico de que a crença nos deuses foi produto do medo ou gratidão causados por certos fenômenos naturais. A teoria reverte ao mesmo tempo o volume crescente de críticas que atacavam os deuses por motivos morais, insistindo em que, se existissem ou merecessem o nome de deuses, deveriam ser os guardiões do código moral aprovado. Foi a exigência de sanção sobrenatural para o comportamento moral, diz Crítias, que deu antes de tudo existência aos deuses. [Osório diz: muito bom! “A teoria da religião como invenção política para assegurar bom comportamento”]

O segundo tipo de erro de Platão, segundo o qual os deuses existem, mas não se interessam pelos homens. [Osório diz: acho que há um erro quanto a Platão, ver!!!!!].

O orador Lísias falou dele junto com outros três formando uma espécie de "clube do fogo do inferno" ou bando de satanistas ("kakodemonistas", como se chamavam a si mesmos), que escolhiam de propósito dias agourentos e proibidos para cear entre si e caçoar dos deuses e das leis de Atenas. [Osório diz: eu passo debaixo de escadas quando o pintor não está lá em cima! Acho que tira o azar ou a superstição de que se tirou o azar ao não passa sob ela].

Hermas. [Para os kakodaimonistai v. Lísias ap. Ath. 12.551e. A profanação da estátua é mencionada por Aristófanes, nas Rãs (366, cf. Eccl. 330), onde o comentador diz que Cinésias foi o criminoso. Para ulterior informação acerca deles, Maas em RE, XI, 479-81, Dodds, Gks. and Irrat. 188s, Woodbury em Phoenix, 1965, 210. Woodbury (p. 199) faz a observação interessante que tais crimes de sacrilégio e blasfêmia "pressupõem a autoridade de alguma coisa santa. Uma missa negra implica a autoridade e a validade do sacramento”. Pode ser assim. Satanistas medievais, sem dúvida, criam que faziam aliança com um dos dois poderes opostos e igualmente reais. Mas também é possível cometer crimes que podiam trazer a ira dos deuses, se existissem, simplesmente para demonstrar que não existiam. É mais provável, na documentação, que esta seja a explicação dos atos de Cinésias e do seu clube de refeição, e dos perpetradores de outros ultrajes contra a religião em Atenas.]

Tudo isso pode ter pouca conexão direta com a história da filosofia, mas, junto com o racionalismo dos filósofos naturais e dos sofistas contribuiu para a atmosfera em que cresceu Platão e que o levou a construir em oposição uma teologia filosófica baseada numa teoria da origem e do governo de todo o universo e do lugar do homem nele.

Platão, considerado comumente como o mais fanático e implacável dos teístas, (…) Admite que o ateísmo não leva necessariamente a conduta imoral, e reconhece um tipo um tanto semelhante aos dos humanistas éticos de nossos dias. A passagem atinente é Leis 908b-e:

 

Embora um homem possa ser inteiramente descrente na existência dos deuses, se ele tiver caráter reto detestará os malfeitores, e, por repugnância à maldade, não terá nenhum desejo de cometer atos errados, mas evitará o que é injusto e será atraído ao bem. Mas há outros que, em acréscimo a sua crença de que não há deuses absolutamente, caracterizam-se por uma falta de autodomínio nos prazeres e dores, combinada com vigorosa memória e inteligência penetrante [Osório diz: Platão e os ateus! / Penso que exemplo disso é o Platão siracusano. / Ademais, a recíproca é verdadeira: há os crentes que praticam as piores maldades. É via de mão dupla!]. Ambos os tipos têm em comum a doença do ateísmo, mas com respeito à injustiça para com outros um faz muito menos mal do que mal que o outro. Um terá, sem dúvida, uma maneira bastante livre de falar sobre deuses, sacrifícios e juramentos, e por ridicularizar outros talvez possam fazer alguns convertidos se não for retido pela punição; o outro, porém, apóia as mesmas opiniões, mas com a reputação de ser homem dotado, cheio de manhas e perfídias – esta é a espécie que produz teus adivinhos e peritos em toda sorte de charlatanismo. Às vezes também produz ditadores, demagogos, generais, inventores de mistérios privados e os ardis dos que são chamados sofistas [Osório diz: vejo o próprio Platão em Siracusa e no seu mundo das ideias]. Existem assim muitos de ateísta mas dois que merecem a atenção do legislador. Os pecados dos hipócritas merecem mais de uma morte ou até duas, mas os outros exigem advertência e confinamento.

 

No sentir de Platão, o primeiro e maior crime contra a religião não é o ateísmo aberto, mas o estímulo à superstição [Osório diz: que o que ele, Platão, faz! Contradição sempre! Penso que é ou o contrário (a religião que causa a superstição) ou via de mão dupla!]. Também antes, na República (...) ele censurara os pseudo-sacerdotes e profetas que espoliam os ricos e ingênuos com espúrios livros órficos que prometem imunidade de punição para todos os que pagam por seus ritos e encantações. Uma personagem em Eurípides chama a profecia de “coisa sem valor, e carregada de mentiras”. As chamas do sacrifício, pensa ele, e os gritos de pássaros nada têm a nos ensinar. Bom senso e bom conselho são os melhores profetas. Mas isso não é ataque dos deuses, pois ele acrescenta: “Sacrifiquemos aos deuses e oremos pelo bem, mas abandonemos a profecia”. Também Platão não condena toda profecia igualmente. Ele respeitava inteiramente o oráculo de Delfos, o porta-voz do próprio Apolo [Osório diz: mais uma contradição de Platão: só que ele apoiava era bom! Ele se achava o dono da verdade ou seus seguidores o acham tal dono!], mas a arte mântica tem suas formas elevadas e baixas, e havia toda uma multidão de adivinhos mercenários, pretendendo dizer a vontade dos deuses pela aparência dos sacrifícios e pelo vôo dos pássaros, ou coletâneas escritas de oráculos forjados (tais como são ridicularizados nos Pássaros de Aristófanes [Osório diz: aqui Aristófanes não errou!!!! É conveniente com a tese esposada) que levavam ao desprezo da religião. Platão oferece ainda ulterior documentação da necessidade de distinguir tentativas de purificar a religião de ataques à religião mesma.

 

c) Monoteísmo: Antístenes.

 

Detectar e isolar quaisquer expressões de puro monoteísmo em escritos gregos é tão difícil como definir ateísmo não-adulterado [Osório diz: “ateísmo não-adulterado”! Pois é! ]. A questão de um deus ou muitos deuses, tão central na tradição judaico-cristã, dificilmente preocupou os gregos. Manifesta-se isto nas obras de teólogos tão filósofos como Platão.

Sobre um ponto, porém, concordam os filósofos: "o divino" mesmo não é antropomórfico, quer seja o Logos-fogo de Heráclito, o "deus uno" de Xenófanes fr. 23 (vol. I, 374), que não é "de maneira nenhuma como os mortais, quer no corpo, quer na mente", o deus de Empédocles que é pensamento puro e expressamente exclui qualquer parte corpórea (fr. 134, vol. II, 256), ou a Mente original criadora do cosmo de Anaxágoras. Alguns destes pensadores poderiam ser classificados, se quiséssemos, como monoteístas ou panteístas, sobretudo Heráclito e Xenófanes com seus ataques mordazes a crenças e cultos populares. Não se registra nenhum ataque desta espécie de Anaxágoras, mas ele expressou sua doutrina de maneira extremamente franca e sua perseguição por impiedade não surpreende. Empédocles, de outro lado, encontrou espaço para grande número e variedade de deuses em seu amálgama singular de ciência física e religião (vol. II, 257ss). Em suma, é melhor evitar estes rótulos, que, constituídos de raízes gregas, eram alheios aos próprios gregos.

Todavia no período dos sofistas e de Sócrates, que estamos considerando agora, parece haver uma expressão inequívoca de visão monoteística, expressa nos termos da corrente antítese entre nomos e physis. É visão do discípulo de Sócrates, Antístenes, cuja teoria da relação da linguagem com a realidade já analisamos, e, como de costume, possuímos poucos fragmentos de testemunho indireto. Diz-se que provêm de uma obra sobre a Natureza e afirmam que “segundo o nomos há muitos deuses, mas na natureza, ou na realidade, há um só” (…) Assim Filodemo, o Epicureu, relata, e o Epicureu de Cícero (todas as outras nossas versões são em latim) observa que “Antístenes, no livro chamado Physicus, ao dizer que há muitos deuses entre os povos, mas somente um na natureza (naturaliter unum), abole o poder dos deuses”. O cristão Lactâncio acrescenta que o deus único “natural” é o supremo artífice do universo, e afirma que só ele existe embora nações e cidades tenham seus próprios deuses populares. Escritores cristãos também citam Antístenes dizendo que o deus não é semelhante a nenhuma outra coisa (ou pessoa: o dativo podia ser masculino ou neutro) e que por isso ninguém pode saber dele a partir de imagem [Osório diz: será que por isso o Islã proíbe imagens?]. Se Lactâncio estiver certo quando o único deus era o criador do universo (que, na ausência de testemunhas melhor qualificadas, não se pode ter como certo), este será um exemplo notavelmente antigo na Grécia de um puro monoteísmo [Osório diz: monoteísmo na Grécia]. O contraste entre os muitos deuses do nomos ou da crença popular e o único deus real é claro e enfático. Sem esta adição, porém, a ênfase na unidade de Deus e a impossibilidade de representá-lo por imagem visível lembra Xenófanes, e é compatível com um credo panteístico mais do que com um monoteístico [Caizzi, o mais recente estudioso que faz estudo especializado sobre Antístenes, descreve-a cautelosamente como “uma fede monoteística, forse in germe panteistica”.]. [Osório diz: essa descrição seria e é, a meu ver, uma imagem que se tem do Islã na atualidade]

Partilhou com Protágoras, Demócrito e outros da crença na evolução progressiva da humanidade por seus próprios esforços, que pensou que as leis não eram nem inerentes à natureza humana desde o início nem eram dons dos deuses, e a religião era mera invenção visando prevenir comportamento ilegal. A religião era para o súdito, para assegurar a obediência, e não para o governante ilustrado. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 218, 221-231).

 

13

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

53.2 – Religião (existe por) – phýsis ou nomos?

 

Nos diz Guthrie:

 

Debates sobre religião voltaram-se para a questão se os deuses existiam por physis (natureza) — na realidade — ou somente por nomos (lei – criação humana). (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 59).

 

1

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

53 – Deuses e religião vistos pela Sofística e 53.1 – Religião tradicional – crítica.

 

Nos diz Guthrie:

 

Os filósofos pré-socráticos, quer admitissem, quer não a crença numa força ou em forças divinas, todos propagavam igualmente conceitos de religião que se afastavam muito do antropomorfismo [Osório diz: dá forma humana aos deuses] dos cultos populares ou estatais baseados no panteão [Osório diz: templo consagrado aos deuses por gregos e romanos] homérico. Xenófanes os atacava publicamente substituindo-os por um monoteísmo [Osório diz: monoteísmo entre os gregos] ou politeísmo não-antropomórfico. Outros os abandonavam tacitamente em favor, primeiro, de uma matéria sempre viva do mundo, descrita vagamente como governando ou dirigindo os movimentos do cosmo e de tudo o que ele contém, e, depois, em Anaxágoras, de uma Mente separada da matéria do universo sendo causa da ordem racional que ele manifesta.

Vimos Heráclito condenando oculto fálico [Osório diz: culto do pênis, que será retomado por Luciano de Samósata no século II da era atual] e outros cultos por causa de sua inconveniência, e Demócrito (sem dúvida sob a influência de teorias evolutivas já existentes [Osório diz: onde a prova? Suposição do autor, Guthrie]) afirmando que foi somente a natureza alarmante do trovão, relâmpago e fenômenos semelhantes que levou os homens a pensarem que eram causados pelos deuses. À medida que cresce a “ilustração” [Osório diz: a Sofística, ele, Guthrie, quer dizer!], manifesta-se sob dois aspectos principais (quer na Grécia antiga quer na Europa desde o Renascimento): em primeiro lugar a determinação de crer só no que é racional e a tendência a identificar a razão com o positivismo e o progresso da ciência natural [Osório diz: foi isso que Platão, com sua teologia, pôs a perder, já que voltou à superstição: crença em divindades!], e, em segundo lugar, o genuíno interesse pela moralidade. A moralidade identifica-se com a melhoria da vida humana e a eliminação da crueldade, injustiça e todas as formas de exploração dos seres humanos por seus companheiros, e baseia-se em padrões meramente humanístico e relativos, pois sustenta-se que padrões absolutos pretendendo autoridade sobrenatural não só levaram no passado [Osório diz: bem como no presente em que nasceu a Sofística, século V antes da era atual, e até depois, século IV, com os esctravocratas Platão e Aristóteles], mas também devem levar inevitavelmente, à crueldade, intolerância e outros males. Os deuses gregos eram muito vulneráveis nestes dois aspectos [Osório diz: os deuses porra nenhuma, mas os homens que os criaram e os usavam], e logo que a piedade convencional começou a se entregar a atitude mais pensativa – quando o nomos em todos os seus aspectos não mais se tomava como concedido, mas antes era contraposto ao que era natural e universal [A atitude convencional é exemplificada pela réplica de Sócrates em Xenofonte (Mem. 4.3.16) a Eutidemo, que reconhece a providência divina mas está preocupado com o pensamento de que não se pode dar nenhum retorno da parte dos homens aos deuses. Os deuses mesmos, diz ele, forneceram a resposta, pois sempre que o oráculo de Delfos se aproxima deste problema, replica: "Segue o nomos de tua cidade", o que significa propiciar aos deuses com sacrifícios na medida que está em teu poder [Osório diz: corrompe com agrado o teu deus?]. Tal resposta dificilmente satisfaria aos espíritos mais exigentes e interrogativos do séc. V. [Osório diz: no caso Guthrie dá “A César o que é de César”! Acho que chegou a passar mal com isso!]] [Osório diz: deus, que nunca foi, deixa de ser o legislador!] – o catolicismo [Osório diz: que ridículo Guthrie! Ainda mais por negar, depois, qualquer valos aos Sofistas, preferindo abraçar Platão e Aristóteles, os escravocratas!] e a desaprovação começaram a se fazer com crescente intensidade[Osório diz: mentira, pois Platão e Aristóteles são do século seguinte, o IV e, mesmo assim, continuam aprovando tudo isso!].

[Osório diz: alguns dos temas pelos quais, ou contra os quais, investiram os sofistas contra o meio social em que viveram: eliminação da crueldade e da injustiça e de todas as formas de exploração dos seres humanos por seus companheiros. É ou não um programa digno de louvor?].

O ataque à religião estava, com efeito, estreitamente ligado com a antítese nomos-physis. Platão (Leis 889e) queixa-se dos que afirmam que “os deuses são invenções humanas, não existem na natureza, mas apenas por costume e lei, que de mais a mais, diferem de lugar para lugar segundo o acordo feito por cada grupo quando estabeleceu suas leis”. Quando escreveu Platão, tais controvérsias não eram nada de novo [Osório diz: sim, ele que é do século IV, as apanha, no mínimo, no século V! De onde mais, Guthrie?]. O Sócrates de Aristófanes rejeitava os deuses como moeda fora da moda (nomisma, p. 58 acima), e, em Eurípides, Hécuba chama o nomos de superior aos deuses, porque é pelo nomos que nós cremos neles bem como em padrões de certo e errado. Há provas de sobra de que a influência da religião sobre as mentes dos homens enfraquecia-se no fermento intelectual da idade de Péricles, e também que o oficialismo ateniense estava nervoso e era sensível a isso. O culto dos deuses era parte integral da vida do Estado e uma poderosa força coercitiva [Osório diz: força coercitiva: manter os celerados amedrontados pelos castigos!]. Pode-se afirmar que tudo o que se fazia necessário era a conformidade com as práticas do culto, e que o pensamento era livre; mas deve ter sido tão óbvio para um ateniense tradicionalista como para o Cotta de Cícero que os que negam inteiramente a existência dos deuses “non modo superstitionem tollunt... sed etiam religionem, que deorum cultu pio continetur[Tradução: ] ... Daí os julgamentos de impiedade e decreto de Diopeithes contra o ateísmo e a especulação cósmica.

Eles nos toleravam [diz Plutarco (Nícias 23)] os filósofos naturais e os fitadores de estrelas [meteoroleschas, lit. "palradores sobre coisas do firmamento". A palavra ocorre em Platão (Rep. 489c), ligada com o adjetivo acherestous, para ilustrar o tipo de injúria que era dirigido aos filósofos. [Osório diz: aos filósofos! Pré-Socráticos e Sócrates! Pula-se sobre os Sofistas, que não eram filósofos, como tantas vezes diz Platão!]], como eles os chamavam, dissolvendo a divindade em causas irracionais, forças cegas e propriedades necessárias. Protágoras foi (p. 212) banido, Anaxágoras foi posto em embaraço e salvo com dificuldade por Péricles, e Sócrates, embora de fato não tivesse interesse por estes assuntos [Osório diz: como não se ele os conhecia e os discutia?], perdeu a vida pela devoção à filosofia.

E em sua vida de Péricles (32):

 

Por esta época [sc, pouco antes da Guerra do Peloponeso] Aspásia foi perseguida por impiedade... E Diopeithes introduziu uma denúncia para a cassação dos que negavam os deuses e ensinavam sobre fenômenos celestes, suspeitando de Péricles por causa de Anaxágoras [Não se conhece muito do que se designa com o nome próprio de Diopeithes. O nome é mencionado várias vezes em Aristófanes (Cavaleiros 1085, Vespas 380 Pássaros 988) mas tudo o que emerge é que o seu portador era adivinho. Fragmentos de outros poetas cômicos o pintam como fanático [Osório diz: como, de resto, são os religiosos!] e como tocador de tambor nos ritos coribânticos (Ameipsias 10 K., Teléclides 6 K e Frínico 9 K.; v. Lobeck, Aglaoph. 981). A perseguição de "Anaxágoras, o Sofista" é mencionada (mas não Diopeithes ou seu psephisma) por Diodoro (12.39.2). Para a conexão dos sofistas com os filósofos naturais [Osório diz: eis o que disse na nota anterior] cf. pp. 47ss, acima, e para a suposta conexão entre "contemplação do céu" e ensino sofista imoral Nuvens 1283 (pp. 109s).]. [Osório diz: o mesmo fará o catolicismo milênio depois! Galilleu].

 

A palavra sophistes aplicava-se naturalmente tanto a Anaxágoras como a Protágoras ou Hípias. [Osório diz: quando se aplica a Anaxágoras ela não é pejorativa, já quanto aos Sofistas... Pula-se sobre os Sofistas, que não eram filósofos, como tantas vezes diz Platão! Vai dos filósofos naturais a Sócrates, saltando, com vara, sobre os sofistas]

A crítica aos deuses por motivos morais veio cedo. Não era necessária nenhuma especulação científica ou subtileza lógica para escandalizar-se pela castração que Zeus aplicou em seu pai [Osório diz: É justo filho bater no pai? Zeus, que era deus, fez pior! Mas também cabe a pregunta: se o pai quer ser respeitado pelo filho, não deve também respeitá-lo?] e por seus muitos amores, pelos roubos e fraudes de Hermes, ou pela ciumeira de Hera e pelo caráter malicioso e vingativo dos imortais em geral. Mitos que apresentavam deuses como ladrões, adúlteros, sedutores e glutões já tinham sido rejeitados por Xenofonte e Píndaro. Na era da ilustração encontramos Eurípides por toda parte dando rédeas a esta crítica. Pode tomar diferentes formas – censura aos deuses por seu comportamento, declarações de que existem os deuses, mas não se comportaram nem podem se comportar desta maneira, ou afirmações de que, se assim são os deuses em que nos ensinam a crer, ou não existem – é tudo mentira – ou não se importam com os negócios humanos e não merecem nem precisam de nossa adoração. Como dramaturgo, Eurípides podia refletir todos os pontos de vista através de seus enredos e personagens [Osório diz: o mesmo vale para Platão]. No Íon, vemos a desilusão de um jovem, piedoso ministrante no templo, que fica sabendo que o deus a quem serve caiu na humilhação de seduzir uma mulher mortal. O Héracles contém veemente negação de que os deuses pudessem se comportar iniquamente (1341ss): [Osório diz: Por que o nome de Héracles era Héracles, já que tão próximo ao de Hera, sua madrasta e perseguidora?]

Não creio que os deuses tenham prazer em intercurso ilegal, nem pensei jamais nem posso ser persuadido de que oprimem uns aos outros com grilhões, nem que um seja senhor sobre o outro. Deus, se for verdadeiramente deus, não precisa de nada. São contos ignóbeis de bardos [Todavia era tão forte a forçada tradição que todo o enredo do Héracles depende da raiva de ciúme de Hera, de cuja crueldade inenarrável o próprio herói, que fala as palavras, foi vítima. Alguns pensaram que o paradoxo era deliberado, para manifestar o absurdo inerente da situação, mas Lesky (provavelmente com razão) vê-o como produto da tensão entre o assunto, imposto pela tradição e mitologia, e o intelecto do dramaturgo. V. Lesky, HGL, 382.]. [Osório diz: Essa prática de violência é comum no Velho testamento. / O interessante é a desnecessidade sentida pelos deuses!]

Descrença total nos deuses, baseada na prosperidade dos maus e nos sofrimentos do justo, ganha voz em explosão apaixonada no Belerofonte. Não há deuses no céu. É insensatez crer em tais tagarelices. Basta que olhes ao teu redor. Tiranos matam, fraudam e saqueiam, e são mais felizes do que o piedoso e pacífico. Pequenos Estados tementes a deus são esmagados por força militar de Estados maiores e mais iníquos. Mais na tendência da passagem de Héracles está a linha, novamente de Belrofonte: “Se deuses agem ignobilmente, não há deuses”. Eurípides também enfatiza que se podia invocar o exemplo dos deuses para desculpar as falhas humanas, como, por exemplo, a velha ama de Fedra lhe desculpa a paixão ilícita lembrando-lhe, com exemplos de Zeus e Eos, que Afrodite é poder forte demais para os próprios deuses resistirem, e de novo, quando Helena se desculpa de sua própria conduta (Tro. 948). A mesma observação é feita com tendência cômica por Aristófanes, quando o Argumento Injusto afirma que, sem sua habilidade retórica, um pecador ficará perdido, mas com ele confundirá os seus acusadores (Nuvens 1079):

 

Supõe que és pego em adultério, tu argumentarás que não fizeste nada de errado, apontando para Zeus que nunca pôde resistir ao amor e a mulheres. Como, dirás, podes tu, um mortal, mostrar mais força do que um deus? [Osório diz: a relação dos sofistas com deus! Que religioso suportaria essa gente?].

 

Em contraste com o tradicionalismo rústico da ama, o moralista poderia afirmar que um deus podia ser mero produto de transferência psicológica: os homens dariam o nome a suas próprias paixões más [Osório diz: quem é o deus? A ama ou quem, podendo tudo, não impede a transferência psicológica?]. "Meu filho era belo", diz Hécuba a Helena (Eur. Tro. 987), "e à vista dele tua mente se tornou Cipre. Todos os atos insensatos são chamados de Afrodite pela humanidade”. 7 Não se deve pensar, e não se pensava na época [Decharme (Critique, p. vii) apontou uma razão pela qual nenhuma suspeita de impiedade se ligava a esta purificação. … O fundamentalismo era fenômeno desconhecido aos gregos, porque não havia nada em sua literatura religiosa que correspondesse à “palavra de Deus”], que a crítica que tentava absolver os deuses do comportamento aético ligado a seus nomes nos mitos, era ataque à religião como tal, ou mesmo à religião estatal estabelecida. Um de seus mais vigorosos expoentes foi Platão, que na República acusou fortemente Homero e Hesíodo de mentira, todavia foi implacável opositor da descrença nos deuses e em seu cuidado providencial pela humanidade, e defensor dos cultos oficiais. [Osório diz: e aí Platão pôs todo o seu pensamento a perder!]

O pronunciamento de Antífon [sobre a divindade]: "Por esta razão ele não precisa de nada, nem espera alguma coisa de alguém, mas é infinito e auto-suficiente" [(a) Fr. 10. Com oudenos deitai de Antífon, cf. deitai gar ho theos... oudenos em Eurípedes. (b) Há tanta incerteza sobre a data dos escritos de Antífon (v. p. 265, n. 48, abaixo) que é impossível por razões externas dizer se Eurípedes copia ou não de Aletheia. Alguns usaram "ecos" de Antífon em Eurípedes como prova real de sua data, mas este é um critério perigoso. Afirmações como "Deus não carece de nada" podiam ser comuns a mais de um escritor do tempo, e nem Eurípedes nem Antífon precisam ser os primeiros a dizê-lo. [Osório diz: existem registros de outros dizendo isso? Se não tiver, o pioneirismo é de Antifonte sim!]]. [Osório diz: Deus é que é rico. Deus é que deve ajudar, não ser ajudado pelos pobres, por exemplo e diversamente do ocorre no mundo!]

A idéia que Platão deplorava, que “existem deuses, mas eles não se incomodam com os negócios humanos” (Leis 885b, 888c), era corrente no séc V. Xenofonte (Mem. 1.4.10) apresenta um homem chamado Aristodemo protestando a Sócrates, quando acusado de recusar dar aos deuses seu costumeiro galardão de sacrifício e prece, que, longe de desprezar o divino, ele pensava que o divino era grande demais para precisar de seu serviço, e, de mais a mais, que os deuses não podiam ter nenhuma atenção para com a humanidade. Diz-se que Antífon negou a providência na mesma obra Sobre a verdade em que declarou a auto-suficiência de Deus e falou da conveniência de se conformar com a moralidade convencional somente quando sob observação; e Trasímaco viu na prevalência da maldade uma prova de que os deuses são cegos ao que se passa entre os homens. [Osório diz: que religião não desejaria apagar tais pensamentos?]

O racionalismo dos filósofos naturais não era totalmente ateísta (como usaríamos a palavra), mas não obstante destrutivo do panteão tradicional e oficial. Na tradição jônica, a divindade, por longo tempo, foi identificada com a physis viva do mundo, até que Anaxágoras a separou como Mente remota que começou o processo cósmico no início. Mais importante do que a existência desta Mente era, para seus contemporâneos, a redução do Hélios onividente, que atravessava o firmamento todo dia em sua carruagem de luz e era a terrível testemunha dos juramentos mais sagrados dos homens, ao estado de uma massa de pedra incandescente informe e sem vida. [Osório diz: a desmitificação da divindade. Hélio, o sol, deixou de ser um deus (mente remoa que começou o processo cósmico) para transformar-se naquilo que é: uma pedra!]

Eurípedes (…) é como espelho de seu tempo que ele (para nossos presentes objetivos) é mais bem considerado. [Osório diz: por isso, Aristófanes também deve sê-lo!]

[Osório diz: Platão tentou, com seu Sócrates, fazer o argumento fraco (o dele) transformar-se em forte? Sim! Quando ele não tinha mais racionalidade para apelar, ele apelou para o invisível, deus!]

Quem não lança longe de si os embustes dos fitadores de estrelas, cujas línguas nocivas, vazias de bom senso, balbuciam a esmo assuntos desconhecidos?” Pesquisa desorientada dos segredos da natureza levou alguns ao ateísmo, mas para o homem sábio o kosmos intertemporal, que ela revela só pode levar à conclusão que há deus, ordenador inteligente, em ou atrás dela. [Osório diz: isso é crença, não explicação. Não é racionalidade].

Astrônomos (diz Platão) receberam o nome de ateus porque alguns dos primeiros pensavam que os corpos celestes eram apenas massas mortas girando por necessidade. Mas mesmo entre estes as mentes mais ousadas suspeitaram que seus movimentos perfeitamente calculados não podiam ser realizados sem inteligência, e decidiram que, embora as próprias estrelas pudessem ser torrões e pedras sem vida, havia uma mente atrás delas dirigindo seus movimentos em toda a ordem cósmica. [Osório diz: mas qual mende? Onde está? Suposição?]

 

Religião: teorias racionalistas: (a) agnosticismo e (b) ateísmo.

 

(a) Agnosticismo: Protágoras.

 

Segundo Diógenes Laércio (9.24), o filósofo eleata Melisso disse que era errado fazer qualquer pronunciamento sobre os deuses porque era impossível o seu conhecimento. Mas o caso clássico de agnóstico neste século é o seu contemporâneo Protágoras, que ficou famoso por ter escrito:

 

Quanto aos deuses, sou incapaz de descobrir se existem ou não, ou que forma têm; pois há muitos empecilhos para o conhecimento, a obscuridade do assunto e a brevidade da vida humana. [Osório diz: o cara confessa uma fraqueza sincera (o desconhecimento) e é condenado? Deveria ele mentir, como faz Platão? Aliás, mentir sobre deus é a melhor coisa, pois é impossível provar a mentira na forma que se requer!]

 

A forma da afirmação é de uma opinião pessoal (“Sou incapaz...") e contrasta significativamente com uma expressão como a de Xenófanes (fr. 34) de que nenhum homem viu, e nenhum homem também nunca saberá a verdade sobre os deuses [Osório diz: Protágoras não fecha portas! Não diz que o tema deva ser encerrado. Não o dá por findo para o homem, apenas para ele próprio, Protágoras]. Alguns acreditavam nos deuses e outros não, e, sendo assim, de acordo com o princípio "o homem é a medida", os deuses existiam para alguns e não para outros; mas para o próprio Protágoras a suspensão de juízo era a única maneira possível [Isto se acomoda satisfatoriamente coma alegação de T. Gomperz (GT, 1, 457) de que se Protágoras cresse, como Platão disse que cria, que "toda a verdade de um homem é a verdade que lhe parece", ele não poderia ter dito o que disse sobre os deuses. [Osório diz: claro que poderia. Uma coisa não exclui outra! Para ele, Protágoras era assim. Isso não impedia que para outro fosse diferente! Mas, daí seu gênio: um poderia convencer o outro de sua tese! Ess Gomperz, tanto pai quanto filho são dois fanáticos!]]. [Osório diz: isso mesmo! Enfim o autor, Guthrie, reconhece o que deveria ser do conhecimento de todos! Protágoras jamais proibiu, até porque nem poderia, a crença nos deuses, mas a entregou a cada qual!]

 

Protágoras (…) defendeu o culto religioso segundo os nomoi antepassados.

 

b) Ateísmo: Diágoras, Pródico, Crítias; os dois tipos de ateísmo de Platão.

 

"Como credo dogmático, consistindo na negação de toda espécie de poder sobrenatural, o ateísmo não foi com frequência sustentado seriamente em qualquer período do pensamento civilizado". (p. 219) [Osório diz: e onde o foi no incivilizado? / Seriamente para quem?]

Que tais ateístas ("que não criam inteiramente na existência dos deuses", 908b) eram comuns pela época de Platão é certo por sua menção deles nas Leis, onde os distingue cuidadosamente dos que afirmam (a) que existem os deuses, mas não têm nenhum interesse pela conduta humana, (b) que eles podem ser comprados por oferendas. [Osório diz: as oferendas!]

Diágoras (...) A única razão alegada para ele, e que está nas fontes tardias, é moral: diz-se que começou como poeta ditirâmbico temente aos deuses, e que depois se convenceu da não-existência dos deuses pelo espetáculo da injustiça com bom êxito e não-punida, neste caso uma ofensa específica feita a ele próprio, embora sua natureza seja narrada de várias formas. Além de sua descrença, o único outro fato registrado sobre ele por seus contemporâneos é que foi condenado por acusação de impiedade pelos atenienses, e oferecido um prêmio por sua cabeça em sua ausência da cidade.

[Osório diz: piedade: cumprimento dos deveres para com os pais, a pátria, os deuses. 1. Prática das leis religiosas. = DEVOÇÃO. 2. Vontade de diminuir ou se solidarizar com o sofrimento alheio. = COMPAIXÃO, DÓ, LÁSTIMA, MISERICÓRDIA].

Jacoby está certo quando diz que todas as testemunhas igualmente lhe atribuem "um repúdio puro e simples de todo o conceito de deuses, um ateísmo radical, extremo e sem compromisso". [Osório diz: e deveria ter compromisso com o que? Deveria ser um ateu temente a deus?]

Pródico (…) diversamente de Demócrito, viu a origem da crença religiosa na gratidão, e não no medo [Osório diz: origem da crença religiosa]. Temos as referências seguintes:

 

(a) “Perseu evidencia-se destrutivo, ou ignorante, do divino ao declarar em seu livro sobre os deuses que não era improvável o que escreveu Pródico, ou seja, que as coisas que nos alimentam e beneficiam eram as primeiras a ser consideradas deuses e honradas como tais, e, depois delas, os descobridores de alimentos e abrigo e as outras artes práticas tais como Demétrio, Dionísio e os...” [Osório diz: crítica estúpida! / Guthrie, na outra obra, explica isso e a idiotice não é tão idiota assim!]

(b) “Pródico diz que foram aceitos como deuses os que em suas viagens descobriram novas plantações, contribuindo assim para o bem-estar humano”.

(c) Cícero, N. D. 1.37.118: "Que espécie de religião nos deixou Pródico de Ceos, que disse que coisas úteis à vida humana foram contadas como deuses?"

(d) Ib. 15.38: "Perseu diz que os que foram considerados deuses foram os que descobriram o que era especialmente útil para a vida civilizada, e que as coisas úteis e salutares foram elas mesmas chamadas com os nomes de deuses".

(e) Sext. Math. 9.18: Pródico de Ceos diz: "Os antigos consideraram como deuses o sol e a lua, os rios, as fontes, e em geral todas as coisas que ajudam nossa vida, por causa do auxílio que elas dão, da mesma forma como os egípcios deificam o Nilo". Ele acrescenta que por esta razão o pão foi chamado Demétrio, o vinho Dionísio, a água Posêidon, o fogo Hefesto, e assim por diante com tudo o que prestava serviço. (Repete-se isso com palavras um pouco diferentes no capítulo 52).

(f) Ib. 51 inclui Pródico numa lista de ateístas "que dizem que não existe nenhum deus".

(g) ib. 39-41 critica “os que dizem que supuseram que todas as coisas que beneficiam a vida são deuses – sol e lua, rios e lagos e semelhantes”, pelo motivo de que (a) os antigos não podiam ter sido tão estúpidos para atribuir divindade a coisas que viam parecer ou mesmo comiam e destruíam eles mesmos, e (b) com este argumento deve-se também crer que homens, especialmente filósofos, são deuses, e mesmo animais e utensílios inanimados, pois todos estes trabalham por nós e melhoram nossa sorte. (p. 222) [Osório diz: crítica estúpida! O crítico é Sexto Empírico, como se vê na página seguinte.]

Sexto, é verdade (passagem g),

O traço da teoria de Pródico que mais impressionou foi que a origem da religião está na tendência do homem primitivo de considerar as coisas úteis para sua vida — incluindo sol, lua e rios bem como pão e vinho — como deuses. Esta teoria viria facilmente à mente de um grego racionalizante, pois em sua literatura, de Homero em diante, encontraria o nome do deus respectivo para a substância mesma, como Hefesto para fogo ("Espetaram as entranhas e as puseram sobre Hefesto, Il. 2.426), e o sol, a lua e os rios eram deuses. "Meu noivo foi um rio", diz Deianeira muito naturalmente (Soph. Trach. 9), e, sendo um deus, podia tomar qualquer forma que quisesse — de touro, de homem ou de serpente, como também da água. Empédocles deu nomes de deuses aos quatro elementos, e (pelo que possa valer) Epifânio diz que Pródico os chamou de deuses, como também o sol e a luz, "porque a vida de tudo depende deles".

Uma passagem notável nas Bacchae (274ss) mostra quão facilmente a mente grega podia escorregar da idéia de uma substância enquanto incorporando um deus vivo à do deus como seu inventor ou descobridor. Tentando acalmar a ímpia hostilidade de Penteu para com Dionísio, Tirésias lhe diz que

 

duas coisas são primárias na vida humana: primeiro, a deusa Demeter — ela é Terra, mas chama-a com qualquer nome que queiras [e com certeza Ge, a terra, era também grande deusa por aquele nome]. Ela dá aos homens todo alimento que é de natureza sólida. Para balancear isto veio o filho de Sêmele, que descobriu a substância fluida da uva... Ele, sendo deus, é derramado para os deuses.

 

Aí Dionísio, o deus do vinho, é descrito ao mesmo tempo, sem nenhuma percepção de incongruência, como o descobridor do vinho e o próprio vinho. Está, pois aí, com toda probabilidade, a chave para a doutrina de Pródico. No piedoso profeta Tirésias ele veria um exemplo perfeito (e, uma [p. 224] vez que é certo que Eurípedes conheceu seu ensino, também viu um exemplo) da mentalidade de que surgiu a religião: perguntar se os homens imaginaram seu alimento, bebida ou outras coisas que dão e sustentam a vida como deuses, ou alternativamente os seres que os descobriram e forneceram, era fazer distinção psicologicamente irreal. Dionísio era ao mesmo tempo vinho e doador do vinho, Hefesto fogo e doador do fogo.

Foi Pródico ateísta? Crer que vinho e pão são deuses com certeza não é ateísta, é precisamente a crença que Pródico disse que “os antigos” tinham e da qual surgiu a religião. Para o próprio Pródico eles eram apenas vinho e pão.

A afirmação de que a própria concepção de deuses resultou da prática da agricultura não soa como se viesse de crente neles.

Pródico pode ser justamente saudado como um dos mais antigos antropólogos, com uma teoria sobre a origem meramente humana da crença em deuses que não teria envergonhado o séc. XIX.

Pródico, como era de se esperar de alguém que era tanto sofista como filósofo natural [Osório diz: isso também era Sócrates, acredito, por Aristófanes] e que escreveu sobre cosmogonia, evidentemente defendia uma teoria do desenvolvimento humano como “progresso” e não “degeneração” [Osório diz: isso é darwinismo antes de Darwin?!]... e, como Protágoras, ele pensou na religião, junto com condições sedentárias, construção de cidades, o governo da lei e o avanço do conhecimento, como um dos frutos da civilização e essencial à sua preservação. Para defender estas idéias não é (p. 225) necessário crer na existência de deuses como objetos de adoração independentemente da concepção dos homens sobre eles [ … Frederic Harrison, que “considerou todas as religiões falsas, mas insistiu na necessidade humana da adoração”.]. [Osório diz: bom!]

Crítias [Osório diz: tio de Platão!]... era rico aristocrata que teria desprezado com altivez ser sofista profissional, mas partilhava da perspectiva intelectual que veio a ser conhecida como sofística. Em sua peça Sísifo descreveu a crença religiosa como deliberada impostura imposta pelo governo para assegurar uma sanção última e universal para o bom comportamento de seus súditos. [Osório diz: sofista por perspectiva intelectual] [Osório diz: religião como objetivo de manter o bom comportamento].

Portanto, se a lei impedia os homens de ações públicas de violência e eles continuavam a cometê-las em segredo, creio que homem de mente muito sagaz e sutil inventou para os homens o temor dos deuses, a fim de que houvesse algo para aterrorizar os maus ainda que agissem, falassem ou pensassem em segredo. Para isso introduziu a concepção de divindade. Existe, dizia ele, um espírito que goza de vida sem fim, que ouve e vê com sua mente, excessivamente sábio e onividente, portador de natureza divina. Ouvirá tudo o que se fala entre os homens e verá tudo o que se faz. Se estiveres tramando em silêncio o mal, este não ficará escondido aos deuses, pois são muito sagazes. Com esta estória apresentou o mais sedutor dos ensinamentos, dissimulando a verdade com palavras mentirosas. Por moradas, ele lhes deu o lugar cuja menção mais vigorosamente golpeia os corações dos homens, donde sabia ele, medos e temores caem sobre os mortais e vem ajuda para suas vidas ignóbeis, donde percebia os relâmpagos e os estrondos temerosos dos trovões, e a face e forma estrelada do céu bem trabalhada pela arte do tempo, donde também o meteoro incandescente faz o seu percurso e a chuva líquida desce sobre a terra. Com tais temores ele cercou a humanidade, e, dando, assim, por sua estória, à divindade uma bela casa em lugar apropriado, eliminou a falta de lei por ordenações... Assim sobretudo, penso eu, alguém persuadiu os homens a acreditar que existe a raça dos deuses. [Osório diz: para as ações humanas visíveis por testemunhas, a lei; para as não vistas, deus! Origem divina da lei. / Quando não tem lei, deus! Criação da religião]

É a primeira ocorrência na história da teoria da religião como invenção política para assegurar bom comportamento, que foi elaboradamente desenvolvida por Políbio em Roma e reviveu na Alemanha do século XVIII [ … Contudo não é o mesmo que as teorias da exploração por políticos de crenças religiosas já existentes, correntes no Renascimento e depois, e que culminaram no marxismo,...]. Não há nenhuma outra menção dela nesta época, e, sendo assim, pode muito bem ter sido original como era ousada [ ...embora dizer: “o medo conduz ao culto dos deuses” não seja o mesmo que dizer que o culto baseado no medo leve ao bom comportamento e seja inventado para este objetivo. E expressar descrença no mais incrível dos mitos (...) não era certamente ateísmo. Não há absolutamente nenhuma prova para a alegação de Nestle (V MzuL, 416) de que o ateísmo de Diágoras baseava-se na mesma teoria que o de Crítias, e era na verdade sua fonte.], e engenhosa na maneira como se subsume sob a teoria mais geral do ensino de Demócrito e Pródico de que a crença nos deuses foi produto do medo ou gratidão causados por certos fenômenos naturais. A teoria reverte ao mesmo tempo o volume crescente de críticas que atacavam os deuses por motivos morais, insistindo em que, se existissem ou merecessem o nome de deuses, deveriam ser os guardiões do código moral aprovado. Foi a exigência de sanção sobrenatural para o comportamento moral, diz Crítias, que deu antes de tudo existência aos deuses. [Osório diz: muito bom! “A teoria da religião como invenção política para assegurar bom comportamento”]

O segundo tipo de erro de Platão, segundo o qual os deuses existem, mas não se interessam pelos homens. [Osório diz: acho que há um erro quanto a Platão, ver!!!!!]

O orador Lísias falou dele junto com outros três formando uma espécie de "clube do fogo do inferno" ou bando de satanistas ("kakodemonistas", como se chamavam a si mesmos), que escolhiam de propósito dias agourentos e proibidos para cear entre si e caçoar dos deuses e das leis de Atenas. [Osório diz: eu passo debaixo de escadas quando o pintor não está lá em cima! Acho que tira o azar ou a superstição de que se tirou o azar ao não passa sob ela].

Hermas. [Para os kakodaimonistai v. Lísias ap. Ath. 12.551e. A profanação da estátua é mencionada por Aristófanes, nas Rãs (366, cf. Eccl. 330), onde o comentador diz que Cinésias foi o criminoso. Para ulterior informação acerca deles, Maas em RE, XI, 479-81, Dodds, Gks. and Irrat. 188s, Woodbury em Phoenix, 1965, 210. Woodbury (p. 199) faz a observação interessante que tais crimes de sacrilégio e blasfêmia "pressupõem a autoridade de alguma coisa santa. Uma missa negra implica a autoridade e a validade do sacramento”. Pode ser assim. Satanistas medievais, sem dúvida, criam que faziam aliança com um dos dois poderes opostos e igualmente reais. Mas também é possível cometer crimes que podiam trazer a ira dos deuses, se existissem, simplesmente para demonstrar que não existiam. É mais provável, na documentação, que esta seja a explicação dos atos de Cinésias e do seu clube de refeição, e dos perpetradores de outros ultrajes contra a religião em Atenas.]

Tudo isso pode ter pouca conexão direta com a história da filosofia, mas, junto com o racionalismo dos filósofos naturais e dos sofistas contribuiu para a atmosfera em que cresceu Platão e que o levou a construir em oposição uma teologia filosófica baseada numa teoria da origem e do governo de todo o universo e do lugar do homem nele.

Platão, considerado comumente como o mais fanático e implacável dos teístas, (…) Admite que o ateísmo não leva necessariamente a conduta imoral, e reconhece um tipo um tanto semelhante aos dos humanistas éticos de nossos dias. A passagem atinente é Leis 908b-e:

 

Embora um homem possa ser inteiramente descrente na existência dos deuses, se ele tiver caráter reto detestará os malfeitores, e, por repugnância à maldade, não terá nenhum desejo de cometer atos errados, mas evitará o que é injusto e será atraído ao bem. Mas há outros que, em acréscimo a sua crença de que não há deuses absolutamente, caracterizam-se por uma falta de autodomínio nos prazeres e dores, combinada com vigorosa memória e inteligência penetrante [Osório diz: Platão e os ateus! / Penso que exemplo disso é o Platãso siracusano. / Ademais, a recíproca é verdadeira: há os crentes que praticam as piores maldades. É via de mão dupla!]. Ambos os tipos têm em comum a doença do ateísmo, mas com respeito à injustiça para com outros um faz muito menos mal do que mal que o outro. Um terá, sem dúvida, uma maneira bastante livre de falar sobre deuses, sacrifícios e juramentos, e por ridicularizar outros talvez possam fazer alguns convertidos se não for retido pela punição; o outro, porém, apóia as mesmas opiniões, mas com a reputação de ser homem dotado, cheio de manhas e perfídias – esta é a espécie que produz teus adivinhos e peritos em toda sorte de charlatanismo. Às vezes também produz ditadores, demagogos, generais, inventores de mistérios privados e os ardis dos que são chamados sofistas [Osório diz: vejo o próprio Platão em Siracusa e no seu mundo das ideias]. Existem assim muitos de ateísta mas dois que merecem a atenção do legislador. Os pecados dos hipócritas merecem mais de uma morte ou até duas, mas os outros exigem advertência e confinamento.

 

No sentir de Platão, o primeiro e maior crime contra a religião não é o ateísmo aberto, mas o estímulo à superstição [Osório diz: que o que ele, Platão, faz! Contradição sempre! Penso que é ou o contrário (a religião que causa a superstição) ou via de mão dupla!]. Também antes, na República (...) ele censurara os pseudo-sacerdotes e profetas que espoliam os ricos e ingênuos com espúrios livros órficos que prometem imunidade de punição para todos os que pagam por seus ritos e encantações. Uma personagem em Eurípides chama a profecia de “coisa sem valor, e carregada de mentiras”. As chamas do sacrifício, pensa ele, e os gritos de pássaros nada têm a nos ensinar. Bom senso e bom conselho são os melhores profetas. Mas isso não é ataque dos deuses, pois ele acrescenta: “Sacrifiquemos aos deuses e oremos pelo bem, mas abandonemos a profecia”. Também Platão não condena toda profecia igualmente. Ele respeitava inteiramente o oráculo de Delfos, o porta-voz do próprio Apolo [Osório diz: mais uma contradição de Platão: só que ele apoiava era bom! Ele se achava o dono da verdade ou seus seguidores o acham tal dono!], mas a arte mântica tem suas formas elevadas e baixas, e havia toda uma multidão de adivinhos mercenários, pretendendo dizer a vontade dos deuses pela aparência dos sacrifícios e pelo voo dos pássaros, ou coletâneas escritas de oráculos forjados (tais como são ridicularizados nos Pássaros de Aristófanes [Osório diz: aqui Aristófanes não errou!!!! É conveniente com a tese esposada) que levavam ao desprezo da religião. Platão oferece ainda ulterior documentação da necessidade de distinguir tentativas de purificar a religião de ataques à religião mesma.

 

c) Monoteísmo: Antístenes.

 

Detectar e isolar quaisquer expressões de puro monoteísmo em escritos gregos é tão difícil como definir ateísmo não-adulterado [Osório diz: “ateísmo não-adulterado”! Pois é! ]. A questão de um deus ou muitos deuses, tão central na tradição judaico-cristã, dificilmente preocupou os gregos. Manifesta-se isto nas obras de teólogos tão filósofos como Platão.

Sobre um ponto, porém, concordam os filósofos: "o divino" mesmo não é antropomórfico, quer seja o Logos-fogo de Heráclito, o "deus uno" de Xenófanes fr. 23 (vol. I, 374), que não é "de maneira nenhuma como os mortais, quer no corpo, quer na mente", o deus de Empédocles que é pensamento puro e expressamente exclui qualquer parte corpórea (fr. 134, vol. II, 256), ou a Mente original criadora do cosmo de Anaxágoras. Alguns destes pensadores poderiam ser classificados, se quiséssemos, como monoteístas ou panteístas, sobretudo Heráclito e Xenófanes com seus ataques mordazes a crenças e cultos populares. Não se registra nenhum ataque desta espécie de Anaxágoras, mas ele expressou sua doutrina de maneira extremamente franca e sua perseguição por impiedade não surpreende. Empédocles, de outro lado, encontrou espaço para grande número e variedade de deuses em seu amálgama singular de ciência física e religião (vol. II, 257ss). Em suma, é melhor evitar estes rótulos, que, constituídos de raízes gregas, eram alheios aos próprios gregos.

Todavia no período dos sofistas e de Sócrates, que estamos considerando agora, parece haver uma expressão inequívoca de visão monoteística, expressa nos termos da corrente antítese entre nomos e physis. É visão do discípulo de Sócrates, Antístenes, cuja teoria da relação da linguagem com a realidade já analisamos, e, como de costume, possuímos poucos fragmentos de testemunho indireto. Diz-se que provêm de uma obra sobre a Natureza e afirmam que “segundo o nomos há muitos deuses, mas na natureza, ou na realidade, há um só” (…) Assim Filodemo, o Epicureu, relata, e o Epicureu de Cícero (todas as outras nossas versões são em latim) observa que “Antístenes, no livro chamado Physicus, ao dizer que há muitos deuses entre os povos, mas somente um na natureza (naturaliter unum), abole o poder dos deuses”. O cristão Lactâncio acrescenta que o deus único “natural” é o supremo artífice do universo, e afirma que só ele existe embora nações e cidades tenham seus próprios deuses populares. Escritores cristãos também citam Antístenes dizendo que o deus não é semelhante a nenhuma outra coisa (ou pessoa: o dativo podia ser masculino ou neutro) e que por isso ninguém pode saber dele a partir de imagem [Osório diz: será que por isso o Islã proíbe imagens?]. Se Lactâncio estiver certo quando o único deus era o criador do universo (que, na ausência de testemunhas melhor qualificadas, não se pode ter como certo), este será um exemplo notavelmente antigo na Grécia de um puro monoteísmo [Osório diz: monoteísmo na Grécia]. O contraste entre os muitos deuses do nomos ou da crença popular e o único deus real é claro e enfático. Sem esta adição, porém, a ênfase na unidade de Deus e a impossibilidade de representá-lo por imagem visível lembra Xenófanes, e é compatível com um credo panteístico mais do que com um monoteístico [Caizzi, o mais recente estudioso que faz estudo especializado sobre Antístenes, descreve-a cautelosamente como “uma fede monoteística, forse in germe panteistica”.]. [Osório diz: essa descrição seria e é, a meu ver, uma imagem que se tem do Islã na atualidade].

Partilhou com Protágoras, Demócrito e outros da crença na evolução progressiva da humanidade por seus próprios esforços, que pensou que as leis não eram nem inerentes à natureza humana desde o início nem eram dons dos deuses, e a religião era mera invenção visando prevenir comportamento ilegal. A religião era para o súdito, para assegurar a obediência, e não para o governante ilustrado.” (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 11-31).

 

Afirma Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

A antropologia de Hípias está no prolongamento direto da sua teoria da natureza. Instaura uma oposição categórica entre a natureza (physis) e a lei (nomos), em benefício da primeira, sendo a lei positiva duramente posta em questão.

Constatar que o nomos é incapaz de instaurar uma verdadeira justiça é, antes de mais, para Hípias, exprimir no plano do conceito a violenta crise que abala a sociedade grega no fim do séc. V e no princípio do IV. Edmond Lévy analisou minuciosamente esta “crise ideológica” ateniense, ligada à derrocada de 404. A guerra demonstrou que os deuses não defendem os justos, já que são atingidos tanto e muitas vezes até mais do que os outros [Osório diz: como é que homens que pensavam assim e diziam isso poderiam ser aceitos? Daí o ódio nutrido, até hoje, contra eles, pois questionavam o divino]; levantam-se dúvidas, então, quanto à idéia da providência divina, claramente expressas por alguns heróis de Eurípedes. A decadência da crença na providência arrasta a da crença nos valores tradicionais de que a principal era a justiça [Osório diz: aqui a mesma coisa, apenas a crítica é dirigida contra a justiça, outro “pilar” da ordem que eles questionavam]: estas, escreve E. Lévy, “reduzem-se a onómata kelá[Osório diz: “belas palavras”]. Por outro lado, as discórdias políticas, o confronto interno na cidade entre democratas e oligarcas e a sua transição sucessiva para poder fazer ver claramente que as leis que promovem são a expressão disfarçada dos seus interesses de partido. A lei é desacralisada; perdeu a neutralidade do direito; é um disfarce para o poder, e a obediência à lei não poderá já definir a justiça [Osório diz: como os sofistas viam o direito e a justiça e as leis]. Enfim, sabemos que Hípias é um dos criadores da etnologia [A etnologia é o "estudo ou ciência que estuda os fatos e documentos levantados pela etnografia no âmbito da antropologia cultural e social, buscando uma apreciação analítica e comparativa das culturas."]; como embaixador e professor itinerante, contactou com múltiplas legislações positivas, e verificou os desacordos e as contradições. Ninguém melhor do que ele poderia ter a sensação da relatividade daquilo que as diferentes culturas chamam “justo” e “bom”.” (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 85).

 

Ensina Kerferd:

 

O movimento sofista como um todo tem sido visto, às vezes, como caracterizado por uma revolta contra a religião, um profundo movimento do espírito humano que passa da crença no divino para uma concepção racionalista e humanista do mundo. Essa visão talvez tenha sido influenciada, até certo ponto, pela analogia, um tanto superficial, entre a "idade dos sofistas" e o Aufklärung do século XVIII, ou Idade do Iluminismo. Mas a verdade é um pouco diferente. A religião grega nunca foi, em sentido algum, uma entidade unitária. Em tempo algum, durante o período de sua independência, esteve o mundo grego organizado como um Estado único e nunca houve nada remotamente parecido com o que se poderia descrever como uma igreja organizada, mesmo nas cidades-estado independentes. Nunca houve nenhum escrito de autoridade como a Bíblia ou o Alcorão; nunca houve um credo, nem uma pluralidade de credos. Nem havia nenhuma uniformidade de culto, de ritual ou de mitologia. Tudo variava de época para época, de lugar para lugar, de classe para classe, e até de grupo de família para grupo de família. Afora as religiões de mistério, o que predominava era uma religião, não do outro mundo, mas deste mundo, tendendo sempre para um politeísmo antropomórfico no qual os deuses eram pensados como humanos, quanto à forma, e muitíssimo humanos em espírito.

Tudo isso é elementar e bem conhecido, mas muitas vezes parece virtualmente esquecido nas discussões sobre o movimento sofista. A partir de Homero houve um processo contínuo de discussão intelectual e reinterpretação de tudo o que dizia respeito aos deuses. Os pré-socráticos sempre procuraram igualar o Divino com o que qualquer um deles identificasse como a suprema fonte de poder no universo, e quase regularmente falam do divino como o que tudo contém, tudo governa, e assim por diante. As implicações dessa maneira de considerar as coisas eram destrutivas do antropomorfismo tradicional e Xenófanes não hesitou em demonstrar e enfatizar essas implicações, atacando, além disso, a validade da adivinhação. Na opinião mais provável, Xenófanes tinha negado a possibilidade de qualquer conhecimento a respeito dos deuses, antecipando, assim, a famosa declaração de Protágoras discutida abaixo. Homem nenhum, disse ele (DK 21B34), jamais teve ou terá conhecimento seguro sobre os deuses e todas as coisas que digo. Pois mesmo que, por acaso, expresse, seja em que medida for, a verdade completa, ele mesmo não sabe que o faz; só a opinião está ao nosso alcance [Osório diz: isso seria uma antecipação da fenomenologia de Hurssel?]. Heráclito não hesitou em atacar as purificações rituais e o culto fálico, e ambos, Píndaro e Xenófanes, anteciparam Platão na rejeição dos mitos nos quais os deuses eram retratados como ladrões, trapaceiros, adúlteros, glutões e sedutores. [Osório diz: bem como o cristianismo!] e [Osório diz: o que é o culto fálico?]

[Osório diz: o cristianismo como “guardião” da cultura passou a guardar e incentivar, obvaimente, apenas aquilo que interessa à sua existência].

Como já foi dito, esse feito da filosofia dos pré-socráticos pode nos impressionar como

 

a emergência de uma força fundamentalmente anti-religiosa e radicalmente destrutiva, tal como a que frequentemente atribuímos à razão e à ciência. Se considerarmos a religião não como uma forma em desenvolvimento, com vida própria, mas simplesmente como mero fato da história dado de uma vez por todas, como é muito plausível, à luz da concepção cristã de uma única e final revelação de Deus, essa opinião talvez seja correta. Mas a religião grega é muito mais rica e menos restrita no seu desenvolvimento. Ela não consiste em nenhuma doutrina revelada, apenas em grau limitado reconciliável com o pensamento racional; ela brota de uma profusão de visões míticas do mundo, cujas características são constantemente revistas e alteradas a cada nova mudança de perspectiva.

 

Não é de admirar, portanto, que ninguém tenha feito a menor objeção ao que os poetas e filósofos vinham dizendo havia um considerável período de tempo. Como veremos, os sofistas não estavam fazendo nada mais do que continuar a discussão mais ou menos na mesma linha. [Osório diz: na verdade, ou no meu entender, os sofistas apenas deram continuidade, com novas perspectivas e desenvolvimento, de pensamentos que estavam “soltos” e “desorganizados”, mas eram latentes e comuns no pensamento grego”. Não inventaram a roda, mas a colocaram em movimento] e [Osório diz: Platão não se opôs aos antecessores dos sofistas por ser sua finalidade combater a política do momento praticada em Atenas, que era a democracia e ia de encontro ao seu interesse! Ademais, os outros sofistas disseram o que disseram, fundamentalmente, em outras cidades e não no coração da Grécia].

Contudo, a tradição posterior iria identificar toda uma lista de pretensos ateus a partir do período sofista — Diágoras, Protágoras, Pródicos, Crítias, Eurípides — aos quais se juntaram os nomes de Euêmero e Teodoro de fins do século IV a.C. (ver, p. ex. Cícero, De Natura Deorum l, 117-119). Essa tradição faz par com uma outra segundo a qual toda uma série de acusações de impiedade (asebeia) foi feita contra os expoentes de tais opiniões — Protágoras, Sócrates, Fídias, Anaxágoras, Eurípides e Teodoro são todos mencionados — e em vários casos as acusações teriam resultado em exílio ou mesmo morte. No caso de Protágoras, diz a tradição que o livro no qual ele escreveu a respeito dos deuses foi mandado ser queimado em público. É provável que haja algum exagero e mesmo algum grau de ficção em tudo isso. Mas não se pode desprezar totalmente o testemunho. Como já vimos no capítulo 3, havia grande hostilidade para com os sofistas em geral, e era natural que o que eles diziam a respeito dos deuses fosse usado como parte da campanha geral para desacreditar todas as suas atividades. Pode ter havido, também, um elemento de reação retardada à crescente onda de racionalismo, aguçada pelo medo na situação de guerra em que se encontrava Atenas de 432 em diante. Mas a motivação foi, acima de tudo, a oposição política [Osório diz: como sempre, diga-se de passagem. Para essa besteira contribuirá sobremaneira Platão, como a sua bobagem de criação do divino, outro mundo etc.]. Primeiro a Péricles e depois a todos os que admiravam e continuariam a sua política após a sua morte[Osório diz: eram os inimigos da democracia].

Em grande parte, a hostilidade à abordagem sofista da religião foi despertada pela famosa declaração de Protágoras (DK 80B4) que, na sua forma mais completa, parece ter sido a seguinte: "Em relação aos deuses, não estou em posição de saber nem que (ou como) são, nem que (ou como) não são, ou que aparência têm; pois há muitas coisas que impedem o conhecimento: a obscuridade do assunto e a brevidade da vida humana." Foi com base nessa declaração que Protágoras adquiriu a reputação de ateu [Osório diz: que queriam que ele dissesse? Que deus existe e que tem tal ou qual forma e aparência, como fazem todos os pilantras?]; e o epicurista Diógenes de Oinoanda disse, abusivamente, que quando Protágoras declarou que não sabia se os deuses existem era o mesmo que dizer que sabe que eles não existem [Osório diz: vejam a distorção, como sempre, do que foi dito! Mas essa distorção foi cultuada, pois é ela que interessa as religiões!]. Naturalmente, tudo o que a passagem afirma é a necessidade, para Protágoras, de suspender qualquer julgamento sobre a questão. É-nos dito que a declaração vinha no início de um dos seus escritos, mas não se diz se ele a fundamentava e como. Tendo em vista a sua importância, contudo, convém discutir as possíveis maneiras pelas quais a mente de Protágoras estava trabalhando quando ele escreveu as palavras que foram [Osório diz: que são!] tão extensivamente citadas.

Primeiro, foram feitas tentativas de interpretá-las à luz da doutrina do homem-medida. Tem-se sugerido que o que Protágoras deve ter dito, se ele supunha que a verdade de cada homem é a verdade que lhe parece, era: deuses existem para aqueles que acreditam neles; não existem para aqueles que não acreditam neles. A isso se replicou que, segundo o princípio do homem-medida, deuses existem para alguns e não para outros e, conseqüentemente, para o próprio Protágoras a suspensão do julgamento era o único caminho possível. Mas isso é, provavelmente, compreender mal a sua posição. Não há nada que sugira qualquer tentativa de Protágoras de se eximir da operação do princípio do homem-medida. Entretanto ele não está dizendo, aqui, que a verdade é como lhe parece a ele mesmo, ou como parece a qualquer outro. O que ele está dizendo é que não pode chegar a qualquer (aparente) verdade nesse caso particular. Gomperz está provavelmente certo em supor que seu raciocínio poderia ter sido: "Até aqui, ninguém viu deuses; mas a vida humana é curta demais, e o nosso campo de observação restrito demais para afirmar ou negar com certeza os traços de sua atividade no mundo da natureza e do homem. Por conseguinte, ele retém o seu veredicto". Isso diz Gomperz. Consta também que Péricles teria dito que nós não vemos os deuses, mas apenas fazemos inferências sobre eles (Estesimbroto citado por Plutarco, Vida de Péricles 8,9). É de duvidar que Protágoras tenha ido tão longe a ponto de dizer que ninguém tinha visto um deus — mas ele certamente teria concordado com Xenófanes na suposição de que ninguém poderia saber se ele [Osório diz: Protágoras] tinha ou não visto um deus.

A acusação de que Protágoras era ateu fundamenta-se claramente na asserção de que na sua famosa declaração ele estava pelo menos duvidando da existência dos deuses, se não claramente negando-a [Osório diz: qual o problema em se ser ateu?]. É certamente dessa maneira que suas palavras foram comumente entendidas na Antiguidade, como também subsequentemente. E justifica-se, às vezes, essa interpretação pela antítese entre a primeira parte — "que são ou que não são" — e a segunda frase, às vezes omitida, mas que é provável ter sido parte do original — "ou qual é a sua aparência" [Osório diz: hoje, passado 2,5 mil anos, alguém comprovou sua existência, ou somente acredita nela, e alguém sabe qual a sua aparência?]. Assim, a primeira parte é tida como concernente à sua existência, e a segunda, às suas qualidades e características. Mas talvez a questão simplesmente não esteja bem proposta. Cícero, em um lugar (De N.D. I, 63), traduz a primeira parte como se tivesse suposto que a construção fosse a de uma questão indireta, portanto, não "que são ou que não são", mas "como são e como não são", embora em outro lugar, no mesmo livro (I, 2,117), a entenda como uma afirmação indireta e, portanto, como se referindo à existência ou não existência dos deuses.

Na sentença homem-medida, vimos que a conjunção grega introduzindo a cláusula subordinada, que é a mesma conjunção usada na sentença sobre os deuses, é agora comumente entendida como se referindo à maneira pela qual as coisas aparecem ao homem atuando como medida, e não tanto à existência delas. Vimos também razões para duvidar se o verbo "ser", quando usado de modo absoluto, tinha realmente desenvolvido qualquer sentido plenamente existencial antes do século IV a.C.

Convém notar que a questão da existência dos deuses não é mencionada na paródia hostil de Timon de Flios, no início do século III a.C. (ver DK 80A12). Essa interpretação da sentença sobre os deuses não é excluída pela adição da segunda frase — "ou qual é a sua aparência", visto que a sentença completa poderia ser entendida como dizendo: "Concernente aos deuses, não estou em condição de conhecer seja a maneira pela qual são ou não são, ou a sua forma visível". Certamente a segunda frase, "não estou em condição de conhecer a forma visível dos deuses" sugere que pelo menos aí lhes é atribuída existência. Mas o sentido pode, naturalmente, ter sido: "ou se eles de fato existem, que aparência têm". Seja o que for que Protágoras tenha dito, foi quase imediatamente tomado como tendo, de fato, a intenção de se referir à questão da existência ou não existência dos deuses. É digno de nota que Charles Kahn, na sua importante discussão dos usos do verbo "ser" em grego, aceita a sentença como envolvendo, talvez, o uso técnico mais antigo de que se tem registro do verbo com um predicado existencial. Quanto a isso, ainda não estou convencido. Tudo o que se pode adequadamente inferir das palavras de Protágoras que chegaram até nós é que ele expressou a opinião de que não é possível descobrir a natureza dos deuses, uma espécie de ceticismo nem excepcional (ver abaixo, p. 288), nem ofensivo, pelo menos para as mentalidades cultas na segunda metade do século V a.C. A posição verdadeira talvez seja a que foi muito bem expressa por M. P. Nilsson, quando escreveu, referindo-se a esse período: "A crença nos deuses tinha se enfraquecido, mas não extinguido. Se a farra fosse longe demais, poderia acabar em histeria religiosa, como na partida da arriscada expedição contra Siracusa e as famosas perseguições que se seguiram à mutilação dos Hermai em 415 a.C." (Greek Piety, Oxford, 1948, p. 78). [Osório diz: Hermai, estátuas de Hermes com falo agigantado?]

Embora a declaração que acabamos de discutir seja, de longe, a mais famosa expressão das opiniões de Protágoras sobre os deuses, não é a única peça de informação que sobreviveu. Na lista dos escritos de Protágoras há uma obra intitulada Sobre as coisas em Hades. No mito posto na boca do sofista, no Protágoras de Platão, os deuses existiam antes que houvesse criaturas mortais, e foram os deuses que, chegado o tempo marcado pelo destino para a sua geração, moldaram criaturas mortais no seio da terra depois de terem feito uma mistura de terra, fogo e elementos que se fundem com terra e fogo. A elas foram então atribuídos, por Prometeu e Epimeteu, vários poderes úteis para a sobrevivência. Depois de algum tempo o homem adquiriu a dádiva do fogo e então foi trazido à luz do dia. A história continua (322a3-5) com as palavras: "Agora que o homem veio a ter uma participação na divina Moira, em virtude de seu parentesco com deus, o único entre as criaturas vivas, ele, em primeiro lugar, veio a ter respeito pelos deuses, e se dedicou a construir altares e imagens dos deuses; e em segundo lugar, rapidamente passou a uma articulada distribuição de voz e nomes".

A interpretação ortodoxa dessa passagem toca as raias do despropositado ao querer argumentar que a expressão "em virtude de seu parentesco com deus" deveria ser excluída do texto por ser inconsistente com o agnosticismo declarado de Protágoras, ou que, se for mantida, é testemunho de que o mito é obra de Platão e não de Protágoras. Mas o mito, como um todo, está construído em torno das atividades de Zeus, Prometeu e Epimeteu, e o fato de ser um mito despoja-o de qualquer possível conflito com o agnosticismo de Protágoras. A distribuição divina, ou Moira, na qual o homem veio a participar, não é tanto a dádiva do fogo, embora esta esteja incluída, quanto a sabedoria (Sofia), que sempre foi associada ao divino; e o parentesco com os deuses é provavelmente algo que resulta da participação do homem na sabedoria divina. De fato, o mito todo, tanto aqui como alhures, apresenta nada mais do que uma espécie de projeção ou reflexão, no nível divino, das forças identificáveis que operam entre os seres humanos neste mundo. Exatamente o mesmo se aplica no caso da concessão de aidós e dikê, que forma o estágio seguinte no mito — o dom deles representa a aquisição, através do estudo, daquelas qualidades, nos seres humanos, que são a condição para a manutenção de sociedades humanas ordenadas. Isso significa que sua preocupação com a religião não era, primeiramente, para conduzir uma polêmica contra as ideias tradicionais dos deuses, mas, antes, para tratar a religião como um fenômeno humano positivo com a valiosa função de atuar nas sociedades.

A interpretação sociológica das crenças religiosas era uma parte essencial também das doutrinas de Pródicos, embora a natureza fragmentária, tardia e esparsa das referências torne difícil ir além da mera descrição do que ele tinha a dizer. Como Protágoras, ele estava interessado nas origens da religião nos primeiros estágios do desenvolvimento das sociedades humanas. Ele disse duas coisas distintas: a primeira foi que as coisas que alimentam e beneficiam a vida humana foram as primeiras a ser consideradas deuses e a ser reverenciadas. A lista de tais coisas incluía o sol, a lua, os rios, os lagos, as fontes, os quatro elementos, pão, vinho, água, fogo, e assim por diante, com cada uma das coisas que eram úteis. Várias delas vieram a ser identificadas com membros do panteão olímpico, tais como Demeter, Dioniso, Hefesto e Poseidon. Mas alguns destes figuram também na segunda coisa que ele disse, a saber, que as descobertas de novas espécies de vegetal cultivadas, alimentos e abrigo e outras artes práticas foram também incluídas nas classes dos deuses conhecidos, e uma fonte truncada parece sugerir que Pródicos considerava ser este um segundo estágio. É certo que Pródicos enfatizou a importância das práticas agrícolas no desenvolvimento de sacrifícios, mistérios e ritos de iniciação, e afirmava que essa era a origem, para os seres humanos, do conceito mesmo de deuses.

Críticas das doutrinas tradicionais a respeito dos deuses que se encontram nos poetas e tentativas de reinterpretações radicais não estavam limitadas aos sofistas profissionais. Heródoto (II.52ss) tinha especulado, com certa minuciosidade, sobre a origem dos deuses, seus nomes e suas funções. Segundo um relato, Protágoras teria lido em voz alta o início do seu livro sobre os deuses na casa de Eurípides [Osório diz: Protágoras lendo seu livro! Deve ser Heródoto.], e havia até uma história, preservada na Vida, por Sátiro, segundo a qual o próprio Eurípides fora processado por impiedade. Em muitas de suas peças há vários tipos de crítica lançadas contra os deuses. Às vezes elas não vão além da convicção, expressa com vários graus de paixão, por diferentes personagens, de que os deuses devem ser bons e não maus. Outras vezes, o tema central do drama é o comportamento profundamente impróprio de um deus ou dos deuses, como é certamente o caso de Ártemis em Hipólitos, Zeus em Hércules furioso e Apolo em Íon, Electra e Orestes. [Osório diz: comportamento dos deuses nas peças de Eurípides].

Tudo isso, contudo, pode ser considerado, de certa forma, a matéria natural da tragédia grega, os problemas levantados pelo relacionamento do homem com deus, e de deus com o homem. Eurípides, contudo, estava associado ao movimento sofista e foi influenciado por ele de modo muito mais profundo [Osório diz: poucos lembram disso ao exaltar Eurípides!]. De fato, não foi por acaso que veio ele a ser chamado, na Antiguidade, "o filósofo teatral ou filósofo do teatro" (Ateneu, 158e, 561a). Wilhelm Nestle intitulou seu grande estudo sobre ele, publicado em Stuttgart, em 1901, Eurípides der Dichter der Aufklärung, embora estivesse bem consciente de que ele é, primeiro e acima de tudo, um dramaturgo, e não pode ser tratado simplesmente como um conferencista expondo ideias sofistas. Isso pode ser ilustrado por uma outra seleção de algumas passagens especiais. Belerofon, nos seus indignados protestos contra a injustiça do governante divino, diz (Belerofon fr. 286):

 

Será que algum homem ainda diz que há deuses no céu? Não, não há nenhum. Se alguém diz isso, que deixe de ser tão tolo para acreditar nessa velha história. Não se deixem guiar pelas minhas palavras, pensem vocês mesmos. Digo que a tirania mata milhares e os priva de seus bens, e os homens que não cumprem seus juramentos são a causa das cidades serem saqueadas. E, fazendo isso, eles são mais felizes do que os homens que permanecem piedosos dia após dia. Sei de inúmeras pequenas cidades que reverenciam os deuses e são vencidas na guerra e são vassalas de cidades maiores que são mais impiedosas do que elas.

Em outro fragmento (292.7) lemos: "se deuses agem indignamente, então não são deuses".

Essas linhas são comparadas, por Nestle, com a posição que mais comumente encontramos em Sófocles. "Ambos os poetas admitem que Deus e pecado são termos mutuamente exclusivos. Mas dessa admissão eles tiram conclusões opostas. Sófocles infere: 'Conclui-se que tudo o que os Deuses fazem é bom'; e a fim de que não reste a menor dúvida, acrescenta: 'mesmo quando nos ordena ir além do que é certo'. A conclusão de Eurípides é diferente: 'Nesse caso, os deuses pecadores da mitologia grega são não-existentes'." Mas, então, se não há deuses, o que é que devemos supor? Uma possível resposta é dada em termos que poderiam ter vindo diretamente de um expoente das teorias sofistas. Em Hécuba 798ss., encontramos a rainha viúva de Príamo, Hécuba, apelando a Agamenon por misericórdia em uma passagem que tem sido muito discutida: "Somos escravos e, sim, talvez fracos. Mas os deuses têm poder, como o tem nomos que é o senhor dos deuses. Pois é por nomos que acreditamos nos deuses e reconhecemos em nossas próprias vidas uma distinção entre coisas que são certas e coisas que são erradas". Alguns têm suposto que Eurípides, aqui, está se referindo à lei divina que está acima dos deuses. Mas a declaração "é por nomos que acreditamos nos deuses" parece uma clara referência à controvérsia nomos-physis, e isso significa que, aqui, Eurípides está preparado para explicar os deuses como devendo sua existência à crença humana. Isso, contudo, não significa, necessariamente, que sua existência era meramente subjetiva aos seres humanos individuais. Em Rãs (889-894), Aristófanes faz Eurípides dizer que reza a vários deuses, que são especiais para ele, e os nomeia como "Aeté [ua variedade de feijão], minha fonte de sustento, pivô, da minha língua, inteligência, narinas, ávido de perfume". Aqui é possível que ao menos a referência a aeté tenha algo de sério, e provavelmente à inteligência também, em vista da invocação que se encontra em Trôades (884-887), na boca de Hécuba: "Oh veículo da terra, oh tu que reclinas na terra, quem quer que sejas, difícil de conhecer até mesmo por conjetura, Zeus, quer sejais necessidade da natureza ou o poder da razão em homens mortais, é a vós que oro".

Tudo isso pode servir de prelúdio e pano de fundo para o notável discurso dramático (DK 88B25) posto na boca de Sísifo, avô de Belerofon. A passagem tem sido comumente atribuída, pelos especialistas, a Crítias, com base na autoridade de Sexto Empírico, corroborada, nos tempos modernos, por Wilamowits. Mas, como foi afirmado antes (capítulo 5, p. 92-93 acima), os argumentos para atribuí-lo a Eurípides são bastante mais fortes, principalmente porque se sabe que Eurípides escreveu uma peça satírica intitulada Sísifo, quando ganhou o segundo prêmio com uma tetralogia que incluía a Trôades, na primavera de 415 a.C. (Aelia, V. H. II, 8). O discurso começa com palavras que se tornaram clichés, visto que se encontram também no começo do mito de Protágoras, no diálogo de Platão com esse nome. Houve um tempo em que o modo de vida humano era desordenado, igual ao do animal, e escravo da força. A esse se seguiu um segundo estágio, quando os seres humanos estabeleceram leis, impondo punições a fim de que reinasse a justiça e os excessos fossem controlados. Essas leis foram de fato bem-sucedidas no controle dos atos feitos em público, mas os atos de violência continuaram em segredo. Então se seguiu um terceiro estágio — alguém, ao mesmo tempo inteligente e sábio, inventou o medo dos deuses a fim de ameaçar os que eram secretamente maus nos atos, palavras ou pensamentos. Pois os deuses, que habitam nos céus lá em cima, possuem poderes divinos que lhes permitem estar informados das malfeitorias cometidas em cada uma das três áreas citadas acima, até mesmo a dos pensamentos secretos. A doutrina desse sábio não foi só extremamente útil — diz-se dela que esconde a verdade com um relato falso. O resultado, porém, foi que as leis acabaram com a desordem. [Osório diz: ou quase acabaram!]

Se tivéssemos apenas o relato acima, seria possível supor que a falsidade mencionada nele consistia meramente em atribuir aos deuses tais poderes extremos de supervisão sobre a humanidade. Mas Sexto cita duas outras linhas que, diz ele, ocorrem um pouco mais adiante: "Desta forma algum homem, assim suponho eu, inicialmente persuadiu os mortais a crer que existe uma raça de deuses". Isso parece justificar plenamente a inclusão da opinião assim expressa sob o título de ateísmo.” (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 277-291).

 

Conclui Kerferd:

 

Isso nos fornece uma lista extensa de tópicos incluindo um título inesperado, coisas divinas. Mas é aqui que se deveria colocar o livro de Protágoras, Sobre os deuses, cujas palavras iniciais nos dão uma aplicação da doutrina dos dois argumentos opostos: "concernente aos deuses não posso vir a conhecer nem como são eles, nem como não são ou que aparência têm"; e também a obra Sobre as coisas no Hades. Pródicos (DK 34B5) discutiu a origem da crença dos homens em deuses em termos naturalistas e psicológicos, e Crítias (DK 88B25) sustentava que os deuses foram inventados deliberadamente pelos governantes para garantir o bom comportamento de seus súditos. [Osório diz: frases e pensamentos dos sofistas sobre os deuses]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 71-72).

 

35

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

52.3 – Teoria do conhecimento, por Licofronte.

 

Gilbert Romeyer-Dherbey doutrina:

 

Os Sofistas, depois de Heráclito, caíram na conta de que a gramática não era neutra, que a maneira de dizer implicava uma maneira de pensar. [Osório diz: a neutralidade da gramática]

O verbo ser que está na junção do lógico (como teoria da linguagem) e do ontológico (como teoria do Ser).

Górgias que, no Tratado do Não-Ser, se compraz em abalar a lógica de Parménides e em provar a sua inutilidade. E precisamente ao apoiar-se na cópula é na proposição “o não-ser é o não-ser” que Górgias provoca a implosão da ontologia parmenidiana: portanto, o não-ser existe e, por consequência, o ser não existe. É inútil censurar Górgias por confusão de lógico com o ontológico, porque a sua confusão é que caracteriza precisamente o pensamento de Parménides. Ora, Lícofron é um discípulo de Górgias; consciente das dificuldades da lógica ontológica, vai procurar ultrapassá-las. O seu remédio é radical: para suprimir a ontologia, suprime o verbo ser. Ao mesmo tempo evita a maior inconsequência da estrutura proposicional da frase, a que organiza o discurso ao estabelecer a relação entre um sujeito e um predicado, por meio da cópula. Se digo: “o homem é branco”, faço residir o ser do homem no da brancura, encontro a verdade do mesmo no outro, faço com que aquilo que é um se torne múltiplo. Para a lógica proposicional e a sua ontologia, o sujeito passa-se todo para o predicado e com isso multiplica-se em tantos predicados quantos se lhes possa encontrar. É por isso que Lícofron e outros, como Alcidamas talvez, “suprimem o é”. [Osório diz: o coração de sua Teoria].

Aqui não podemos estar de acordo com uma glosa de Temístio, segundo a qual Lícofron teria aceitado o uso do verbo ser quando se tratasse de afirmar a existência de uma substância (“Sócrates é”), rejeitando-a se se tratasse do uso simplesmente copulativo (“Sócrates é branco”). Uma tal atitude, com efeito, supõe a aceitação da metafísica que precisamente Lícofron recusa: a distinção da substância e do acidente, a distinção entre o ontológico e o lógico. Ora, precisamente, se as distinções são aceites, o problema posto por Górgias a Parménides está resolvido. Não se podem atribuir a Lícofron os conceitos da metafísica de Aristóteles, primeiramente porque os ignorava, depois porque, se os conheceu, tê-los-ia rejeitado. É necessário compreender – pensamos nós – esta supressão do verbo ser por Lícofron num contexto heraclitiano. A afirmação da imanência recíproca dos contrários leva Heráclito a negar, previamente, toda a concepção que se pudesse parecer com qualquer coisa como a substância, e a recusar a linguagem proposicional tanto quanto fosse possível. É por isso que a linguagem de Heráclito costuma justapor os contrários pondo em curto-circuito o verbo ser, evitando assim fazê-los entrar na estrutura de uma proposição. Se é absurdo dizer: “os imortais são imortais, os mortais são imortais” é porque se verte o “imortais mortais, mortais imortais” de Heráclito no molde de uma lógica e de uma ontologia que heráclito precisamente não aceita. E com esta recusa o absurdo desaparece.

Talvez estejamos agora preparados para compreender porque é que Lícofron usa (e abusa, aos olhos de Aristóteles, de expressões compostas e fala, por exemplo, do “céu-com-muitos-aspectos” e de “terra-com-altos-cumes”. Não há aqui maneirismo ou preciosismo, mas vontade de elaborar uma retórica em que o verbo ser se elida, em que a proposição predicativa se desloque. Lícofron reduz assim a um bloco, com um único nome, o que a lógica distinguirá em sujeito e predicado, a metafísica em substância e acidente. Por conseguinte, o adjetivo já não está adjacente; a realidade surge tal qual, toda ornada de qualidades que lhe são inerentes e não referenciadas posteriormente. O que o discurso do sofista recusa é estabelecer a relação de abstrações com outras abstrações; o que quer é apresentar as coisas de uma só vez no seu feixe de aspectos.

A rejeição do discurso lógico não implica, para Lícofron, a impossibilidade do conhecimento; é rejeição do discurso a favor de uma concepção intuitiva do saber. Lícofron afirma, de fato, que “a ciência é comunhão entre o saber e a alma”. A palavra “comunhão” (sunousia) indica que a unidade alma-saber é imediata, que não introduz a dilação proposicional. A sunousia mostra, e a lógica demonstra, mas demonstrar equivale a passar ao lado das coisas porque se demonstra o uno pelo múltiplo, isto é, a própria coisa por outra.” (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 53-55).

 

3

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

52.2 – Teoria política, por Licofronte.

 

Doutrina Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

Lícofron intrometeu-se também no grande debate sobre as relações entre nomos e physis, entre a lei e a natureza. Como Antífon e Hípias e, sem dúvida, porque põe em questão o caráter restrito da polis, tira à lei todo o caráter sagrado, todo o valor ético. Ela é uma criação puramente humana, uma convenção; não tem, pois, algum fundamento na natureza. A sua legitimidade encontra-se na mera utilidade que dela extraem os cidadãos, enquanto ela é “garante dos direitos recíprocos”. Lícofron, para melhor traduzir o seu pensamento, usava uma metáfora e dizia que a comunidade política (koinonía) era parecida a uma aliança: assim como os estados fazem alianças para se ajudarem, se for necessário, também cada cidadão faz aliança com todos em vista a uma ajuda mútua. Encontramo-nos perante uma concepção puramente pragmática das relações sociais.

Qual é, em rigor, o significado desta teoria? Karl Popper nega-se a falar, a seu propósito, de contrato social sob o pretexto de que não se apresenta “sob uma forma historicista”. É verdade que a concepção histórica moderna é estranha ao mundo grego, mas, apesar de tudo, há em Lícofron uma teoria contratual da comunidade na medida em que esta não é espontânea (natural) e tem a sua origem num pacto de aliança (lei convencional). O pressuposto da teoria é a afirmação do individualismo, o que não é para espantar num sofista. O indivíduo existe por natureza, a Cidade é uma construção. Esta construção não tem senão o alcance limitado de uma aliança, limitada no tempo, limitada pela condição de aliança. Isto explica que a lei não atinja verdadeiramente a natureza profunda do homem e que seja impotente para a modificar: “não é capaz de tornar bons e justos os cidadãos”. A política não pode, portanto, coroar a esperança que Platão nela virá a pôr: caminhar de mãos dadas com a moral, o governante íntegro elaborando leis boas, as leis boas formando governados íntegros. Esta ineficácia ética das leis não impede, no entanto, de se resolver o problema político: basta que o cidadão esclarecido se aperceba de que há interesse em respeitar, pelo menos exteriormente, o direito. Pensamos em Kant, que dirá, mais tarde, que o problema político tem solução até no seio de uma comunidade de demônios, contanto que tenham senso comum.

A natureza cria, portanto, não cidadãos, mas indivíduos. Estes indivíduos naturais são todos iguais e, por conseguinte, a nobreza (que se chama impropriamente “nascimento”) não é mais do que um efeito de sociedade e, como esta, uma pura convenção. Se a convenção social se justifica pelo utilitarismo, a nobreza não o consegue e, então, não é mais do que uma “noção completamente vazia” porque “em verdade, nada distingue os não-nobres dos nobres”. No seu escrito perdido Da nobreza, Aristóteles cita literalmente Lícofron, dando-nos assim, uma amostra preciosa da sua maneira de escrever: “Invisível a beleza da nobreza, a sua majestade reside só nas palavras”. A posição política de Lícofron está, com isto, fixada: é um adepto da democracia, pelo menos um adversário dos oligarcas. Neste sentido, integra-se perfeitamente na corrente sofística tal como nos aparece.

Através destes raros e curtos fragmentos, adivinha-se a estatura de um pensador imponente, que nos fala do fundo de um injusto esquecimento.” (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 55-57).

 

2

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

52 – Licofronte e 52.1 – Lei, por Licofronte.

 

Nos diz Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

Lícofron intrometeu-se também no grande debate sobre as relações entre nomos e physis, entre a lei e a natureza. Como Antífon e Hípias e, sem dúvida, porque põe em questão o caráter restrito da polis, tira à lei todo o caráter sagrado, todo o valor ético. Ela é uma criação puramente humana, uma convenção; não tem, pois, algum fundamento na natureza. A sua legitimidade encontra-se na mera utilidade que dela extraem os cidadãos, enquanto ela é “garante dos direitos recíprocos”. Lícofron, para melhor traduzir o seu pensamento, usava uma metáfora e dizia que a comunidade política (koinonía) era parecida a uma aliança: assim como os estados fazem alianças para se ajudarem, se for necessário, também cada cidadão faz aliança com todos em vista a uma ajuda mútua. Encontramo-nos perante uma concepção puramente pragmática das relações sociais.

Qual é, em rigor, o significado desta teoria? Karl Popper nega-se a falar, a seu propósito, de contrato social sob o pretexto de que não se apresenta “sob uma forma historicista”. É verdade que a concepção histórica moderna é estranha ao mundo grego, mas, apesar de tudo, há em Lícofron uma teoria contratual da comunidade na medida em que esta não é espontânea (natural) e tem a sua origem num pacto de aliança (lei convencional). O pressuposto da teoria é a afirmação do individualismo, o que não é para espantar num sofista. O indivíduo existe por natureza, a Cidade é uma construção. Esta construção não tem senão o alcance limitado de uma aliança, limitada no tempo, limitada pela condição de aliança. Isto explica que a lei não atinja verdadeiramente a natureza profunda do homem e que seja impotente para a modificar: “não é capaz de tornar bons e justos os cidadãos”. A política não pode, portanto, coroar a esperança que Platão nela virá a pôr: caminhar de mãos dadas com a moral, o governante íntegro elaborando leis boas, as leis boas formando governados íntegros. Esta ineficácia ética das leis não impede, no entanto, de se resolver o problema político: basta que o cidadão esclarecido se aperceba de que há interesse em respeitar, pelo menos exteriormente, o direito. Pensamos em Kant, que dirá, mais tarde, que o problema político tem solução até no seio de uma comunidade de demônios, contanto que tenham senso comum.” (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 55-56).

 

2

Página 12 de 39
Você está aqui: Home | Sofistas da Atenas de Péricles