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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

41.2 – A tradução e seu mal radical.

 

É Barbara Cassin quem afirma:

 

Se há um caso que a tradução, assim como a leitura ou a audição, deve necessariamente se fazer interpretação é o da homonímia. Temos o hábito de considerar a homonímia como um puro acidente, uma poeira de dificuldades repartidas diferentemente segundo as línguas e suscetíveis de pregar muitas peças, pela mesma razão que os "falsos cognatos", ao tradutor desatento. Mas, em francês por exemplo, desde que sabemos ler, apercebemo-nos de que a pantufa da Cinderela não era de vidro (verre) mas de pele de esquilo (vair); e falar francês é saber reconhecer sem dificuldade, graças ao contexto, a diferença dos referentes sob a identidade contingente dos significantes ou mesmo das palavras. Espera-se do tradutor, simplesmente, que não seja mais tolo do que todo mundo e que fale a língua.

As coisas se complicam desde que não se considere mais a homonímia como um simples acidente, mas como a essência mesma das línguas e da linguagem. É o caso, de modo paradigmático, para Aristóteles, que se vê forçado a conceber a homonímia, tal como a ilusão transcendental, como um mal que se pode sempre dissipar mas que não cessa de renascer.

Com efeito, o que permite aos sofistas fazer esses raciocínios que deles só têm a aparência é a relação mesma que existe, da forma mais “natural” e a mais “corrente” do mundo, entre as palavras e as coisas:

 

Já que não é possível trazer para a discussão as próprias coisas, mas como utilizamos os nomes, ao invés das coisas, como símbolos, acreditamos que o que se passa com as palavras se passa também com as coisas, exatamente como as pedrinhas quando fazemos cálculos. Ora, não acontece o mesmo, pois as palavras e a quantidade de expressões são limitadas, enquanto as coisas são em número ilimitado. É então necessário que a mesma expressão e uma única palavra signifiquem várias coisas. Assim, do mesmo modo que aqueles que não são hábeis em manipular as pedrinhas são enganados pelos que abem, também em relação ao que se diz, aqueles que não têm a experiência do poder das palavras raciocinam erradamente, seja quando eles mesmos discutem, seja quando escutam os outros. (Refutações sofísticas, l, 1, 165a 6-17).” [Osório diz: com isso Aristóteles arrasa Platão e o seu Crátilo!]

 

(…)

 

O problema não é evidentemente que uma única palavra tenha vários referentes: é evidente que "homem" possa designar ora Cálias, ora Sócrates; mas é que uma única palavra possa, e aparentemente deva, ter vários sentidos. O exemplo das pedrinhas torna mais sensível ainda a diferença entre as matemáticas e a língua: nós (nos) enganamos ao calcular, mas certamente não por causa dos números, pois, com uma quantidade limitada de algarismos, conseguimos efetivamente nomear, sem confusão possível, cada um dos números, que são entretanto em quantidade infinita. Todavia a convenção linguística não funciona tão bem: não chegamos a distribuir o conjunto das letras ou dos fenômenos para garantir a univocidade de cada palavra ou de cada expressão: dito de outro modo, encontramos coisas que têm "um nome em comum enquanto a definição da essência, que corresponde a esse nome, difere" (Categorias, 1, 1a 1-2). O exemplo aristotélico não é então precisamente aquele, acidental, da chave e da clavícula, ou do cão, constelação celeste e animal que late — ainda que em cada vez o acidente revele seu caráter proposital mimético ou metafórico —, mas o da palavra "animal", homonimicamente partilhada pelo homem, esse animal bípede, e a representação desenhada do homem, uma pintura que certamente não respira, mas que nem por isso cessaremos jamais de chamar de homem, mesmo que esse "animal" bípede seja então inanimado.

 

A homonímia, que aparece assim como um fato de estrutura entretanto a linguagem em sua propn. estrutura. Pois falar é, desde o capítulo 4 do livro Gama da Metafísica, "significar algo para si mesmo e para outrem" (1006a21); ora, quer seja o locutor ou a palavra que signifique, para “significar” é preciso sempre, não apenas "significar algo" (ti), mas também "significar uma única coisa" (hen, 1006b 12s.): "pois não significar uma coisa única é não significar nada c, se •s palavras não significam, destrói-se a possibilidade de dialogar uns com os outros e, na verdade, consigo mesmo" (ibid. 1006b7-9).

Se a homonímia se generalizasse, uma única palavra seria suscetível de todos os sentidos e poderia, tal como o om místico, significar todas as coisas: um caso tão extremo se resolve, no fim das contas, por si mesmo, simplesmente porque não há mais linguagem, do mesmo modo que, com a física de Anaxágoras, não há mais física. Inversamente, se alguém decide, por si só, modificar pontualmente a convenção, "como se aquele que chamamos homem, outros chamassem não-homem" (ibid, 10006b 19s.), a dificuldade será mais dele do que nossa: como nota Espinosa no Tractatus theologico-politicus; "ninguém [...] jamais pôde se beneficiar com a mudança de sentido de uma palavra, enquanto há frequentemente benefício com a mudança de sentido de um texto"; pois para que a mudança tivesse êxito, seria necessário ao menos explicar todos os autores que empregaram a palavra no sentido recebido, e respeitar sempre, contra seus próprios hábitos, a nova significação ao falar e ao escrever (Pléiade, Gallimard, 1962, p. 721). Isso significa dizer que toda homonímia arbitrariamente feita é suscetível de ser desfeita por uma nova convenção: "Não muda nada se afirmarmos que 'homem' significa mais coisas, desde que elas sejam determinadas, pois poder-se-ia apor uma palavra diferente a cada enunciado" (Aristóteles, ibid 1006a 34-1006b 2); visto que os sentidos são enumeráveis e determináveis, é com efeito sempre novamente lícito reservar a palavra "homem" àquilo que se define como animal bípede.

 

O único verdadeiro problema resulta das homonímias normalmente inscritas na língua. Certamente, é na verdade sempre possível dissipá-las, elas também por uma convenção melhor, de caráter decididamente nomotético: podemos com razão interpretar a maior parte da filosofia de Aristóteles como uma tal recriação do grego, As categorias, por exemplo, despedaçam uma possível homonímia do verbo "ser", arrolando e orientando a pluralidade desses sentidos sob a hierarquia da essência; elas permitem colocar as boas questões e discernir assim, em cada enunciado, de que sentido único se trata. De forma que ler, com Benveniste, essas categorias de pensamento como categorias de língua - é reconduzir, por meio das ferramentas da linguística comparada, o pollachos legómenon à homonímia, homonímia contingente e particular à língua grega, das quais Aristóteles tem a intenção exatamente de se distanciar. Mas é sem dúvida, também, muito mais radicalmente, mesmo se não é esse o objetivo de Benveniste, constatar que a língua reganha sempre o terreno: por mais que se refine o uso e se distingam os sentidos, isso não impede que a convenção primitiva permaneça, como se fosse o efeito de uma singularidade natural.

O sofista é aquele que se coloca em posição de agir como se a homonímia não existisse: eis aí a boa maneira de se aproveitar dela. Ou ainda: age como se o grego fosse realmente a única língua possível, seguindo nisso as indicações, não apenas dos filósofos, mas da própria língua que nomeia os bárbaros pelo seu blablablá ininteligível. Ou ainda: age como se o légein fosse efetivamente como pretende a língua, de maneira indissolúvel um dizer-e-pensar tal que nenhum pensamento exterior ao dizer esteja jamais em condições de se impor. Isso é particularmente claro nas Refutações sofisticas, obra em que Aristóteles analisa a maneira pela qual um sofista consegue sempre nos colocar em contradição com nós mesmos e dá as receitas para não se deixar aprisionar nisso. A homonímia, que é, vimos, o princípio geral de todas essas pseudo-refutações que são as refutações sofísticas, é, além disso, catalogada como a primeira fonte de uma das duas categorias de refutações: as que se prendem não ao pensamento que se exprime, mas à própria expressão. Assim, para retomar um dos únicos exemplos aristotélicos um pouco mais fáceis de traduzir em francês, fazemo-nos necessariamente refutar quando sustentamos que apenas os que não sabem "apprennent" (aprendem), pois poder-se-ia sempre objetar que os gramáticos "apprennent” (ensinam) os textos àqueles que os recitam para eles (l, 4, liSb 30-32). Uma tal homonímia do estudar e do ensinar no prender — que, à luz da teoria platônica da reminiscência já "ironizada" em refutação no Eutidemo (275d-276c), poder-se-ia julgar profundamente grega — não se dissipa falando-se e ainda menos respondendo-se, segundo as regras da dialética, às questões que nos colocam: ela só se dissipa por um passo para fora da linguagem, passo filosófico ou, pelo menos, metalinguístico. Mas o sofista tem bem o direito de se contentar e falar e em fazer falar: kai légei hò légon, "e aquele que fala, fala", limita-se a constatar Górgias, no final do Tratado do não-ser (Sobre Melisso, Xenófanes e Górgias, 980b 3).

É precisamente esse caráter de algo que não podemos contra-atacar dos sofismas, desde que nos prendamos à língua, que força Aristóteles, em Gama, a um diagnóstico severo e à uma estratégia terrorista: os sofistas "falam por (prazer de) falar" e, na medida em que negligenciam ou recusam-se a se curvar às imposições da significação, quer dizer, da univocidade, é como se não falassem absolutamente. Como se sabe, os sofistas são "semelhantes às plantas". De fato, exigem, para serem convencidos do princípio da não-contradição, uma refutação que os coaja, mas que o próprio Aristóteles julga "impossível" fornecer; ser-lhes-ia necessário "uma refutação do que é dito nos sons da voz e nas palavras": uma refutação, para encurtar, que não considerasse nem o exterior a dizer, o referente, nem o interior a exprimir, a intenção, mas somente o próprio dizer, o significante. O sofista "gorgianiza", quer dizer, prende-se às identidades sonoras, à homofonia que gera as figuras, como se a materialidade significante fosse a dádiva mesma da linguagem, que se trata não de sujeitar e de ultrapassar, mas no máximo de entender e explorar.

[Osório diz: a linguagem para os sofistas deve: (a) considerar o exterior a dizer {o referente}; (b) o interior a exprimir {a intenção} e (c) considerar o próprio dizer {o significante}]. Mas, não esqueçamos Górgias: palavras não são coisas! “Tudo que se vê é o que o discurso diz”, mas palavras não são coisas!. Aqui é onde Górgias arrasa Aristóteles e toda sua empreitada, mesmo que se aceite o jogo do significado].

Assim, é muito evidente que esse tipo de texto seja o tormento do tradutor. Uma epídeixis, uma "prestação" sofística, tanto não pode ser traduzida quanto não pode ser resumida, e pelas mesmas razões: segundo a própria declaração de Górgias em Platão, não há outra possibilidade a não ser reproduzi-la identicamente, reiterá-la diante de outros, até mesmo diante dos mesmos. Sem dúvida, existe aí conjugação das dificuldades tão obscuras e tão profundas da poesia com as tão pontuais e tão exasperantes do jogo de palavras: traduzir Górgias é se debater ao mesmo tempo com Píndaro e com o corpus dos chistes reunidos por Freud.

A transparência da verdadeira tradução é, para Benjamim, antes de tudo, o efeito da "literalidade na transposição da sintaxe", arcada na parede que a sintaxe erige diante da língua do original. Torna-se claro como as coisas se complicam quando nos apercebemos de que a homonímia não toca apenas o sentido das palavras, mas corrói também de maneira direta o sentido das frases: além da homonímia semântica, Aristóteles isola com efeito uma homonímia sintática, a anfibolia. E novamente, a sofística desenvolve as múltiplas possibilidades eventuais de uma sintaxe dada como se fosse um material significante. Desta vez, é quase impossível traduzir para o francês, a não ser abusando de N.d.t. em pé de página, qualquer uma das refutações sofísticas desse tipo propostas como exemplo por Aristóteles; talvez se possa entender que "me desejar a captura inimiga" propõe em conjunto que eu prenda e que seja preso, mas não se poderia traduzir com uma frase o muito significativo sigonta légein, que quer dizer ao mesmo tempo "falar calando-se" (particípio no acusativo masculino plural, atributo do sujeito em elipse de légein) e "dizer coisas mudas" (acusativo objeto, no neutro plural; ver Refutações sofísticas, 4, 166a 12-14; 10 171a 7s., la!71-b2; 19, 177a 20-26).

A suspeita já nos chegara com a homonímia; com a anfibolia, é inegável: trata-se da essência da língua e, em todo caso, da essência da língua grega. Pois as primeiras e as mais fundamentais anfibolias do grego e do latim dizem respeito à, como vemos, liberdade na ordem das palavras: sujeito e objeto, assim como sujeito e predicado, são, mediante certas condições, em particular certas regras no uso do artigo, intercambiáveis de fato e de direito, mesmo se, às vezes indeterminável, o chamado acento do sentido difere.

Pode-se dizer sem risco que um texto que explora um conjunto das possibilidades de homonímia e de anfibolia próprias à sua língua é um texto intraduzível. Ora, o paradigma de tais textos, a crer em Aristóteles, é constituído pelos textos sofísticos.

Um exemplo pode bastar para tornar sensível a dificuldade. Na versão anônima do Tratado do não-ser de Górgias, a demonstração própria ao sofista se anuncia por uma frase que, como tudo indica, está citada expressis verbis: ouk éstin oúte eïnai oúte me elnai (Sobre Melisso, Xenófanes e Górgias, 979s.). Essa fórmula é, ao mesmo tempo, homonímica e anfibólica. Homonímica porque joga, com ouk éstin, com todos os sentidos não-categoriais do verbo ser, que, nesse caso preciso, a acentuação dos manuscritos, aliás tardiamente codificada, não permite mesmo distinguir; éstin, com efeito, pode ser aqui verbo de existência, ou bem cópula, ou ainda, já que em início de frase, um impessoal marcando a possibilidade. A fórmula é não menos anfibólica porque, segundo o sentido de éstin, três construções diferentes são possíveis e tão verossímeis umas quanto as outras; se se trata do verbo de existência, então os dois infinitivos têm função de sujeito: "nem ser nem não-ser existem"; se se trata de cópula, eles são os predicados de um sujeito que pode muito normalmente estar em elipse: "isso" ou "ele não é nem ser nem não-ser"; com a modalidade enfim, os infinitivos tornam-se completivos: "não é possível nem ser nem não-ser". A "tradução" menos ruim, se é que ainda se pode utilizar o termo, servir-se-ia talvez de parênteses como de um álibi, para sugerir a ubiquidade da frase: "(isso) não é (possível) nem ser nem não-ser". Pois, bem entendido, na demonstração de Górgias, nenhum desses três sentidos deve ser excluído, mas eles decorrem, ao contrário, um do outro de forma regular: se "ser" e "não-ser" não têm existência, então não poderiam jamais servir de verbo em nenhuma frase, não se podendo nesse caso dizer de nenhum sujeito que ele é ou que não é.

Desde que se considere seriamente o tratado de Górgias como uma leitura e um contratexto do poema de Parmênides, parece que o equívoco, homonímico e sintático, não é nem um acaso nem um defeito: é o emprego refletido de um recurso da língua, toda a questão sendo a de tornar manifesta a maneira pela qual esse mesmo recurso já é sempre explorado, mas sub-repticiamente, no texto fundador 3. Dependendo do olhar que lançamos sobre elas, a homonímia e a anfibolia devem assim aparecer, seja como a essência pensante de uma língua, seja como seu desnudamento, sua virtuosidade gímnica.

Compreende-se a esse respeito que, no século V, os sofistas tenham seduzido e escandalizado a Grécia inteira: suas prestações são uma quintessência de grego. Para fazer justiça a seu "relativismo", é preciso sem dúvida compreender que o homem é medida — portando, justamente não como o porco do Teetetotambém do sentido das palavras e das frases: a cada um sua significação. Não há nada de deplorável no fato de que, se digo uma coisa, vocês entendam outra; ao contrário, é isso mesmo que nos permite entrar em acordo. A homónoia, o consenso de que falam tanto Górgias quanto Ântifon, é de início e antes de tudo uma homología, identidade de discursos, e mesmo uma homofonia, identidade de sons, que tem como efeito constituir e manter, instante após instante, ocasião após ocasião, a unidade das diferenças constitutivas da cidade e da paz entre as cidades. Para tomar um exemplo recente, quando se perguntou a François Mitterand, durante a última campanha eleitoral, se se deveria acreditar na sinceridade de Gorbachev em relação ao desarmamento, sua resposta — que essa não era a questão, mas que era suficiente prendê-lo ao que tinha dito — foi uma lição de política sofística.

Os textos sofísticos têm assim a grande vantagem de obrigar o tradutor a tomar consciência das dificuldades que apresentam. Mas, como sugere a relação entre Parmênides e Górgias, são sem dúvida alguma as mesmas dificuldades encontradas ao traduzir-se do grego, e sobretudo do "pré-socrático", quer dizer, uma língua já bastante elaborada e entretanto ainda em estado nascente: o imperativo de univocidade, que nos foi legado como tal por Aristóteles, é sem cessar desfeito pelas possibilidades da homonímia e, sobretudo, da anfibolia. Como se sabe, podemos permanecer horas sobre uma frase e uma vida sobre um texto. Os fragmentos dos pré-socráticos, reunidos no início do século por Diels, são enfim felizmente acessíveis ao leitor francês4: por mais criteriosa que seja a versão proposta, esses mesmos fragmentos poderiam ter servido de originais para muitas outras traduções (uma das mais úteis dentre elas sendo talvez a versão francesa da tradução Diels dos fragmentos B ou fragmentos "autênticos") e poder-se-iam conceber notas desenvolvendo, para certos fragmentos canônicos que constituem a base sem cessar reexplorada do pensamento ocidental, uma escolha entre as traduções ao mesmo tempo as mais significativas e as mais divergentes que foram historicamente dadas. É somente nesse ponto que o trabalho de tradução se articula com o da transmissão e a hermenêutica, com a crítica textual. Agimos até aqui como se possuíssemos o texto que se tratava de traduzir: mas possuímos sempre apenas um texto, um resultado, suscetível de ser recolocado em questão, fornecido não somente pelos acasos e as escolhas de transmissão, pelas descobertas da arqueologia, da papirologia, da codicologia, mas também produzido pelas leituras, compreensões e incompreensões de filólogos às vezes excessivamente prontos a adaptar esse texto que editam ao sentido que prevêem. É assim que, para completar, ao menos no que concerne nos textos antigos, as possibilidades da homonímia e as da anfibolia se encontram reduplicadas pelo leque das lições dos manuscritos e das leituras dos editores. Ora, um texto sofístico, por definição heterodoxo, se por milagre chegou até nós, é sempre corrigido, aculturado à univocidade e à não-contradição por gerações de doxógrafos, em seguida por eruditos formados à maneira de Platão e de Aristóteles, em suma, pleno de lugares desesperados; assim é de pleno direito que ele provoca, superlativamente, o desespero do tradutor.” (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 73-81).

 

 

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

41 – Temas correlatos às doutrinas dos Sofistas e 41.1 - Saber - o prazer humano de.

 

É Barbara Cassin quem diz:

 

Aristóteles (…) primeiras linhas da Metafísica: "Todos os homens desejam naturalmente saber. Um sinal disso é o prazer tido com as sensações. Elas agradam por elas mesmas, independente da necessidade, e sobretudo as que nos vêm dos olhos". "Aprender facilmente dá naturalmente prazer a todos os homens; ora, as palavras significam alguma coisa, de forma que todas as palavras que produzem um ensinamento para nós são as mais agradáveis" (1410b 10-12). (Fonte: Ensaios Sofísticos, Barbara Cassin, Tradução de Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão, Edições Siciliano, São Paulo, 1990, p. 242).

 

 

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

40 – Sócrates era um Sofista?

 

No Brasil existe uma charada (adivinha) popular em que se pergunta o seguinte:

 

O que é que tem pé de porco, mas não é porco?

que tem orelha de porco, mas não é porco?

que tem rabo de porco, mas não é porco?

que tem língua de porco, mas não é porco?

que tem costela de porco, mas não é porco?

 

A resposta é: Feijoada!

 

Há quem tente separar Sócrates dos demais Sofistas, mas parece que a charada acima se aplicaria a Platão, o maior insistente nessa separação: Sócrates tem tudo de Sofista, mas não é um sofista, para ele!

O sábio Aristófanes podia ser um aristocrata conservador, mas não era um idiota, um tolo, todos reconhecem. Suas peças comprovam isso, assim, como poderia, como chega-se a afirmar, que ele errou ao caracterizar Sócrates como o caracterizou na sua peça As nuvens?

Ele sabia do que estava falando, tanto assim que as acusações que lança contra Sócrates, a de corromper a juventude e cultuar novos deuses, serão as mesmas que constarão da acusação de Anito, Meleto e Licón contra ele e que serão aceitas pelos jurados que o condenam!

Só aí temos inúmeras pessoas afirmando que Sócrates era um Sofista também: Aristófanes, Anito, Meleto e Licón e as centenas de jurados que o condenaram, dentre os quinhentos que compunham o júri popular!

Como Aristófanes era um cômico e Platão tem a fama de ser sério, já se disse que, no caso de Sócrates, o cômico Aristófanes deve ser levado a sério e o sério Platão deve ser tido por cômico!

 

Enquanto não conseguirmos levar Aristófanes a sério e Platão comicamente, não conseguiremos compreender nenhum deles. Apenas a nossa pedanteria arrogante nos leva a ignorar as incontáveis alusões de Platão a Aristófanes. Para nós, acadêmicos, não podem, pura e simplesmente, ser importantes. O professor Platão só pode falar com os seus colegas professores. A minha resposta é que temos de olhar para onde Platão nos diz para olharmos e não para onde julgamos que devemos olhar.”. (Fonte: Gigantes e Anões, Ensaios, 1960-1999. Allan Bloom. Publicações Europa-América LDA, 1990, p. 178-193.).

 

Acrescentamos, quanto a Aristófanes, um segundo fato que põe por terra a acusação de que ele enganou-se quanto a Sócrates.

Todos citam apenas a peça As nuvens como sendo aquela na qual Aristófanes equivocou-se quanto à figura de Sócrates. Entretanto, quem ler outra peça do mesmo autor de nome As rãs, encontrará a seguinte afirmativa:

 

Feliz o homem totalmente sábio! Milhares de provas atestam a veracidade desta afirmação. Este, por ter sido sábio, voltará a ver a sua casa, o que é uma vantagem para seus concidadãos, para seus parentes e seus amigos; ele deverá tudo à sua sapiência. É bom, então, não ficar perto de Sócrates conversando com ele, desdenhando a música e as partes mais importantes da arte trágica. É loucura perder tempo em conversas ociosas, em sutilezas frívolas". (As rãs. Aristófanes. Tradução de Mário da Gama Kury. Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 2004, p. 273-274).

 

Aristófanes era inteligente demais para se enganar duas vezes com e sobre Sócrates (As nuvens e As rãs) e seu público tinha conhecimento bastante para saber do e sobre o que ele falava quando se referia ao mestre de Platão, basta ver o número de notas de são escritas na atualidade para que o leitor moderno entenda o enredo das peças encenadas em Atenas nos Séculos VI e V antes da era atual, e que estavam implícita no conhecimento do expectador naquele momento, pois é inconcebível que a peça parasse em sua continuidade para que alguém explicasse a questão sobre a qual ela estava tratando, ou apresentasse as pessoas sobre as quais falavam!

 

E de que os Sofistas somos acusados? Duas são as acusações básicas:

 

a) Cobrarmos por nosso trabalho,

b) Nosso ensinar não ser verdadeiro.

 

É de fazer rir tais absurdos em relação a todos os Sofistas, mas vejam como as acusações são afastadas quando se trata de Sócrates:

a) Sócrates não trabalhava e era pobre, além de ser pai de filhos e ter esposa, Xantipa. Quem sustentava ele e seus dependentes?

 

Maltrapilho e desgrenhado, nunca tinha dinheiro nem se preocupava com o problema de saber de onde viria sua próxima refeição”. [Fonte: O sonho da razão. Anthony Gottlieb. Tradução de Pedro Jorgesen Jr. Rio de Janeiro. Difel, 2007, p. 168).

 

Os demais Sofistas não podiam cobrar por seus ensinamentos, mas Sócrates podia receber?

Não é de fazer rir.

Mesmo que todos os pensadores que os antecederam fossem ricos, dos Sofistas não podemos dizer o mesmo, embora Protágoras, particularmente, não fosse um miserável. Como deveriam eles fazer, então, para comer, vestir e morar?

b) Se não ensinavam um “conhecimento verdadeiro”, pergunta-se: e qual conhecimento é o verdadeiro?

Se é que ele existe, nenhum, até agora foi concluído! Todas as questões estão em aberto. Não existe nenhuma verdade, nenhuma certeza estabelecida até hoje que não seja questionável!

Quem ensina o verdadeiro, se ninguém sequer é capaz de saber o que ele é?

Jonathan Wolff é categórico em afirmar:

 

Afinal de contas, observa-se frequentemente, ninguém pode estar absolutamente certo de coisa alguma. Praticamente todas as afirmações de conhecimento — seja ele político, científico ou filosófico — são falíveis”. [Osório diz: ou seja, não existem verdades!]. Fonte: Introdução à Filosofia Política, tradução de Maria de Fátima St. Aubyn, Gradiva, Lisboa, 2004).

 

Hoje apenas os fanáticos religiosos ainda se aferram na possibilidade de existência de verdade!

 

"As grandes ideias não aparecem nunca de súbito. As que têm a verdade por base contam sempre com precursores, que lhes preparam parcialmente o caminho. Assim aconteceu com as ideias cristãs, que foram pressentidas muitos séculos antes de Jesus e dos Essênios, e das quais foram Sócrates e Platão os principais precursores.".(Fonte: Kardec ao apresentar a doutrina de Sócrates e Platão em O Evangelho Segundo o Espiritismo).

 

E os atuais professores que recebem para ensinar, são Sofistas também? Qual a diferença entre eles e os Sofistas Atenienses, nesse quesito?

Pensem e depois me digam qual foi a sua conclusão.

c) Sócrates defendia a doutrina do raciocínio forte e fraco (n’As nuvens, de Aristófanes), além de outros conhecimentos técnicos típicos dos Sofistas. Se Aristófanes tinham conhecimento dessas doutrinas, como poderia confundir a pessoa de Sócrates, conhecido de todos, com um Sofista, se ele não o fosse um deles também. E como enganar-se duas vezes?

d) Sócrates tinha por discípulos (e amigos) Antístenes e Crítias, sabidamente tidos por Sofistas, embora este último, por ser rico, era tio de Platão, e sobre quem ele nunca fala, não cobrasse por seus ensinamentos.

e) Conclui-se, pelos diálogos platônicos, que Sócrates era amigo de Protágoras, Górgias, Hípias e Pródico.

f) A amizade com Protágoras teria vindo por intermédio de Aspásia, “etária” (ou cortesã) de Péricles, com quem ela teve um filho. Ela era muito influente no círculo filosófico e político de Atenas, promovia reuniões literárias em sua casa e participava do debate político da época, embora não se tenha conhecimento da participação de Sócrates nessas reuniões. Significaria que ele não tinha tanta importância para merecer um convite?

Não sabemos quem era Sócrates! Apenas sabemos “o que dizem que ele era”, mas há muitas contradições quando à sua doutrina, especialmente entre Aristófanes e Platão.

Seus discípulos foram os mais perniciosos que comandaram Atenas, especialmente Alcebíades, que causaram-lhe os maiores males. (Fonte: Xenofonte, Memoráveis, l, 2, 12 e segs. Fragmentos, 244).

Seu discípulo mais famoso, Platão, tinham um amor irresistível pela tirania, tanto assim que fez viagens à Siracusa para ajudar o tirano local, Dionísio, no episódio que ficou conhecido como “síndrome de Siracusa”, ou o amor pelo tirano.

Assim era Sócrates para Platão: tinha tudo de sofista, mas não era sofista!

Mas essa visão platônica sobre seu mestre não resiste a um estudo menos apaixonado ou interessado em que assim seja: que Sócrates não é um sofista.

Seria Platão um frustrado, por ciúmes amorosos do mestre por seus relacionamentos com os discípulos de Antístenes e Alcibíades (Banquete)?

Tentou Platão ser para Siracusa o que Alcibíades foi para Atenas?

Seu tio Crítias, que governou como um dos Trinta tiranos (governo imposto por Esparta em Atenas), além de participar do convívio com Sócrates, foi, também, discípulo dos sofistas, sem que ele mesmo, em sentido restrito, fosse um sofista, justamente por não ser um “professor”, não cobrar por seus ensinamentos. (Fonte: Fragmentos, 239). Plãto, em nenhum de seus diálogos, se refere ao tio, a despeito da figura de proa que ele foi.

Platão tinha dois irmãos, Gláucon e Adimanto, que são personagens de seus diálogos, a demonstrar que também eram filósofos ou cultuavam a filosofia, amavam o saber.

Pode-se dar qualquer interpretação, devida ou não, aos Sofistas, como fazem Platão e Aristóteles, pois ambos também com eles não conviveram, ou pouco conviveram, apenas conheceram seus escritos, ou, pelo menos não se tem notícias de que os Sofistas tenham respondido as questões trazidas pelos dois nominados.

Sócrates, essa figura enigmática que, por não ter deixado nada escrito, não se sabe até onde vão/foram seus pensamentos a fazer fronteira com o que Platão e Xenofontes (seus discípulos) dizem que ele pensava.

Fernando Antonio Cabral Pinto, tem livro muito interessante no qual busca separar o pensamento de Sócrates daqueles dos seus seguidores, trata-se de “Sócrates, um filósofo bastardo”. Ademais, diz o Professor:

 

Sócrates pertencia ou não ao círculo de Péricles? [...] Lembrei-me de algo que pode contribuir para uma resposta afirmativa: No diálogo Menexeno, que trata o tema das orações fúnebres (recordar a célebre oração fúnebre de Péricles relatada por Tucídides), Sócrates declara ter sido iniciado neste tipo de discursos por Aspásia, companheira de Péricles. O diálogo é escrito por Platão com intenção crítica (já não é o jovem autor da Apologia, mas o reconvertido à militância antidemocrática que o escreve). Sócrates reproduzirá uma oração composta por Aspásia, ela que também teria composto a oração fúnebre proferida por Péricles. Uma vez que Platão descreve o espaço social dentro do qual se moviam os intelectuais e os políticos contemporâneos de Sócrates, e sendo esse espaço necessariamente limitado, é legítimo deduzir-se que as mesmas pessoas (amigos e críticos) se cruzavam todos nos mesmos lugares, tanto públicos como privados. Daí poder deduzir-se também, sem grande risco de erro, que Sócrates fazia parte do círculo de Péricles”.

 

Kerferd diz:

 

Fica assim claro que Sócrates era geralmente considerado parte do movimento sofista. Mediante a sua notória amizade com Aspásia, é provável que estivesse em contato bem íntimo com o círculo de Péricles, e seu impacto intelectual e educacional sobre os jovens ambiciosos em Atenas era tal que foi, nessa função, corretamente considerado sofista. O fato de não receber pagamento não altera em nada a sua função”. [Osório diz: E como se sustentava e aos seus familiares esse homem pobre?].

 

Embora, não privasse da amizade ou admiração do estadista, como Protágoras, por exemplo

 

Diz mais o citado autor:

 

Foi no caso do julgamento dos generais que na batalha de Arginusa, 406, impedidos pela tempestade, não recolheram os mortos a fim de lhes ser dada sepultura. Tanto bastou para que os adversários do regime democrático, esquecendo a importante vitória que aqueles estrategos, entre os quais se contava um filho de Péricles, tinham acabado de alcançar, reclamassem para eles a condenação à morte por sacrilégio. Há sobre este episódio coincidência nas referências que a ele fazem Platão (Apologia, 32 b) e Xenofonte, este na dupla qualidade de historiador (Helénicos, I, VII, 15) e de discípulo de Sócrates (Memoráveis, I, I, 18 e IV, IV 2). Sócrates, na altura um dos cinquenta prítanes em exercício e ocupando o lugar de presidente-, foi a única voz que se ergueu contra as irregularidades então cometidas e contra a sentença de morte proferida por uma assembleia dominada pelo fanatismo religioso que alguns oligarcas reacionários, entre os quais Teramene, souberam instrumentalizar” (Fonte: Sócrates, um filósofo bastardo. F. Cabral Pinto. Livros Horizonte. Lisboa. 1985, p. 44-45).

 

A se crer em Platão e Xonofontes, Sócrates, tido como o homem mais sábio do mundo, seria o mais sábio de Atenas, consequentemente o mais sábio, no século de Péricles, de quem foi contemporâneo e contemporâneo. Teria, segundo dizem aqueles, se recusado a participar de julgamento de generais atenienses que deixaram de recolher corpos de outros militares atenienses lançados ao mar durante a batalha de Arginusa. Entretanto, lendo-se a obra de Tucídides (História da guerra do Peloponeso), na qual é narrada a referida batalha e o citado julgamento, não é feita nenhuma (nem uma) única citação ao personagem Sócrates! Nem mesmo quando Tucídides fala sobre o discípulo de Sócrates Alcibíades cita o mestre! O que justificaria a omissão de personagem tão conhecido, ilustre e participante da vida política ateniense?

E os juízes que o condenaram?

 

Sabendo que os juízes estavam predispostos contra ele devido às calúnias de Aristófanes, Sócrates tentou corrigir essas falsas impressões. Ele não é, diz, um homem que ensina por dinheiro como os "sofistas" profissionais com quem Aristófanes o confundiu. Parece que isso era verdade: Sócrates não cobrava. Mas pedia que o convidassem para a ceia. Aceitava a hospitalidade alheia em barganhas tácitas por sua conversação instrutiva e aparentemente não tinha qualquer outro tipo de trabalho. A forma como ganhava a vida não era, na verdade, diferente da dos sofistas - não que tais modos de vida pudesse ser hoje considerados intrinsecamente suspeitos. Tentou também rebater a calúnia de que ensinava às pessoas que não tinham razão a ganhar discussões com trapaças. Longe disso, protestou, pois não sabia o suficiente para ensinar nada a ninguém”. (O sonho da razão, Anthony Gottlieb, tradução de Pedro Jorgesen Jr., Rio de Janeiro, Difel, 2007, p. 177). [Osório diz: Bingo!].

 

Aliás, a maior prova de que Sócrates, muitas vezes, parece não ser o Sócrates tão cultuado por todos, está no fato de que ele, durante seu julgamento, que ele reputava injusto, não foi capaz de convencer seus juízes da sua inocência, de provocar nestes o conhecimento que ele afirmava ser capaz de fazer qualquer um parir. Para este caso sua maiêutica não funcionou, decididamente!

Por fim, Sofista não explica, apenas complica! Daí Sócrates ter sido um sofista, já que apenas perguntava, sem nunca explicar, o que Platão levou a vida toda “sofisticamente” negando!

O Cristianismo, por opção, irá eleger Sócrates como o “cristão antes de Cristo”, e a partir disso aumentará as distorções de Platão para com os Sofistas.

O cristianismo santificou Sócrates, como, contraditoriamente, fez com muitos dos seus sanguinários santos!

 

Durante os doze primeiros séculos da era Cristã, o Timeu foi a base de toda a cosmologia ocidental. Do século da era cristã em diante, e até que fossem traduzidas as obras científicas de Aristóteles, dentre outros, no século XII, a única descrição sistemática da natureza em geral disponível provinha de versões parciais desse livro, em latim. A popularidade de alguns dos diálogos se devia ao fato de que o Deus do Timeu podia, numa emergência, ser interpretado como o Deus do Gênesis. Lendo-se, porém, Platão sem antolhos bíblicos, vê-se que isso requeria um bocado de imaginação interpretativa; mas os cristãos estavam sempre prontos para fazê-lo. As principais diferenças entre o Deus de Platão e o Deus bíblico são as seguintes: o Deus de Platão não é a coisa mais importante do Universo (as Formas sim, e é Deus quem tem de acompanhá-las); ele não é o único Deus, pois tem muitos assessores; ele não é onipotente, tem de cooperar com as forças naturais; ele não criou o Universo a partir do nada, usou materiais já disponíveis; ele não tinha nenhum interesse particular nas pessoas - na verdade passou a tarefa de criá-las aos seus subordinados para mantê-los ao alcance da mão”. (O sonho da razão, Anthony Gottlieb, tradução de Pedro Jorgesen Jr., Rio de Janeiro, Difel, 2007, p. 253-254).

 

Eis aí a simbiose entre Platão e cristianismo!

Platão, filho de Ariston, dedicou-se primeiramente à poesia e compôs versos heroicos. Em seguida ele os queimou, como fazendo pouco caso deles, depois que, comparando-os com os de Homero, sentira quanto os seus eram inferiores...” (Fonte: Histórias diversas de Eliano, Martins Fontes, São Paulo: 2009, p, 73).

Passou, então, acrescente-se, a escrever suas peças, em forma de diálogos, no que, aí sim, foi mestre, mas, costuma-se esquecer que são apenas peças teatrais, tanto assim que ele, não tendo como falar mal dos Sofistas, criou o personagem Cálicles, que apenas ele conhecia e deu notícia!

Até o que se vê na figura de Sócrates poderia ser questionado. Veja-se:

a) Já era velho o bastante (cerca de 70 anos), em 399 (O sonho da razão, Anthony Gottlieb, tradução de Pedro Jorgesen Jr., Rio de Janeiro, Difel, 2007, p. 173), quando escolheu a forma de sua morte;

b) O maior debatedor/convencedor não foi capaz de fazer a própria defesa salvadora;

c) Tucídides não lhe dedica uma palavra, a despeito dele “ser um herói de guerra e o homem mais famoso (sábio) de Atenas;

d) Participou de guerras, portanto, matou pessoas, por quê?

Voltemos a Tucídides:

Tucídides nasceu cerca de 460 e 455 e morreu por volta de 404 antes da era atual.

Sócrates, por sua vez, nasceu por cerca de 470/469 e morreu em 399, antes da era atual.

Tucídides é considerado “o pai da história”, e sua única obra preservada, "A história da Guerra do Peloponeso", é fenomenal mesmo.

É riquíssima em detalhe das batalhas e em aspectos das vidas de alguns personagens históricos, bem como da vida da própria cidade de Atenas, quando descreve a peste, por exemplo.

Antífon (ou Antifonte), os sofistas, Péricles, Alcibíades etc., são citados por Tucídides na referida obra.

Sócrates, segundo se diz, foi tido como “o homem mais sábio da Grécia”, pelo oráculo de Delfos.

Entretanto, o que me chamou a atenção ao ler “o pai da história”, foi constatar que ele não faz uma única referência a Sócrates! Por quê?

O único Sócrates citado por Tucídides é “Sócrates filho de Antígenes”! O famoso filósofo era filho de Sofronisco.

E por que deveria citá-lo? Eles foram contemporâneos. Sócrates era, afinal, o homem mais sábio da Grécia? E, segundo Platão, “Sócrates combateu na batalha de Délion onde salvou a vida de Alcibíades.”. Tucídides, que narra a referida batalha não cita o filósofo, entretanto.

Alcibíades sim, é citado inúmeras vezes!

Deixemos a resposta para os especialistas.

Por todo o exposto, não temos dúvidas em afirmar que Sócrates era também um Sofista, nos mesmos moldes de Protágoras – possivelmente seu amigo, pois conhecido com certeza, pois é a ele que recorre o jovem Hipócrates quando vai pedir-lhe que interceda junto a este para que ele o aceite como aluno –, Górgias e todos os demais. Mas Kerferd põe uma pá de cal sobre essa discussão ao sustentar:

 

Um aspecto especial do sofisma é identificado, então, como um tipo de exame verbal chamado Elenchus (refutação lógica), que educa purgando a alma do vão conceito de sabedoria. O que, exatamente, Platão está tentando transmitir aqui tem sido tema de discussão, mas parece que ele considera essa função, essencialmente negativa, um dos menos indesejáveis resultados da atividade sofista, quando a rotula de "a sofística que é de família nobre", presumivelmente para distingui-la de outros aspectos das atividades dos sofistas [Osório diz: isso casa perfeitamente com o Sócrates sofista!].

Como vimos, a partir de outro testemunho, antes de citar a passagem de Fedro, o método de falar brevemente estava muito claramente relacionado, por Sócrates, ao método de pergunta e resposta (ver Prot. 329b3-5,334d4-7,335a6, bl-2) — de fato, é de se perguntar como poderia ter sido diferente, sobretudo com um sofista, o menos inclinado, entre todos os homens, a querer falar brevemente, na discussão, e depois ficar calado [Osório diz: Kerferd está dizendo que Sócrates era sofista?]. Consequentemente, não é plausível a sugestão6 de que a brevidade no discurso de Protágoras e Górgias era simplesmente um estilo lacônico, "de pôr uma coisa no menor número possível de palavras", e não uma técnica de investigação. No mínimo, se não era uma técnica de investigação, era certamente uma técnica de argumentação e de ensino [Osório diz: boa defesa dos Sofistas por Kerferd].

Eis um assunto que, para alguns, oferece muita matéria a ser discutida. Pois a técnica em questão é a base do que conhecemos como a tradição socrática em educação; na realidade Diógenes de Laércio recorda a tradição segundo a qual Protágoras foi o primeiro a desenvolver o método socrático de argumentação [Osório diz: o antes veio depois! Não seria que Sócrates desenvolveu o método protagórico?]. O que foi considerado uma tentativa de roubar de Sócrates o crédito por esse feito suscitou, talvez e inevitavelmente, forte sectarismo. É o que vem à tona, muito claramente, na discussão de Henry Sidgwick. A seu ver, se Protágoras tivesse realmente inventado a disputa metodológica de perguntas e respostas curtas, seria "absolutamente incrível” que pudesse jamais ser representado assim como o representa Platão no diálogo que leva o seu nome. Ele estava a pensar que a arte de disputa, mais tarde atribuída aos sofistas em alguns dos diálogos de Platão, tais como o Eutidemo e o sofista, originou-se inteiramente com Sócrates, e que ele é totalmente responsável ao menos pela forma dessa “segunda" espécie de sofística. [Osório diz: Sócrates seria segunda sofística!!!]

Essa opinião é frequentemente citada com aprovação, seja com ou sem restrições8. Que eu saiba, a mais cuidadosa discussão recente dessa questão é a de Norman Gulley. Ele tem consciência, eu diria, de que a opinião de Sidgwick simplesmente não se sustenta, e que os sofistas realmente desenvolveram um método de argumentação por pergunta e resposta. Esta, eu diria, é a única opinião possível com base no testemunho que temos. Mas Gulley se sente obrigado a reforçar a conclusão o mais possível, argumentando da seguinte forma: o procedimento dos sofistas era provavelmente um desenvolvimento bastante tardio, influenciado, na sua formulação, pelo método de exame por perguntas e respostas de Sócrates. É provável que qualquer elemento de questionamento no método de Protágoras fosse um elemento quase incidental, e tivesse uma importância mais dramática do que filosófica. Portanto, conclui ele, seria mais prudente seguir Platão e chamar o método de Sócrates de "dialético" em contraste com o método "erístico" dos sofistas. [Osório diz: quem disse que em filosofia não existe o jeitinho brasileiro?]

O contraste entre os termos "dialética" e "erística" será discutido mais adiante. Quanto ao resto das controvérsias mencionadas acima, simplesmente não há nenhum indício, nada que possa sugerir que o método de Protágoras, e dos outros sofistas, fosse posterior ao de Sócrates. Mas temos motivo para associar o método de Protágoras com a sua doutrina dos Dois Logoi, um oposto ao outro. De fato, Platão, no Sofista, numa passagem a ser discutida logo mais (232b), destaca um aspecto como distintivo de todos os sofistas como tais, a saber, que eles eram Antilogikoi, que opunham um logos a outro. Isto significa que o que estamos chamando de método de Protágoras tem fundamento na própria teorização de Protágoras, e isso certamente sugere que é mais provável que o método seja mesmo dele do que simplesmente de Sócrates. Portanto, a seguinte esquematização do “método de Protágoras" tem considerável plausibilidade, embora seus detalhes vá um pouco além dos testemunhos: (1) um estilo de exposição formal seja na preleção ou no manual, (2) troca oral num pequeno grupo de discussão informal, e (3) a formulação antitética de posições públicas e o estabelecimento de princípios a serem seguidos pelos membros do grupo. O que podemos dizer com certeza é que temos todos os motivos para atribuir a Protágoras o uso de um método tutorial para suplementar exposições esteriotipadas, e que não há razão para supor que isso se tenha originado com Sócrates. [Osório diz: o método socrático é protagórico]

Por isso, para resumir, eu diria que em certo sentido o problema está longe de ser tão importante quanto tem parecido. O método socrático, mesmo que possa ter se originado com Sócrates, não obstante originou-se a partir de dentro do movimento sofista, porque o próprio Sócrates fazia parte desse movimento [Osório diz: Sócrates era sofista]. Uma vez reconhecido que outros sofistas, além de Sócrates usaram, de fato, o método de pergunta e resposta, e isso certamente temos de reconhecer, então o grau de originalidade de Sócrates e o grau em que ele foi influenciado por outros sofistas são, ao mesmo tempo, uma questão sem resposta e também de importância subordinada, sob todo e qualquer ponto de vista que não seja o do sectarismo socrático. [Osório diz: para o sectarismo socrático tudo é socrático!]

A resposta de Protágoras, dada por Platão (Prot. 318d7-319a2), é esta:

 

Quando Hipócrates vier a mim, não será tratado como seria se fosse a qualquer outro sofista. Pois os outros causam danos aos que são jovens [Osório diz: disputa entre sofistas! Daí Platão fazer do Sofista Sócrates o sofista diferente de todos os demais]; quando saem dos estudos especializados, eles os pegam outra vez contra a sua vontade e os lançam de novo em estudos especializados, ensinando-lhes cálculos matemáticos, astronomia, geometria, música e literatura — e ao dizer isso, olhou para Hípias —, mas se vier a mim ele não estudará nada mais além daquilo que veio aprender. E o assunto é boa política: em negócios particulares, como governar sua própria família do melhor modo possível; e, nos negócios públicos, como falar e agir mais eficazmente nos negócios da cidade. [Osório diz: o que Protágoras se propunha a ensinar].

 

Uma questão que, sabemos, foi de grande interesse durante todo o período era o problema da quadratura do círculo, que preocupava Anaxágoras (DK 59A38) e que Antífon afirmava ter descoberto como fazer pelo método da exaustão. Temos sorte de ter um relato minucioso de sua proposta, preservado por Simplício (DK 87B13). O método, é claro, está baseado num engano, e Aristóteles podia, com razão, afirmar que ele não está baseado em princípios geométricos sólidos. Não obstante, era uma tentativa de resolver o problema [Osório diz: ninguém condena os “doutores da igreja” por discutirem quantos anjos cabem na cabeça de um alfinete]. Ao próprio Hípias se atribuía a descoberta de uma curva, a quadratrix, usada na tentativa de fazer a quadratura do círculo, e também a trissecção de um ângulo. É natural supor que quando, no Mênon, Sócrates passa a obter respostas de um menino escravo, por meio de um diagrama, sem dúvida desenhado na areia, ele esteja seguindo um método bem conhecido de ilustrar problemas geométricos com desenhos [Osório diz: com isso, não se pode dizer que Sócrates não conhecia física, como se diz para combater Aristófanes em As nuvens]. Que havia discussões geométricas nos círculos sofistas está bem atestado pela observação casual de Sócrates, naquele diálogo (85b4), dizendo que a linha desenhada de canto a canto através de um oblongo é chamada de diagonal pelos sofistas. Como esta é apenas a segunda vez que a palavra diametros, em lugar de "diagonal", é encontrada em grego (a primeira vez é em Aristófanes, As rãs 801), é provável que a palavra fosse um termo técnico relativamente novo e pouco familiar — na verdade, não é impossível que a palavra tivesse, realmente, sido inventada por um dos sofistas. No caso da astronomia, temos uma prova muito forte no Nuvens de Aristófanes. Aí, Pródicos é descrito como um tipo de “sofista de ar superior” (meteorosophistes) e Sócrates é mostrado num palco, balançando-se num tipo de cesto que lhe possibilita ver mais claramente os objetos no céu que ele está ocupado em contemplar. [Osório diz: ninguém questiona a descrição de Pródico, já a de Sócrates...]

Diz-se, de vez em quando, que os sofistas simplesmente não estavam interessados em especulações físicas. Se excluirmos pensadores como Empédocles, Anaxágoras e Demócrito das fileiras dos sofistas, então é verdade que nenhuma contribuição teórica importante veio do resto. Mas é igualmente claro que eles de fato conversavam regularmente sobre questões físicas. O interesse por questões físicas, tanto nas discussões como nos seus escritos, é de fato atestado por Cícero (DK 84B3) em relação a Pródicos, Trasímaco e Protágoras. Xenofonte procura defender Sócrates e o faz afirmando que Sócrates nem mesmo falava sobre os tópicos discutidos por muitos dos sofistas, a saber, a natureza do universo, como surgiu o cosmo, e as leis essenciais que governam os corpos celestes, argumentando que os que pensavam a respeito dessas questões tinham perdido o juízo (Mem.I,1.11). Aqui Xenofonte está apelando, sem dúvida, para o testemunho do Fédon para defender Sócrates contra a ideia, oriunda de As nuvens, de que ele estava interessado em ciências físicas. Mas ele de fato afirma que Sócrates era mais ou menos o único a evitar tais tópicos [Osório diz: interessante essa defesa contra Aristófanes. Xenofonte é posterior à Platão na escrita, aquí ele se vale do Fédon!]. Sexto Empírico atribui a Protágoras uma doutrina de emanações físicas semelhante à de Empédocles e dos atomistas (DK 80A14), e Êupolis, o poeta cômico, o satirizou por seu interesse por questões físicas (DK 80A11). Górgias também estava interessado na teoria de Empédocles sobre poros e emanações (DK 31A92 e 82B5). Parece que ele teria dito que o sol era uma massa incandescente (DK 82B31) e foi representado, no túmulo de Isócrates, fitando uma esfera astronômica (DK 82A17). De Pródicos se diz que discutiu os quatro elementos identificando-os com deuses e também com o sol e a lua como a fonte da força vital em todas as coisas, qualificando-se, assim, para um lugar ao lado de Empédocles e Heráclito (Epifânio, Adv. Haeres. III, 2.9.21 = Diels, Doxography Graeci, 591). Há, provavelmente, uma referência às suas teorias em Aristófanes, Os pássaros 685ss. Além disso, foi-lhe atribuída, por Galeno, uma opinião particular sobre a natureza do catarro (DK 84B4). [Osório diz: o único sofista a não se interessar com o conhecimento que se derramava ao seu redor era Sócrates!]

O Dissoi Logoi é um texto anônimo encontrado no fim dos manuscritos de Sexto Empírico. Escrito num tipo de dialeto dórico, começa com as palavras: "duplos argumentos são enunciados na Grécia por aqueles que filosofam, concernentes ao bom e ao mau" [Osório diz: “por aqueles que filosofam”! Engraçado isso!!!], e o título moderno é simplesmente tirado das primeiras palavras iniciais. Foi composto no final da Guerra do Peloponeso. A inferência de que deve ter sido escrito logo depois do seu término baseia-se meramente na incompreensão do que é dito em I, 8, onde as palavras "os acontecimentos recentes primeiro" simplesmente significam que ele se inicia com a Guerra do Peloponeso, indo de volta ao passado para as primeiras guerras. A natureza da obra é curiosa, e há quem pense que represente as anotações de um prelecionador ou, possivelmente, notas tomadas por um ouvinte. Sua estrutura básica consiste claramente em colocar lado a lado argumentos opostos a respeito da identidade, ou não-identidade, de termos morais ou filosóficos aparentemente opostos, como bom e mau, verdadeiro e falso. Como isso é uma aplicação do método de Protágoras, leva a pensar que esteja baseado no Antilogiai daquele sofista. Mas essa conclusão não é válida, porque — como será argumentado neste livro — o método de Sócrates era de fato o método do movimento sofista todo [Osório diz: Nossa! Que confissão!]. Nem se pode atribuir o texto a qualquer determinada fonte de inspiração.

A idéia mesma de incluir Sócrates como parte do movimento sofista é, no máximo, um paradoxo e, para muitos, um absurdo. Platão procura apresentar Sócrates como o arquiinimigo dos sofistas e de tudo o que eles representavam. Pareceria que o fosso entre Sócrates e os sofistas tem se tornado, através dos séculos, ainda mais largo e intransponível, na medida que Sócrates se tornou um símbolo e um chamado de arregimentação [Osório diz: pelas religiões?]. Ele tem sido muitas vezes considerado como sobrepujado em grandeza moral somente pelo fundador do cristianismo e como encarnando, em sua própria vida e personalidade, tudo o que há de mais nobre e mais valioso nas tradições intelectuais da civilização ocidental.

Entretanto, Sócrates era um ser humano vivendo num determinado período de tempo [Osório diz: Kerferd tentando trazer Sócrates para a terra!]. Ele só pode ser compreendido se visto no contexto de seu próprio mundo contemporâneo. É assim que Platão o retrata, vivendo naquele mundo, e participando vivamente nas controvérsias do século V com adversários tais como Protágoras, Górgias, Pródicos e Hípias. Além disso, podemos dizer com alguma certeza que Platão não se convencia de que os argumentos desses adversários tivessem sido adequadamente refutados e sentia que era tarefa sua desenvolver uma visão mais completa da realidade a fim de chegar ao tipo de respostas exigidas [Osório diz: Platão sabia que Sócrates não foi capaz de refutar os Sofistas, tanto assim que o abandonou e tentou, ele próprio refutá-los].

Mas isso, ou alguma outra coisa, nos dá motivo para pensar que Sócrates fosse um sofista? Quero sugerir que, pelo menos em parte, nossa resposta a essa pergunta deveria ser sim. Em primeiro lugar não há dúvida nenhuma de que ele era considerado como tal pelos seus contemporâneos, inclusive por Aristófanes quando se divertiu às suas custas, em As nuvens, em 423 a.C. Mas há um problema ao citarmos Aristófanes, porque em As nuvens Sócrates é retratado como diretor de uma escola onde os alunos são internos, e Sócrates é pago para ensinar. Há outras diferenças fundamentais, além desses dois pontos, entre o retrato de Aristófanes e o modo como Sócrates é descrito por Platão e Xenofonte. Em Aristófanes, por exemplo, Sócrates é descrito como engajado em especulações físicas, e no Apologia de Platão ele nega esse interesse [Osório diz: cremos que Aristófanes está certo, pois Sócrates discutia qualquer terma, inclusive especulações físicas, e para tal discussão é necessário estudá-lo. Ademais, Sócrates era antenado com os ensinamentos dos filósofos que o antecederam]. Não é plausível dizer simplesmente que Aristófanes estava certo e Platão e Xenofonte estavam errados, e não é muito mais plausível dizer que ambos os relatos estão certos, mas são verdadeiros somente em relação a diferentes estágios da vida de Sócrates. Devemos concluir que, pelo menos até certo ponto, Aristófanes está distorcendo o retrato, ao atribuir a Sócrates características que pertencem aos sofistas em geral, mas que não pertenciam a Sócrates. Até certo ponto, sim, mas até que ponto? [Osório diz: ver a peça As rãs, também de Aristófanes, onde o Sócrates também é um “enganado”, mais uma confusão de Aristófanes, que era “burro demais para errar duas vezes”!].

A seção "autobiográfica" do Fédon (96a6-99d2) é prova clara de um interesse antigo de Sócrates por ciência, e consta que ele, ao enfrentar a morte, passou a sua última hora discutindo a estrutura geológica da terra (Fédon 108d2-113c8). Já no século V ele foi associado ao filósofo físico Arquelau, por Íon de Quios (DK 60A3), que disse que Sócrates viajara com ele para Samos. A acusação formal de impiedade feita com sucesso contra Sócrates, em 399 a.C., alegava que ele era culpado de não aceitar os deuses que a cidade aceitava, de introduzir outras divindades estrangeiras e de corromper os jovens. Platão, no Apologia (19b2-cl, 23d5-7), afirma que por trás das acusações formais estavam preconceitos populares, segundo os quais Sócrates estava ocupado com especulações físicas, não acreditava nos deuses, tornava melhor o pior argumento [Osório diz: isso não é natural de quem ensina? Toda a população estava errada?] e ensinava essas coisas aos outros. Embora essas acusações sejam negadas por Sócrates em sua defesa, é lá também abertamente admitido que jovens das classes mais ricas iam a ele espontaneamente, sem qualquer pagamento, e depois passavam a aplicar o que aprendiam com ele em debates com outros.

Fica assim claro que Sócrates era geralmente considerado parte do movimento sofista. Mediante a sua notória amizade com Aspásia, é provável que estivesse em contato bem íntimo com o círculo de Péricles, e seu impacto intelectual e educacional sobre os jovens ambiciosos em Atenas era tal que foi, nessa função, corretamente considerado sofista. O fato de não receber pagamento não altera em nada a sua função [Osório diz: e como se sustentava e aos seus este homem pobre?] [Osório diz: Sócrates e o círculo de Péricles] [Osório diz: Crítias também não recebia e é considerado como tal] [Osório diz: quando advogo que Sócrates era um sofistas não quero trazê-lo para o lado dos sofistas para fazer esse lado forte, mas epans mostrar que Platão foi quem “se divertiu as nossas custas”! Aliás, a depender de Platão, Sócrates, realmente, não faz falta à Sofística].

Mas não havia diferenças entre ele e o resto dos sofistas? A resposta exige que se tente descobrir qual era o método e qual era o conteúdo do ensino de Sócrates, e isso é difícil, especialmente no caso do conteúdo. Algumas sugestões serão feitas abaixo sobre como esse conteúdo estava relacionado a problemas levantados por outros sofistas, tomando como ponto de partida a afirmação de Aristóteles (Met, 1078b27-31) de que há duas coisas que temos razão em atribuir a Sócrates, epactic logoi, que provavelmente se refere ao processo de generalização a partir de exemplos que têm o poder de nos levar além de nós mesmos, e definições gerais. Isso se ajusta bem ao retrato regularmente encontrado nos diálogos de Platão, nos quais Sócrates é mostrado tentando descobrir O que é x, isto é, qual é o logos correto de x, onde x é alguma coisa que aparece no mundo à nossa volta, acima de tudo uma virtude ou uma qualidade moral ou estética [Osório diz: a filosofia e a linguagem, desde sempre, pois a linguagem é o instrujmento com o qual o filósofo tenta conhecer e “ordenar” o mundo, quando, materialmente, é o mundo que ordena o discurso!]. Diferentemente dos platônicos, diz Aristóteles, Sócrates não separava os universais ou as definições das coisas às quais se aplicavam. Mas isso também se ajusta muito bem ao retrato dos outros, entre os sofistas, que também se ocupavam com a busca do logos mais forte ou o logos correto em relação às afirmações conflitantes de logoi aparentemente opostos. É deste ponto de vista que proponho que Sócrates deva ser tratado como tendo um papel a desempenhar dentro do movimento sofista.

Qual é, então, a atitude de Platão em relação a esse método de antilógica? É muito claro que ele não o aprecia muito como método de debate filosófica. A sua primeira objeção é a de inadequação — é do método de dialética que precisamos. Embora seja possível que as pessoas, sem o saber, confundam antilógica com dialética (Rep. 454a4-5), falta-lhe uma característica essencial da dialética, a saber, a capacidade de discutir com base na divisão das coisas em espécies. A antilógica, ao invés, procede com base em contradições (meramente) verbais [Osório diz: o problema aqui é gorgiano: como chegar nas coisas em si? Mas a filosofia não é instrumentalizada pelo verbo? É o que fará Aristóteles, segundo Fausto dos Santos]. Observação semelhante é feita no Teeteto 164c2-d8, onde Sócrates expressa sua insatisfação com sua própria réplica anterior a Protágoras, alegando que estava inconscientemente agindo de maneira antilógica, recorrendo a coincidências verbais (isto é, para estabelecer as consequências contraditórias da posição de Protágoras e, da mesma forma, para as de Teeteto — 164d5-10) [Osório diz: essa piada é ótima e aponta o esforço de Platão de separa o joio do trigo]. De novo, como na passagem da República, o lapso de Sócrates na antilógica é involuntário e inicialmente inconsciente, e isso deixa claro que sua ação não é desonesta — ele não está tentando "impingir um argumento capcioso ao seu interlocutor"6, e não está agindo eristicamente. Ele simplesmente ficou aquém do que é devido e falhou porque seu método, embora bem-intencionado, é inadequado para a tarefa em mãos [Osório diz: quando Sócrates usa algo condenável ele o faz involuntariamente! Para ele tudo se justifica!].

Mas, se perguntamos o que é a via da natureza, os escritos de Antífon de que dispomos não nos dão uma resposta. Para respostas a essa questão devemos ir a outras fontes sofistas, e me volto, primeiro, para as opiniões expressas por Cálicles no Górgias 482c4-486dl, de Platão. O argumento, no diálogo, chegou ao ponto em que Sócrates consegue que Polo admita que praticar a injustiça é mais desonroso do que sofrer uma injustiça. Cálicles não está satisfeito com a maneira como se desenvolveu o argumento porque, diz ele, se ignora a distinção fundamental entre physis e nomos. Realmente interessante é que ele acusa Sócrates de usar o que vimos Aristóteles chamar de um topos muito difundido [Osório diz: veja abaixo], o de mover-se, no argumento, de um para o outro sem avisar, gerando, assim, contradições desorientadoras no argumento do adversário, a fim de embaraçá-lo e refutá-lo. [Osório diz: mais uma vez Sócrates portando-se sofisticamente!]

Diz-se, frequentemente, que a principal função dos sofistas foi preparar o caminho para Platão, e isso é regularmente dito de tal maneira que sugere serem eles, por conseguinte, de importância limitada. Mas virtualmente todo os pontos do pensamento de Platão têm seu ponto de partida na sua reflexão sobre os problemas levantados pelos sofistas. Virtualmente todos os diálogos, de um modo ou de outro, têm um ou mais sofistas visíveis ou ocultamente presentes, influenciando suas discussões. E isso é verdade mesmo se Sócrates for totalmente excluído da companhia de seus contemporâneos [Osório diz: Sócrates sofista]. Virtualmente todos os aspectos da atividade humana, todas as ciências sociais podem ser vistos como assuntos constantes do debate sofista, em muitos casos pela primeira vez na história humana. Isso é algo muitas vezes mais reconhecido por autores modernos especializados em vários ramos da sociologia do que por aqueles mais diretamente interessados na Antiguidade clássica [Osório diz: quase todos estes religiosos ou ligados aos mosteiros]. O que estamos estudando são as tradições e os remanescentes fragmentários de um grande movimento do pensamento humano. [294] (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 59-62, 69-71, 96-100, 199).

 

Mas, ser Sofista não é crime, crime é querer pinçar os que tinham tudo de Sofistas, e o eram, e o que nos agradam, lançando desonra sobre os demais que nos desagradam.

Por fim, e o acima foi apenas para mostrar a má-fé platônica, Sócrates não faz nenhuma falta ao movimento sofista, pois, com ele ou sem, as coisas teriam sido igual, especialmente por, repito, ser extremamente difícil saber o que é o pensamento socrático e o de seu taquígrafo Platão.

 

 

 

29

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

39 – Por que e por quem os Sofistas foram combatidos (a quem incomodavam)?

 

Nos diz Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

O pensamento de Crítias acaba por nos aparecer menos embebido de contradições do que se disse. O preconceito aristocrático do seu pensamento vai a par do compromisso pró-oligárquico da sua vida [Osório diz: como seu sobrinho, Platão, de quem ninguém diz nada sobre isso! Exceto Popper]. Certamente que Crítias parece professar uma visão antilógica do real, quando declara: “para os homens, o rosto mais belo é o rosto feminino; para as mulheres, pelo contrário, é o inverso.” Mas o fragmento não afirma explicitamente a duplicidade radical do ser; antes sugere, segundo o que sabemos de Crítias, a idéia de uma dominação: o que é belo é o homem dominando os traços femininos que estão nele, a mulher os traços masculinos, da mesma maneira que é belo o domínio das sensações pelo pensamento e o dos bons sobre os maus, isto é (segundo Crítias), dos oligarcas sobre o povo. Sem tensão não há beleza, mas é uma mistura sem graça. Pensamento da contradição, sem dúvida, mas de uma contradição estabilizada no mesmo sentido pela vitória de um dos contrários – vitória, como o demonstra o fragmento sobre os Espartanos e os Hilotas, sempre afirmada por uma vigilância sem falha. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 115-116).

 

Kerferd ensina:

 

A certa altura, Platão até põe na boca de Sócrates a afirmação de que Atenas permite maior liberdade de palavra do que qualquer outro lugar na Grécia (Górgias, 461e2), e isso se conservou, até o século IV, como uma das características das quais os atenienses se orgulhavam (cf. Demóstenes IX, 3). A "Nota de Liberdade" tem sido regularmente declarada uma das glórias do gênio grego, manifesta em Atenas mais do que em qualquer outro lugar no século V a.C. Entretanto, como escreveu E. R. Dodds,

 

os indícios que temos são mais do que suficientes para provar que a Grande Era do Iluminismo grego era também, como no nosso próprio tempo, uma Era de Perseguição — banimento de intelectuais, antolhos para o pensamento e até (a crer na tradição sobre Protágoras) queima de livros. Isso afligiu e confundiu os professores do século XIX, que não tinham a nossa vantagem da familiaridade com esse tipo de comportamento. Isso os confundia ainda mais porque acontecia em Atenas, a "escola da Hélade", a matriz da filosofia e, até onde vai nossa informação, em nenhum outro lugar. Daí a tendência para duvidar dos dados, sempre que possível; e quando possível explicar que o motivo real por trás das denúncias era político.

 

Sem dúvida, os que atacavam os filósofos, em Atenas, estavam atacando Péricles. Isso é simplesmente prova do íntimo envolvimento e da patronagem de Péricles em relação ao movimento sofista. Mas os indícios são realmente fortes de que houve toda uma série de processos contra filósofos e outros em Atenas, na segunda metade do século V a.C., geralmente sob a acusação de Asebeia ou impiedade. Isto é preservado não por uma fonte, mas por várias. Entre as vítimas se incluía a maioria dos líderes do pensamento progressista em Atenas: Anaxágoras, Diágoras, Sócrates, Aspásia, Protágoras e Eurípides, embora no seu caso pareça que a denúncia não foi bem-sucedida. De Protágoras se disse que foi exilado de Atenas e seus livros foram queimados (DK 80Ale3); parece não haver dúvida de que Anaxágoras foi exilado, embora a data seja incerta. Fídias, depois de condenado por apropriação indébita, ou morreu na prisão ou foi exilado. Damon, como vimos, sofreu o ostracismo. É difícil acreditar que tudo isso foi simplesmente inventado, a despeito da incerteza sobre alguns detalhes. [Osório diz: perseguição aos intelectuais em Atenas. Mais uma vez Sócrates não difere dos demais sofistas! Sócrates, no entanto, parece que não é do agrado de Péricles! Se o fosse, talvez Platão tivesse dito ou o destacou dos demais, justamente para fazer o contraponto, tentando dizer que ele era o melhor, daí não ter recebido atenção].

Plutarco (Per. 31-32) reúne um certo número dessas acusações e as situa por volta do início da Guerra do Peloponeso, associando-as a um decreto de Diopeites prescrevendo a instauração de processo público (pelo processo de eisangelia) contra os que não acreditavam em coisas divinas ou que davam lições de astronomia [Osório diz: talvez esse seja o real motivo para Sócrates negar a astronomia! Medo!]. As tentativas de datar o decreto depois do início da guerra, claramente motivadas por um desejo de associá-lo com a histeria da guerra e mesmo com emoções evocadas pela praga, deveriam ser descartadas. É até possível que alguns dos processos reais fossem anteriores a 432 a.C. Finalmente, tem de ser feita referência a uma intrigante afirmação na Retórica 1397b24, de Aristóteles, segundo a qual a rejeição de uma afirmação provável é aceita como um bom argumento para a rejeição de outra afirmação menos provável. Portanto, se não se deve menosprezar outros especialistas, os filósofos também não deveriam ser menosprezados. Se os generais não devem ser menosprezados porque estão frequentemente sujeitos à morte, tampouco devem ser menosprezados os sofistas. Aqui a interpretação do texto thanatountai é segura e não deveria ser alterada. Mas não significa realmente condenados à morte, mas apenas sujeitos à ameaça de morte. O que Aristóteles está dizendo é que a profissão de sofista era perigosa, embora menos do que a de general. [Osório diz: a profissão de sofista era perigosa por que eles mexiam com interesses profundos da sociedade: dinheiro e poder ou poder e dinheiro. Alternância de poder e divisão de riqueza gera conflitos, e dos maiores].

Em vista de tudo o que foi dito, podemos agora concluir que não somente a situação geral em Atenas, mas também o franco encorajamento de Péricles é que trouxeram tantos sofistas a Atenas. A sua vinda não foi provocada simplesmente por algo de fora mas, antes, por um desenvolvimento interno à história de Atenas. Eles faziam parte do movimento que estava produzindo a Nova Atenas de Péricles, e era como tal que foram, ao mesmo tempo, bem-vindos e atacados. Eles atraíam o entusiasmo e o ódio que regularmente advêm àqueles que estão profundamente envolvidos num processo de fundamental mudança social. A mudança que estava se realizando era, ao mesmo tempo, social e política, de um lado, e intelectual, de outro. Mas esses dois aspectos não eram separados; ambos faziam parte de um único processo complexo de mudança [Osório diz: qual autor não diz! Mas podemos dizer: poder político e divisão de riqueza].

O currículo da educação sofista não começava do nada, - seguia-se ao término do estágio primário. Segundo Esquines, o orador,foi Sólon quem, no início do século VI a.C., tornou compulsório o ensino da leitura e da escrita, em Atenas (Esquines, In Tim. 9-12) [Osório diz: a escrita em Atenas]. Por volta da metade do século V e, provavelmente, mais cedo, havia um sistema bem estabelecido de escolas primárias. Frequentar a escola era o normal para meninos nascidos livres, embora não haja prova de que a freqüência escolar fosse obrigatória. A ampliação da educação para toda a sociedade ateniense que isso implicava não foi popular entre os que olhavam para o passado como para uma época de maior privilégio aristocrático nessas questões [Osório diz: a educação como prejudicial à hegemonia burguesa]. Píndaro (01.II.86-88) opunha aqueles cuja sabedoria vem por natureza (família e nascimento) àqueles que tiveram de aprender [Osório diz: no que “acreditava” também Platão]. Embora não se saiba ao certo a quem ele estava se referindo, pode-se, com razão, tomar isso como um lance na controvérsia Natureza-Educação, que era importante no período sofista (cf. também sua ode Nemeana, III, 41). Se aretê ou excelência, pode ser ensinada, então a mobilidade social é imediatamente possível [Osório diz: eis o pomo da discórdia e a má vontade contra os sofistas]; e é claro que Protágoras estava interessado exatamente nessa controvérsia Natureza-Educação quando escreveu: "ensinar exige ambos, Natureza e Prática" (DK 80B3; cf. B10). [Osório diz: Frase de Protágoras]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 40-43 e 66).

 

Prossegue Kerferd:

 

Não obstante, Protágoras declarava ser, e era, um profissional. De fato, o profissionalismo dos sofistas, na segunda metade do século V a.C., distinguia-os manifestamente de todos os seus supostos predecessores. O primeiro elemento de seu profissionalismo é o fato de receberem honorários por seu ensino. Segundo Platão, isso era uma inovação em comparação com os que vieram antes deles (Hipp. Mal 282c6) e é claro que, para muitos, o mero fato de receberem honorários, não o valor dos honorários, é que era inadmissível. Por que Isso? [Osório diz: por que ainda se dá ouvido a uma idiotice dessas? Quem não era rico, como era o caso dos sofistas profissionais, precisava de dinheiro para se manter, não vivia de “comer o ar”! Sócrates mesmo não explica como, sendo pobre, sustentava mulher e filhos, nem como conseguia pagar sua cota para participar de banquetes! Cabe em relação a ele o termo moderno: “não existe almoço grátis”!] Não se reprovava a venda de bens por dinheiro, em Atenas (cf. Platão, Górgias 520d) [Osório diz: daí vem que o pseudo problema de Platão com os sofistas não era questão de pagamento de honorários, mas era de fundo político, a briga política que estava por detrás de tudo isso: democracia (Sofistas) versus Oligarquia (Platão)]. Poetas, artistas e doutores, todos recebiam honorários. Píndaro, escrevendo logo depois do fim da invasão persa de 480 a.C. (Isthm. II), diz que já se fora o tempo em que os poetas escreviam canções sem receber dinheiro em pagamento — o dinheiro faz o homem! De fato, relata-se que ele recebeu 10.000 dracmas de presente pelo seu poema em louvor de Atenas (Isócrates XV, 166), e Simônides também recebia pagamento por suas odes (Ar. Ret. 1405b23-ss). Para pagamentos de um talento, ou mais, ao médico Demócedes, temos a prova de Heródoto III, 131. [Osório diz: todos os profissionais recebiam honorários em Atenas, mas só os pagos aos Sofistas escandalizavam seus adversários, o rico e oligárquico Platão, por exemplo!]

Por que, então? A resposta clássica tem sido que não era o fato de cobrarem honorários que desagradava; era o fato de venderem instrução em sabedoria e virtude. Essas não eram da espécie de coisas a ser vendidas por dinheiro; amizade e gratidão deveriam ser recompensa suficiente (cf. Xen. Mem. I, 2,7-8) [Osório diz: isso para quem não era rico e podia ensinar gratuitamente! Mas nem Sócrates assim agia, pois era um comensal de banquetes “caros”! Repita-se, a questão era política! Os Sofistas ensinavam os “fora do poder” a lutar pelo poder!]. Mas é duvidoso que isso teria sido realmente suficiente para separar os profissionais sofistas dos poetas, por exemplo; quando examinamos mais atentamente as repetidas objeções registradas em Platão e Xenofonte, descobrimos que quase regularmente as objeções têm uma outra característica, não muito enfatizada na literatura moderna. O que está errado é que os sofistas vendem sabedoria a todos os que se apresentarem sem discriminação — ao cobrar honorários eles se destituíam do direito de escolher seus alunos [Osório diz: e desde quando professor pode e debe rejeitar aluno? Ao contrário, debe aceitar qualquer um para torná-lo melhor!]. Isso, é dito, envolve prelecionar diante "de todo tipo de gente" [Osório diz: eis o motivo do ódio platônico! Apenas os aristocratas poderiam receber tal educação, não o povo que ia atrás de saber para se impor democraticamente](Hipp. Mai. 282dl) — uma expressão tão desdenhosa em grego como em português — e receber dinheiro de quem quer que venha (Xenofonte, Mem. l, 2.6,1,5.6,1,6.5,1.6.13). Uma das consequências, se diz, era destituir o sofista da sua liberdade e fazê-lo escravo de todos quantos vinham a ele com dinheiro [Osório diz: se for como na modernidade, não eram somente os sofistas que se vendem! Os advogados, em especial, mas outros profissionais, inúmeros, aliás, também o fazem! Intelectuais são viciados em se venderem!]. Mas é de se duvidar que seria a solicitude pela independência do sofista a base real dessa objeção. Na realidade, nem é mesmo certamente verdadeiro ser esse o caso do ensino sofista. Claramente, no Protágoras, o jovem Hipócrates não está absolutamente seguro de ser capaz de persuadir Protágoras a aceitá-lo como aluno, e espera ansioso que Sócrates o recomende ao grande homem (310d6-e3) [Osório diz: contradição platônica! O caso é mesmo, repita-se: político. Platão não queria gente preparada capaz de enfrenta a sua classe!].

Por conseguinte, é provável que a verdadeira razão da objeção não fosse a preocupação de proteger os sofistas contra o ter de se associar com todo tipo de gente [Osório diz: kkkkk. Essa é a melhor piada que já ouvi dentro de milhas leituras! “Desmerecer, desdenhar, criticar, escarnecer para proteger”!]; a objeção era contra todo o tipo de gente poder obter o que os sofistas tinham para oferecer, simplesmente pagando por isso [Osório diz: e o que eles tinham a oferecer era a desenvoltura política na democracia!]. O que eles tinham para oferecer, nas palavras atribuídas a Protágoras, incluía ensinar o homem a respeito dos assuntos de Estado, de modo que ele pudesse vir a ser uma verdadeira força nos negócios da cidade [Osório diz: política], tanto como orador quanto como homem de ação [Osório diz: conquista e manutenção do poder]; em outras palavras, tornar-se um político eficiente e bem-sucedido (Prot. 319al - 2). Era certamente essa a fonte da poderosa atração exercida pelos sofistas em Atenas, e também do ódio que levou aos ataques pelos autores de comédias, aos processos e, finalmente, à morte do próprio Sócrates, na passagem do século V para o IV.” [Osório diz: as razões para que os sofistas fossem odiados: a tomada do poder! Kerferd, propositalmente, omite o ódio de Platão e Aristóteles, cujas razões eram as mesmas]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 46-48).

 

 

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

38 – Para falar sobre algo é preciso conhecê-lo.

 

Como Protágoras disse, “Sobre cada tópico há dois argumentos contrários entre si”. Ele visava a treinar seus alunos para elogiar e censurar as mesmas coisas, e em particular escorar o argumento mais fraco para que aparecesse mais forte. O ensino retórico não se restringia à forma e ao estilo, mas lidava também com a substância do que se dizia [Osório diz: este é o meu pensamento! Como falar de um assunto sem conhecê-lo? Falar falsamente sobre um tema é impossível!]. Como se podia deixar de inculcar a crença de que toda verdade era relativa e ninguém conhecia alguma coisa como certa? A verdade era individual e temporária, e não universal e permanente, pois a verdade para o homem era simplesmente aquela de que podia ser persuadido, e era possível persuadir qualquer de que preto era branco. Pode haver crença, mas nunca conhecimento.

 

Aos olhos de Platão, Sócrates era, na realidade, o verdadeiro mestre desta arte [Osório diz: isso confirma o que eu disse acima!]. Fez dela uso diferente dos sofistas, mas embora não fosse nenhum retórico [Osório diz: é muito cara de pau!]. Crítias, ao tornar ilegal ensinar a arte dos logoi, teve Sócrates particularmente em mente [Osório diz: mais uma prova de que Sócrates seria um sofista, menos para seu amante!], isso não foi inteiramente irrazoável. Estava convencido de que se alguém entendeu uma coisa podia "dar um logos dela" [Osório diz: isso reforça meu entendimento de que, a contrário, somente fala sobre algo quem sabe algo sobre ele!], e sua exigência de definições era exigência de que as pessoas devam provar que entenderam, a essência da coragem, da justiça ou qualquer outra coisa que estivesse em discussão, encontrando uma fórmula verbal que pudesse cobrir todos os seus casos.

Ele sustentava que quem conhece alguma coisa, também deve ser capaz de expô-la a outros” [Osório diz: mas isso leva à conclusão de que não existem discursos vazios, como se diz!]. (Xen. Mem. 3.3.11; ele argumenta que o bom comandante de cavalaria deve ser bom locutor):

 

Não se te ocorreu que todas as melhores coisas que aprendemos de acordo com o costume, pelo qual sabemos como viver, nós aprendemos pelo discurso, que qualquer outra boa lição que se pode aprender aprende-se pelo discurso, que os melhores mestres fazem o maior uso do discurso e aqueles com o conhecimento mais profundo dos mais importantes assuntos são também os melhores locutores? [Stenzel chega a ponto de dizer que a linguagem é o ponto de partida do ensino de Sócrates (Ztenzel em RE, 2, Reihe, v. Halbb. 821s.).” [Osório diz: depois dos outros expositores, por certo]] [Osório diz: Nada existe fora do discurso e nem todos sabem discursar bem, embora todos saibam discursar. Tudo é discurso!].

 

[Osório diz: Sócrates faziam perguntas sobre determinados temas sem dominá-los? Estranho, pois até para que se possa perguntar, com profundidade, como era o caso, é preciso conhecer e somente se conhece estudando! Como, sem ter conhecimento, ele perguntava o mesmo que os físicos sobre assuntos da natureza?]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 52, 168-169).

 

 

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

37 – De que os Sofistas são acusados (cobrança de honorários)?

 

Nos diz Guthrie:

 

Sócrates era filho de cortador de pedras e provavelmente seguiu o mesmo negócio, mas (impopular que era em muitos lugares) isto nunca se aduziu contra ele. Poetas tinham sido pagos por seu trabalho, de artistas e doutores se esperava que fossem pagos to por sua atividade e por ensiná-la a outros. [Veja, p. ex., Isocr. Antid. 166; Ar Rhet. 1405b24 (poetas); Platão, Prot. 311c, Meno 91d (escultores); Prot. 311b e Hdt. 3.131.2 (doutores). Outras experiências estão, V MzuL, 259, n. 36. Platão diz de Zenão, o filósofo, que arrecadou a impressionante soma de 100 minas por um curso (Ale. 119a), embora, quando autoridades posteriores dizem o mesmo de Protágoras (como na verdade o fazem de Górgias, Diod. 12.53.2), Zeler o descarte como altamente exagerado (ZN, 1299, n. 2). Todavia Zenão parece não ter partilhado do nome e da censura dos sofistas. [Osório diz: a acusação é seletiva! Zenão não é político ateniense. Não é um aristocrata brigando contra a democracia]].

Os motivos pelos quais Sócrates criticava sua aceitação de pagamento eram bem diferentes, e típicas do homem. Ele sustentava (temo-lo não de Platão, mas de Xenofonte) que, ao aceitar dinheiro, eles se privavam de sua liberdade: estavam obrigados a conservar com todos os que podiam pagar suas taxas, ao passo que ele era livre para gozar da companhia de qualquer que escolhesse”. [Osório diz: escolher o aluno ou ser escolhido por ele? Mudavam a “formatação” do curso por causa do aluno?]

Chegou ao ponto de chamá-lo prostituição, vender sua mente não era melhor que vender seu corpo.

A sabedoria era algo que devia ser gratuitamente partilhada entre pessoas amigas e amadas (1.6.13). Esta era a maneira como a filosofia tinha sido considerada até então, sobretudo na escola pitagórica, de que Platão com certeza, e Sócrates provavelmente, eram admiradores.” [Osório diz: viver e capital]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 41 e 42).

 

Sobre isso diz Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

Se os Sofistas, com efeito, foram professores pagos, não era porque estivessem motivados por uma cupidez sem limites, como se acreditou de acordo com Platão, mas muito simplesmente porque tinham necessidade disso para viver, tal como um mestre moderno. [Osório diz: foi o que sempre pensei!].

Tanto assim que o tio de Platão, Crítias, não cobrava, justamente por ser rico. Era mecena! (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 14).

 

São duas as acusações básicas, e hoje quase infantis, que lhes atribuíam:

 

a) cobravam por seus ensinamentos,

b) não ensinavam e buscavam a “verdade”.

 

Se vistas com os olhos de hoje e a experiência acumulada ao longo destes dois mil e quinhentos anos, as acusações soam mais como falta de acusações, quase beirando ao ridículo do acusar por acusar por não ter do que acusar!

Todos os filósofos ditos pré-socráticos eram ricos, nos diz Anthony Gottlieb.

Não sei se entre os ricos de que fala o autor, estão os Sofistas, já que ele não diferencia, como deveria, os Sofistas dos pré-socráticos e já que para muitos aqueles sequer eram filósofos, qualificação de apenas do Hegel devidamente creditada!

Se entendermos que filósofos são “os amantes do saber”, nada tira dos Sofistas essa condição, pois eles, mais que ninguém, prezam o saber, pois não se consegue ser professor sem antes ter-se instruído.

De qualquer modo, pelo simples fato de cobrarem por seu trabalho, já que os ricos não cobravam, indica que eram pobres, ou que, pelo menos, tinham receio de perder suas fortunas, pois aquela que não é multiplicada constantemente tende a extinguir-se.

Porém, o mais importante era que cobravam para ensinar e existiam pessoas (discípulos/alunos) que estavam dispostas a pagar, e pagavam, aliás, pagavam muito bem!

Se alguém objetar que Sócrates era pobre e não cobrava por seus ensinamentos, deve-se informar mais, pois ele tinha amigos ricos que o banqueteavam! Tinha mulher e filhos que precisavam comer, beber, vestir-se e habitar!

Mas, o que dizer dos professores atuais, que “cobram” por seus ensinamentos?

Ou seja, a história deu razão aos Sofistas!

Quanto a quem ensina a verdade, se esta permanece, ainda, tão desconhecida quanto no tempo em que as acusações contra os Sofistas foram lançadas há dois mil e quinhentos anos?

Quem não ensinava a verdade, os Sofistas ou os ditos filósofos?

Antes da resposta, se pode dizer que quem mentiu/enganou foram os filósofos adversários dos Sofistas, pois prometiam ensinar aquilo que não sabiam, como de resto não se sabe até hoje o que é: a verdade!

Foram os filósofos que se aferraram a essa ideia de que existe verdade, portanto, são eles que têm que responder por ela.

Os Sofistas contentavam-se com menos, tanto assim que aboliram a verdade, preferindo falar apenas “no melhor”!

Assim é que:

 

"'Bem, Protágoras, quanto à razão de nossa vinda, começarei como o fiz antes. Hipócrates mostra-se desejoso de estudar contigo e, portanto, declara que gostaria de saber qual o resultado que obterá de tuas aulas. Nisso se resume tudo que temos a dizer.'

A resposta de Protágoras veio celeremente: 'Jovem, o resultado de frequentares minhas aulas é o seguinte: a partir do primeiro dia já voltarás para casa como um homem melhor. O mesmo acontecerá no dia seguinte. A cada dia te aprimorarás mais e mais'". (Fonte: Protágoras. Platão. Edipro, Bauro, tradução de Edson Bini, 2007, p. 262).

 

Portanto, nada de o verdadeiro, já que este critério estava abolido, em vez disso, apenas de o melhor!

Assim, não se deve cobrar verdade de quem nunca prometeu ensiná-la, como foi o caso dos Sofistas!

Quem prometeu a verdade foram seus adversários. Prometeram e, diga-se, nunca cumpriram!

 

Kerferd ensina:

 

Uma questão subsidiária, mas difícil, é saber a importância dos honorários recebidos pelos sofistas pelos seus serviços. Aqui, as afirmações gerais que chegaram até nós são conflitantes, e as afirmações particulares são difíceis de interpretar. Somos informados de que Górgias e Pródicos ganhavam notáveis somas de dinheiro, assim como Hípias e Protágoras (Platão, Hipp. Mal 282b8-283b3), e consta que o rico Cálias pagou "muito dinheiro" a esses mesmos três sofistas. (Xen. Symp. 1,5). De Protágoras se diz que ganhou mais dinheiro do que Fídias junto com quaisquer dez outros escultores (Platão, Mênon, 91 d). Ao contrário, escrevia Isócrates (XV,155-156):

 

No geral, não se achará nenhum desses sofistas que tenha acumulado muito dinheiro: alguns viviam em condições de pobreza, outros em condições moderadas. Quem, na nossa lembrança, ganhava mais era Górgias. Ora, ele passava seu tempo em Tessália, quando os tessalianos eram o povo mais próspero da Grécia; viveu uma longa vida e dedicou-se a fazer dinheiro; não tinha domicílio fixo em nenhuma cidade e não pagava nada para as necessidades públicas, nem qualquer imposto; não era casado e não tinha filhos... assim mesmo, quando morreu, deixou apenas mil estáteres [umas 20.000 dracmas]. [Osório diz: este depoimento é destruidor das mentiras platônicas!].

 

Nada disso realmente equivale a grande coisa. Em primeiro lugar, não temos meios de saber se as informações são literalmente verdadeiras ou não. Segundo, deveríamos, a esta altura, já estar bastante familiarizados com a maneira como argumentos desse tipo, sobre a remuneração de profissionais tais como médicos, advogados ou professores universitários, tendem a ser conduzidos atualmente — a discussão tende a ser influenciada pelos sentimentos e pelos interesses das partes em questão [Osório diz: por que a questão dos honorários não deve ser nem interessante nem fundamental].

Talvez os números reais pudessem nos ajudar mais. Mas aqui também há claras divergências, e os números poderiam ser colocados em três grupos (1) Pitódoros, filho de Isólocos e Cálias, filho de Calíades, pagaram 100 minas (10.000 dracmas) cada um a Zenão, segundo a afirmação no diálogo que é, provavelmente, pseudo-platônico, o Primeiro Alcibíades (Ale. I,119al-6). Segundo fontes posteriores, Górgias cobrava 100 minas de cada aluno (DK 82A2 e 4), e esse era o preço também cobrado por Protágoras, segundo Diógenes de Laércio (DK 80A1). (2) Por outro lado, Sócrates, na Apologia de Platão (20b9), diz que Cálias pagou, a Eueno de Paros, 5 minas pela educação de seus dois filhos; Isócrates cobrava 10 minas (Plutarco, Mor. 837d), e Pródicos normalmente cobrava meia mina por uma única preleção (DK 84 A11). À primeira vista, o segundo grupo representa uma escala muito inferior ao primeiro e isso tem gerado dúvidas quanto aos números mais altos, se não seriam grandemente exagerados. Um terceiro conjunto de números também não nos ajuda muito (3): Hípias teria afirmado que foi uma vez à Sicília, numa época em que Protágoras também estava lá, e, apesar da competição, Hípias fez mais de 150 minas num curto espaço de tempo, inclusive 20 minas numa cidadezinha, e que, de modo geral, seus ganhos constituíram mais do que os obtidos por quaisquer dois outros sofistas.

Duas grandes dificuldades impedem quaisquer inferências confiáveis a partir desses números. Primeiro, está claro que havia uma enorme diferença entre os honorários. Sócrates, na passagem já citada (DK 84A11), depois de nos contar que o preço normal para uma preleção de Pródicos era meia mina, continua dizendo que ele não podia se dar a esse luxo, de modo que só ia às preleções de uma dracma, isto é, de um qüinquagésimo do custo [Osório diz: Se Sócrates pagava, ou queria/pretendia pagar, ele incentivava a cobrança, não é? Se incentivava... Outra: quer dizer que Sócrates se corrompia ao pagar ou querer pagar?]. E Isócrates (XIII, 3-4 e 9), depois de dizer que alguns pedem 3 ou 4 minas, acrescenta que outros tentavam reunir o maior número possível de estudantes cobrando preços muito baixos. Segundo, nenhuma informação nos é dada quanto à relação entre o preço, o número de estudantes e a duração do curso, que poderia ser até de três ou quatro anos (Isócrates XV; 87). De modo que, embora possamos desconfiar de que 100 minas de honorário seja alto demais, acho que não podemos ter certeza de que seja simplesmente falso.

Qualquer que seja a verdade a respeito da escala de honorários cobrados, interessa perguntar qual era a importância social de cada honorário em particular. A mina foi calculada como contendo aproximadamente 425 gramas de prata: ao preço da praça vigente em 1978 isso equivaleria a umas 38 libras ou 74 dólares. Maior informação, porém, é dada pela comparação de uma mina, valendo 100 dracmas, com o salário médio de um dia de um artesão, calculado em uma dracma, ou umas 3 ou 4 minas por ano, com base nos registros de pagamento para as construções de templo no final do século V a.C. Isso sugere que o pagamento de quatro ou mais minas por um curso de um ano pode não ter sido considerado particularmente caro para os que podiam pagá-lo e, excepcionalmente, honorários mais altos não seriam impossíveis para um sofista no ápice de suas capacidades e da carreira. Se Pródicos podia realmente ganhar, por preleção, meia mina de cada estudante presente, então o rendimento total seria, no caso de 20 estudantes presentes, 10 minas; e um curso de dez preleções poderia render até 100 minas. Essa inferência seria invalidada se a meia mina não fosse por uma única preleção mas pelo curso todo. Muitos tradutores dessa passagem de fato supõem exatamente isso. Mas a favor da opinião de que era o preço de uma única preleção temos o uso do substantivo singular epideixis, normalmente usado, como veremos, para falar de uma única exposição. De qualquer forma, se se tratasse de um curso inteiro, então uma dracma seria realmente uma soma ridícula pedida por Pródico. Talvez valha a pena notar que, no pseudo-platônico Axiochus 366cl-3 (DK 84B9), preços de uma dracma, duas dracmas e quatro dracmas são mencionados para o que parece ter sido uma única apresentação. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 48-51).

 

 

 

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Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

36 – Por que a mudança de sentido da palavra que levará os Sofistas de “sábios” a “enganadores”?

 

Nossas pesquisas têm nos apontado que as contestações aos Sofistas são provenientes das influências que eles, com seus pensamentos inovadores, exerceram sobre a religião, a política e a justiça (lei), especialmente, pois é essa tríade que sustentava a vida social da cidade de Atenas, como de resto se sustentam todos os Estado Modernos.

A despeito de não possuir uma religião oficial, Atenas cultuava seus deuses e os festejava amplamente.

De repente aparece um sofista, Crítias, e diz que os “homens criaram os deuses, e não os deuses criaram o homem”, isso após Protágoras ter afirmado que “o homem é a medida de todas as coisas”!

Isso só podia gerar o escândalo que gerou, trazendo ou impondo as adversidades que se seguiram em relação a estes pensadores, aí sim, inovadores.

Não menor foi o escândalo por eles causados no âmbito da justiça, pois defenderam que “a justiça é o interesse do mais forte”, especialmente com Trasímaco.

Ocorre que Atenas vivia momento de transição também no campo da política. A democracia abria a possibilidade de qualquer um ascender ao poder, desde que obtivesse o voto de confiança de seus concidadãos. Mas, isso, provocava a reação odiosa dos que eram enfrentados na disputa pelo poder, fundamentalmente a aristocracia, que nunca tinha encontrado em seu caminho opositores, e cujo maior representante, na divulgação do pensamento e contestação aos sofistas é, justamente, o aristocrata Platão, seguindo a trilha de outro, Aristófanes, sendo aquele membro de uma família nobre, rica e poderosa, mas que, com a ajuda trazida pelos ensinamentos dos Sofistas, enfrentava dificuldades em se manter no poder. No mínimo, seus membros, para ascender ao poder, tinham que receber a aquiescência popular, como foi o caso do próprio Péricles.

Há sempre um motivo nas disputas políticas a separar facções e foi, entendemos, justamente a defesa da conservação do poder pela aristocracia que levou Platão a apontar sua escrita contra os Sofistas que eram, de certo modo, os responsáveis pelo fornecimento de “armas” (logos/discurso) aos seus adversários.

Posteriormente as religiões fizeram de Platão um dos seus guias e, além disso, aprofundaram suas levianas críticas e as quase perpetuaram no seio do pensamento/cultura ocidental, da qual a igreja se tornou criadora e guardiã.

 

Ensina Kerferd:

 

O nome sofista está claramente relacionado com as palavras gregas sophos e sophia, comumente traduzidas por "sábio" e "sabedoria". Conforme a explicação corrente, adotada tanto nos nossos dicionários como em nossas histórias da filosofia, esses termos sofreram uma espécie de evolução [Osório diz: ou seria uma involução], quanto ao seu sentido, de (1) habilidade em uma determinada ocupação, especialmente ofício manual, passando por (2) prudência ou sabedoria em questões gerais, especialmente sabedoria prática e política, para (3) sabedoria científica, teórica ou filosófica. Tentei argumentar, alhures, que essa sequência é artificial e não-histórica, sendo essencialmente baseada em Aristóteles e na sua tentativa de esquematizar a história do pensamento de antes de seu tempo dentro de um quadro ilustrativo de sua própria visão da natureza da filosofia, enfatizando sobretudo a procedência do particular para o universal. Desde o início, sophia era, de fato, associada ao poeta, ao vidente e ao sábio, todos os que revelavam um saber não concedido aos outros mortais. O saber assim obtido não era uma questão de técnica como tal, fosse poética ou qualquer outra, mas conhecimento dos deuses, do homem e da sociedade, ao qual o "sábio" afirmava ter acesso privilegiado. [Osório diz: ”poeta, ao vidente e ao sábio, todos os que revelavam um saber não concedido aos outros mortais”.Há uma espécie de evolução, embora o vidente não se encaixe muito bem aí. De qualquer modo, Platão voltará ao vidente!]

Do século V a.C. em diante, o termo sophistês é aplicado a muitos desses primeiros "sábios" — a poetas, inclusive Homero e Hesíodo, a músicos e rapsodos, adivinhos e videntes, aos Sete Sábios e a outros antigos sábios, aos filósofos pré-socráticos, e a personagens tais como Prometeu, sugerindo poderes misteriosos [Osório diz: quem eram os sofistas, num primeiro momento. Será que foram esses que Platão e Aristóteles tentaram desqualificar, embora não merecessem ser desqualificados?]. Não há nada de depreciativo nessas aplicações, muito pelo contrário. É a essa respeitável tradição que Protágoras deseja se incorporar na passagem, já citada, do diálogo de Platão, Protágoras (316c5-e5). [Osório diz: Motivos pelos quais Protágoras se assume como sendo um sofista!]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 45-46).

 

 

 

2

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

35 – Os Sofistas e seus herdeiros, dentre eles Aristóteles.

 

Ensina Guthrie:

 

O idealismo de Platão ocupou o dia, e, uma vez que ele próprio quisera suprimir o ensino de seus oponentes, seus seguidores propriamente o suprimiram; ou pelo menos, como filosofias contrárias se entrincheiraram, ninguém viu razão para preservar o que se considerava geralmente ideias não-ortodoxas e censuráveis. Assim ocorreu, para citar Havelock (L. T. 18), que "a história da teoria política grega, assim como também da política grega, escrita nos tempos modernos exatamente como Platão e Aristóteles teriam querido que fosse escrita".

Ademais, uma vez que muito de suas obras era educacional, do tipo do manual, ficaria naturalmente incorporado nos manuais de mestres posteriores, inclusive Aristóteles, que se poderia dizer que tomou o seu lugar. Aristóteles, além de escrever sua própria Arte da Retórica, compilou um sumário das "artes" anteriores, desde sua origem em Tísias em diante, do qual Cícero escreveu que não só ele explicou lucidamente os preceitos de cada mestre, mas também superou os (p. 53) originais em brevidade e estilo atraente, de sorte que mais ninguém os consultou, preferindo ler Aristóteles como expositor muito mais prático de seu ensino.

Mas, e quanto a Aristóteles, também se deve advertir contra falar de "Platão e Aristóteles" de um só fôlego, 60 como se sua oposição ao empirismo sofístico fosse igual e idêntico. Nos assuntos em que os sofistas estavam primariamente interessados, o ponto de vista de Aristóteles estava de muitas formas mais próximo ao deles que o de Platão.

Pois ele fez distinção explícita entre os fins, e em consequência entre os métodos, da pesquisa científica de um lado e a inquirição dos problemas do comportamento humano de outro. Nos primeiros, deve-se exigir os mais exatos padrões de exatidão, mas estes seriam inadequados para o estudo do material humano, que é empreendido não para fins teóricos mas práticos.

Na Ética ele faz a observação muitas vezes, talvez mais convincentemente ao afirmar que exigir prova lógica estrita de um orador não é mais ajuizado que permitir a um matemático usar das artes de persuasão [Veja também 1098a26ss (o carpinteiro não busca a mesma exatidão que o geômetra), 1104a3,1102a23.].

No campo da ética, o abandono das normas ou modelos morais absolutos e auto-existentes de Platão tinha conseqüências de longo alcance, pois tornava possível um divórcio entre teoria e prática, conhecimento e ação, que para Platão teria sido impensável. Aristóteles pode escrever (1103b27): "O objeto de nossa inquirição não é saber o que é virtude, mas nos tornar homens bons", ao passo que no modo de ver socrático-platônico "saber o que é virtude" é essencial pré-requisito para se tornar bom. Ele prefere claramente o método de Górgias de enumerar virtudes separadas à exigência socrática de uma definição geral de virtude, que ele chama de autodecepção (Pol. 126a25), e no primeiro livro da Ética, que contém um de seus ataques mais argumentados e eficazes à teoria platônica das formas, encontramos uma defesa da relatividade e multiplicidade de bens quase poderia ter sido escrita por Protágoras [A brevidade das observações acima pode expó-las à acusação de supersimplificação. Enquanto Aristóteles cria na relatividade da bondade, era apenas no primeiro dos dois sentidos enumerados à p. 157, abaixo, e ele era bastante socrático para combiná-lo com uma crença numa só função do homem como tal, resultando de nossa natureza humana comum e dominando as diversas funções subordinadas de indivíduos e classes. Este e pontos correlates são bem expostos no artigo de Lloyd sobre analogias biológicas de Aristóteles em Phronesis, 1968, em que, porém, fica-se cônscio todo o tempo de figura influente que está no fundo embora nunca mencionada: Protágoras. [Osório diz: Aristóteles, aí, é totalmente protagórico].]. (p. 55). (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 54-55).

 

Kerferd ensina:

 

Qual é, então, a importância disso? Nem é preciso dizer que ninguém, nos tempos modernos, acreditou por um só instante na verdade literal da alegação. Faz parte de uma série de acusações de plágio dirigidas a Platão por críticos hostis, e muitos se satisfazem com simplesmente ignorá-las como uma invenção maldosa. Entretanto, por mais maldosa que tenha sido a acusação, ela só poderia ter sido feita se houvesse pelo menos alguma base para comparação, por superficial que fosse. Em outras palavras é sinal de que Protágoras tratou pelo menos alguns dos temas que interessavam a Platão na República [Osório diz: isso me leva a afirmar que, a despeito do que diz Romilly para a não preservação dos escritos dos sofistas (não tinham eles discípulos para os continuarem e assim, os preservarem), os maiores discípulos dos sofistas foram, justamente, Platão e Aristóteles!]. Naturalmente, este é o ponto em que começam as especulações. Possivelmente Protágoras tinha esboçado a sua própria versão do Estado ideal, ou pelo menos alguma coisa paralela ao primeiro estágio do Estado ideal de Platão, a "Cidade dos Porcos" na República, Livro II. Outros pensaram na emancipação das mulheres, na República, como alguma coisa que podia ter sido antecipada por Protágoras. Isso não é refutado pela declaração, na Política de Aristóteles (1266a34ss, cf 1274b9-ll), de que nenhum outro pensador, além de Platão, tinha proposto novidades tais como a comunidade de esposas e crianças, ou refeições comuns para as mulheres. Porque Aristófanes, como veremos, já tinha tentado ridicularizar o que devia equivaler a uma espécie de Movimento em prol dos Direitos das Mulheres que já era conhecido, em Atenas, no século V. Na ausência de outros testemunhos, é simplesmente impossível dizer quais poderiam ter sido os temas realmente tratados por Protágoras. Mas é provável que fossem importantes e não estivessem simplesmente limitados à aplicação do princípio dos dois-logoi aos assuntos políticos.” [Osório diz: Não se deve esquecer, também, que quando Platão escreveu seus diálogos, as Leis de Túrios, dadas por Protágoras, podiam por ele ser consultadas!]. (Fonte: O movimento sofista, G. B. Kerferd, tradução de Margarida Oliva, Loyola, São Paulo, 2003, p. 237-238).

 

 

3

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

34 – Quais as influências que os Sofistas exerceram?

 

Diz Guthrie:

 

Falei como se as circunstâncias políticas e as ações públicas dos Estados gregos originassem as teorias morais arreligiosas e utilitárias dos pensadores e mestres, mas é mais provável que prática e teoria agissem e reagissem mutuamente entre si. Sem dúvida, os atenienses não precisavam de um Trasímaco ou de um Cálicles para ensinar-lhes como lidar com uma ilha recalcitrante, mas os discursos que Tucídides põe nos lábios dos porta-vozes atenienses, no que ele tipifica um debate com a assembleia meliana, trazem marcas inconfundíveis de ensino sofista. Péricles era amigo de Protágoras, e quando Górgias apareceu diante dos atenienses em 427, os novos floreios da oratória com que ele pleiteou a causa de sua terra natal, a Sicília, suscitaram admiração e surpresa (p. 169, n. 11, abaixo). Se os sofistas foram produto de seu tempo, por sua vez também ajudaram a cristalizar suas ideias. Mas seu ensino pelo menos caiu em terreno bem preparado. Ao ver Platão, não eram eles que deviam ser declarados culpados por infeccionar os jovens com pensamentos perniciosos, pois nada mais faziam do que refletir os prazeres e as paixões da democracia existente:

Cada um destes mestres profissionais, que o povo chama de sofistas e considera seus rivais na arte da educação, não ensina, com efeito, nada mais do que as crenças do povo expressas por ele mesmo em suas assembléias. É isso que afirma como sua sabedoria.

 

Os sofistas eram, com efeito, individualistas, e até rivais, competindo entre si por favor público. Não se pode, pois, falar deles como escola. De outro lado, pretender que filosoficamente nada tinham em comum é ir longe. Partilhavam da perspectiva filosófica geral descrita na introdução sob o nome de empirismo, e com este ia ceticismo comum sobre a possibilidade de conhecimento certo, em razão tanto da inadequação e falibilidade de nossas faculdades como da ausência de uma realidade estável para ser conhecida. Todos igualmente acreditavam na antítese entre natureza e convenção. Podem diferir em sua avaliação do valor relativo de uma, mas nenhum deles sustentaria que leis, costumes e crenças religiosos humanos eram inabaláveis porque enraizados numa ordem natural imutável. Estas crenças — ou falta de crenças — eram partilhadas por outros que não eram sofistas profissionais, mas caíram sob sua influência: Tucídides, o historiador; Eurípedes, o poeta trágico; Crítias, o aristocrata, que também escreveu dramas, mas foi um dos mais violentos dos Trinta Tiranos de 404 a.C. Nesta aplicação mais ampla, é perfeitamente justificável falar de mentalidade sofista ou de movimento sofista no pensamento.” [Osório diz: este parágrafo está muito bom!]

[Quando se fala em “todos igualmente, acima, quer se dizer que: Isso está expressamente atestado para Protágoras, Górgias, Hípias e Antífon, e pode-se afirmar com confiança de Pródico, que partilhava da ideia de Protágoras acerca das metas práticas de sua instrução (Platão, Rep. 600c-d). Pode-se mostrar em sofistas posteriores como Alcidamas e Licófron, e seria difícil produzir claro exemplo contrário.]. (Fonte: Os sofistas, W. K. C. Guthrie, tradução, João Rezende Costa, Paulus, São Paulo, 1995, p. 25, 49).

 

Todos os setores da vida grega ficaram marcados pela passagem fulminante desses pensadores: religião, política, moral, direito etc.

Dentre as pessoas de destaque a quem influenciaram, estão, por exemplo: Péricles, Eurípedes, Tucídides, etc.

Não restam dúvidas que Platão e Aristóteles... que serão tidos como seus maiores opositores, beberam também em suas fontes, até para que pudessem tentar contestá-los, mas, sem dúvida, acabaram por eles contaminados. (Veja-se Barbara Cassin).

Não queria, ou quero, neste livro, falar sobre deus, mas é impossível não fazê-lo, já que fomos criados, educados, ensinados, doutrinados ele sempre nos referir: seja pedindo, agradecendo, consultando. De modo que ele, deus, está impregnado na nossa cultura e, consequentemente, por estarmos impregnados pela cultura do nosso em torno, impregnado está o nosso subconsciente. Mas deus é exemplo do que não se prova, embora muitos o tenham como a verdade apelidada, qualificada de: absoluta.

Os dogmas, ou seja, questões indiscutíveis, sãos as provas contundentes dos limites do nosso saber. Eles dizem: se não podemos explicar, está proibido de ser discutido.

São, os dogmas, as guilhotinas usadas pelas religiões.

Como são extremamente escassos os escritos de autoria dos sofistas, restando apenas alguns poucos fragmentos, e a maioria deles conservadas em obras de seus detratores, o diálogo entre Mélios e Atenienses, acima, é muito rico no entendimento daquilo ensinado pelo, a despeito de inapropriado, denominado de movimento sofístico.

Tucídides viveu entre 460 ou 455 e 400 a.e.a., ou seja, foi contemporâneo do movimento que tanto influenciou a sua decantada história, fato que, deveria ser reconhecido por aqueles que “aplaudem” Tucídides e “vaiam” os Sofistas, nunca contradição, por desconhecimento, sem par.

A guerra do Peloponeso foi travada entre 431 a 404 a.e.a., desse período (27 anos), Tucídides narrou em sua obra 21 anos dessa luta. A morte o interrompeu de narrar completamente sua visão da guerra que vivenciou como comandante militar, e sua obra se encerra no de 411-410 a.e.a. Ou seja, seis anos antes do seu término, o qual foi por ele assistido, quando viu a derrota de Atenas, mas não pode relatar.

A “primeira” sofística, como é entendido o movimento do qual participaram Protágoras, Pródicos, Antifon e Górgias, dentre outros Sofistas, ocorreu no chamado século de Péricles, de cujo círculo de amizade participava o primeiro, qual seja, o século V a.e.a. Assim, Tucídides foi contemporâneo deles, logo, conhecia bem seus métodos, tanto assim que os usou abundantemente. A título de exemplo, podemos retirar do diálogo entre Atenienses e Mélios, acima, o seguinte:

a) Platão não foi o primeiro a possuir um “gravador” na antiguidade! Tucídides, que lhe foi antecessor, narra o diálogo acima com uma precisão assombrosa!

b) A cada intervenção de uma das partes (Mélios e Atenienses), fica clara a utilização dos “duplos discursos” propostos por Protágoras, sendo o leitor levado a concordar sempre com a parte que fala, num movimento interno de ida e vinda (concordância e discordância) que avança por todo o texto.

c) Vemos também discutida a tese de Trasímaco, segundo a qual a lei é feita (imposta) pelo mais forte.

d) Também está presente a tese de Crítias quando os Atenienses definem o que entendem por Justiça. Vejamos:

 

A justiça é, por conseguinte, obra do direito natural; esta noção deve ser tomada aqui no sentido que Aristóteles dá, mais tarde ao seu physikon dikáion, e não no sentido de Hobbes ou de Espinosa. Hípias concilia natureza e ética; a sua rejeição do nomos político é feito em nome de uma lei maior e mais ampla, mais rigorosa também. A invocação da natureza – há ainda que insistir nisto – não tem como resultado, para Hípias, permitir a ilegalidade e de alguma maneira avalizá-la; o Anónimo de Jâmblico, atribuído por Untersteiner a Hípias, insiste na exigência da igualdade. Tomemos um dos exemplos que cita: a lei da natureza, que estabelece a interdependência econômica(47). A justiça consiste, pois, em obedecer à lei, mas não à lei escrita da natureza; o nomos é assim superado, ao mesmo tempo que o estreito quadro da cidade que lhe dava origem. A teoria hipiana do direito natural desemboca então no cosmopolitismo, que se adapta plenamente ao enciclopedismo sofista. Hípias chamava à Ásia e à Europa “filhas do Oceano”, estabelecendo assim uma identidade entre estes dois continentes, que era costume contrapor para demonstrar a clivagem entre Bárbaros e Gregos. Por este cosmopolitismo, Hípias opõe-se antecipadamente ao que Hípias chama o “nacionalismo inumano” de Platão; anuncia a filantropia estóica e, em certo sentido, a “catolicidade” cristã. Pensa-se, com efeito, na resposta de Eudoro a Cimodoceu em Chateaubriand, quando Eudoro cobre com o seu manto um escravo encontrado à beira do caminho; Cimodoceu diz-lhe: “Pensaste, sem dúvida, que este escravo era algum deus? – Não, respondeu Eudoro, pensei que era um homem”. [Osório diz: pqp! Que coisa linda!]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 88-89).

 

Mas, tudo isso, está desenvolvido ao longo do texto que coligimos e que será exposto oportunamente.

O tão louvado Péricles, “o pai da democracia”, fica por um dia, segundo Plutarco, a discutir uma questão jurídica com Protágoras! Como o sábio e sagaz político iria “perder seu tempo” com alguém que nada soubesse e contribuísse para a fixação de parâmetros para o caso?

Ademais, quando Péricles desejou dar leis (a Constituição) a uma colônia pan-helênica, Túrios, foi Protágoras quem ele escolheu e deu tal incomum e respeitável incumbência. Por que o faria? Certamente que por tê-lo preparado e a altura de tal missão.

Na atualidade não é menor essa influência que parece imorredoura. Assim é que:

 

Verdade, mentira, certeza, incerteza...

Aquele cego ali na estrada também conhece estas palavras.

Estou sentado num degrau alto e tenho as mãos apertadas

Sobre o mais alto dos joelhos cruzados.

Bem: verdade, mentira, certeza, incerteza o que são?

O cego pára na estrada,

Desliguei as mãos de cima do joelho

Verdade, mentira, certeza, incerteza são as mesmas?

Qualquer cousa mudou numa parte da realidade ?? os meus joelhos e as minhas mãos.

Qual é a ciência que tem conhecimento para isto?

O cego continua o seu caminho e eu não faço mais gestos.

Já não é a mesma hora, nem a mesma gente, nem nada igual.

Ser real é isto.”

 

Poetisa Fernando Pessoa, em Obra Poética, Nova Aguilar, volume único, 1997: p. 232.

 

"Certeza é quando a ideia cansa de procurar e pára."

 

Esclarece o poeta Mario Quintana.

 

Questionado pela imprensa com a pergunta: “A literatura utiliza mentiras para dizer a verdade?”, Alberto Manguel respondeu:

 

Depende do que se entende por mentiras. A ‘mentira’ contada por Homero ou Dante são, em termos de realidade humana, ‘verdades’. A ‘verdade’ de nossos informes de rádio e televisão e dos discursos políticos são, em geral, mentiras. Jean Cocteau dizia: ‘Sou uma mentira que diz a verdade’”. (Fonte: OESP, 12.11.10)

 

O trecho acima destacado prova a tese de Barbara Cassin sobre os Sofistas. (Especialmente no capítulo “Do Romance como Sofística” quando citando Ludvikovsky diz: "'em sua origem, o romance foi apenas uma doença da historiografia': o romance só é pseudos do ponto de vista da historiografia”. (Fonte: O efeito sofístico, Barbara Cassin, editora 34, São Paulo, 2005: p. 239/240).

 

O que se chama de verdade acaba, numa aparente contradição, a ser algo negativo para os sábios! Assim é que Górgias demonstra que é mais fácil enganar um sábio que um burro! Leia-se Plutarco em Da Glória dos Atenienses, que diz:

 

A tragédia floresceu e ficou célebre, tornando-se um admirável recital e um espetáculo para os homens de então e proporcionando, com os seus mitos e afectos, uma ilusão; como diz Górgias, aquele que iludiu é mais justo do que aquele que não iludiu e aquele que é iludido é mais sábio do que aquele que não foi iludido. Quem é iludido é mais justo, porque fez o que prometeu. Quem é iludido é mais sábio, pois quem se deixa impressionar pelo prazer das palavras não é insensível. [5, p. 348 c].

 

O budismo, há milênios, já tinha percebido as palavras como meio de nos aprisionar a algo que criamos conceitualmente e passamos a acreditar nessa criação mental como se fosse algo verdadeiro, que mesmo por nós criado de nós se desprendeu e passou a ter existência concreta e absoluta, e essa crença se mostra mais arraigada quanto alguém ousa contestar nossas ‘verdades’, a desdenhar de nossos filhos/crias amados.

Nós achamos que podemos contar com nossas crenças e ideias para nos satisfazer. Mas, se examinarmos os efeitos que elas causam em nós, descobriremos que, na melhor das hipóteses, elas nos satisfazem apenas temporariamente. De fato, elas são verdadeiramente as nossas fontes primárias de ansiedade e medo, porque estão sempre sujeitas à contradição e à dúvida.

Todas as nossas ideias e crenças são, por sua própria natureza, perspectivas imobilizadas fragmentos da Realidade, separados do Todo. Em outras palavras, porque confiamos mais no que pensamos (concepção) do que no que vemos (percepção), há agitação na nossa mente. Dominados por essa situação, ficamos inquietos e ainda sabemos disso.

O fato é que, mesmo agora, já estamos iluminados. Nós conhecemos a Verdade. Apenas costumamos encobrir nossa experiência direta da Verdade com pensamentos crenças, opiniões e ideias. Empilhamos todos eles numa estrutura conceitual, não reconhecendo as consequências do que estamos fazendo.

O problema não é tanto o fato de fazermos isso. De fato, dificilmente conseguimos deixar de criar conceitos. Eu não poderia escrever este livro e você não poderia lê-lo se não criássemos conceitos. O verdadeiro problema é que somos pegos pelos nossos conceitos. Não temos que lhes atribuir o poder, a precisão ou a validade que eles não têm. Simplesmente precisamos reconhecer que nossos conceitos não são a Realidade.

O erro que cometemos, repetidas vezes, consiste em fixarmos automaticamente algo em nossos pensamentos, sem perceber o que fizemos. E então chegamos a uma conclusão precipitada, pensando que captamos algum aspecto da Realidade.

O que examinamos é aquilo que está dominado pelo campo das nossas crenças, opiniões e conceitos; é um mar infinito de incertezas. Os conceitos aos quais nos apegamos são como minúsculos barcos agitados no meio de um vasto oceano. Contamos com nossas crenças e ideias, considerando-as sólidas, mas, na realidade, elas (e nós) estão em mares revoltos. Quaisquer ideias ou crenças que mantemos em nossa mente são necessariamente contrapostas a outras ideias e crenças. Dessa forma, não podemos evitar de sentir a dúvida.

Este é o âmago mais profundo (...) a angústia existencial. É a compreensão de que, abaixo de todas as nossas ideias, há uma profunda e irremovível dúvida. No mesmo instante em que encobrimos nossa experiência real e direta em pensamento conceitual, a dúvida está exatamente ali, agregada a isso para sempre.

Criar conceitos é ver aspectos separados e distintos. Isso não se refere somente a ideias e pensamentos. Objetos físicos um copo, um livro, mesmo a luz que está sobre esta página são, ainda assim, conceituais. Todavia, eles são coisas que concebemos em nossa mente, separadas do Todo e contrapostas a qualquer outra coisa. Podemos falar a respeito delas, usá-las e manipulá-las. Podemos buscá-las, ansiar por elas ou deixá-las de lado. Não deveríamos, entretanto, tomar por Realidade esses objetos conceituados, imobilizados, isolados do todo. É nesse ponto que erramos...

O maior erro que cometemos em confundir um conceito com a Realidade está em fazermos a distinção mais familiar, estimada e fundamental: a separação entre o eu e tudo o mais. ‘Eu estou aqui, e lá adiante está um mundo estranho a mim’. Acreditando, inquestionavelmente, que isso seja uma descrição integral e exata da Realidade, ignoramos a experiência imediata e buscamos outras coisas bem-estar, felicidade, sentido ‘fora de nós’. ‘Vá em busca disso’, dizemos. (E nossa confusão permanece irredutível, mesmo quando buscamos essas coisas ‘dentro de nós’.).

Chegamos até mesmo a transformar a iluminação nesse objeto. Ao agir dessa forma, no entanto, não conseguimos ver que fizemos disso apenas um outro conceito, ideia ou item a ser perseguido ¡ª algo bastante comum e ilusório.

Mas, se olharmos bem de perto para a nossa experiência imediata, simplesmente não poderemos encontrar essa divisão. Na verdade, quanto mais nos esforçamos para ver, mais absurda e impossível se torna essa distinção.

Como vimos, há um segundo tipo de visão, que Buda chamou de visão correta. Visão correta não é um conceito ou uma crença. De fato, não é nada específico. Visão correta é simplesmente ver a Realidade tal como ela é, aqui e agora, a cada momento. É contar com a mera atenção despida da consciência do que é, antes de surgir o pensamento conceitual. É confiar mais no que realmente experimentamos do que no que pensamos.

Se alguma vez estivermos na iminência de encontrar convicção o verdadeiro conhecimento do que está além de toda dúvida e equívoco isso claramente não virá de nossos conceitos e crenças, que estão em competição. Ao contrário, o verdadeiro conhecimento precisa surgir antes de todas as ideias e opiniões. Em outras palavras, não há nada além da experiência imediata e direta do mundo e no mundo. O verdadeiro conhecimento é ver desse modo.”. (Steve Hagen: Budismo claro e simples, Pensamento, São Paulo: 2000, p. 113).

 

Nietzsche, que bebeu muito do seu pensar no Oriente, diz:

 

O que é, então, a verdade? Uma multidão movente de metáforas, de metonímias, de antropomorfismos, em resumo, um conjunto de relações humanas poeticamente e retoricamente erguidas, transpostas, enfeitadas, e que depois de um longo uso, parecem a um povo firmes, canônicas e constrangedoras: as verdades são ilusões que nós esquecemos que o são, metáforas que foram usadas e que perderam o seu cunho e que a partir de então, entram em consideração já não como moedas, mas apenas como metal”. (Fonte: Obras incompletas. Nietzsche. Coleção Os Pensadores. Abril. São Paulo. 1978. p. 94).

 

Mas foi exatamente ao perceberem essa prisão imposta pelas palavras que os sofistas passaram a questionar o “saber”, o “pensamento”, o “conhecimento”. Não como forma de negá-los, mas, simplesmente, de dizer: pessoal, não é por aí que se deve ir.

Mas este alerta irá transformá-los nas “bestas-feras”, em tudo aquilo que eles não são, ou que são por ousarem contestar o que para alguns é incontestável.

Alerta importante: os sofistas pensaram antes dos seus detratores e não tiveram, portanto, a menor chance de se defenderem. O que seria interessantíssimo. Resta aos seus conhecedores, com a imparcialidade possível, tentar fazê-lo.

Estavam mortos quanto foram criticados, especialmente pelo principal de seus detratores, Platão, e, mais a sério, pelo “discípulo” deste, Aristóteles.

Parecia ser inquestionável o pensamento/doutrina/ensinamento de Parmênides, escudado por seu discípulo Zenon, especialmente o seguinte:

 

Somente ‘aquilo que é’ pode ser expresso e conhecido, porque o ser e o pensar são a mesma coisa; ‘aquilo que não é’, portanto, não pode ser pensado nem expresso”.

 

De repente aparece Górgias e ousa questionar isso, de maneira muito simples, dizendo:

 

Se só o que é pode ser expresso, o que ocorre quando eu expresso: “carruagens andam sobre o mar”?

 

Outro sofista, diz:

 

se ser e pensar são a mesma coisa, e somente eles podem ser expressos, e já que eu posso me expressar sobre tudo, é impossível mentir”.

 

É com isso que o desespero se abate sobre o pensamento/prisão!

Os vigilantes dessa prisão, erguida com palavras, gritarão enfurecidos: alguém está querendo fugir de nossos calabouços. Não podemos permitir que isso ocorra! O que será de nós sem nossos prisioneiros?

Então começa o ataque àqueles que ousaram mostrar que o “rei estava nu”: aos sofistas.

 

 

 

16

Sofística

(uma biografia do conhecimento)

 

33 A revolução que os Sofistas promoveram.

 

Ensina Gilbert Romeyer-Dherbey:

 

Antes dos Sofistas, os educadores da Grécia eram os poetas [Osório diz: os educadores da Grécia]. Só no momento em que a recitação de Homero já não constitui o único alimento cultural dos Gregos é que a sofística poderá nascer; este momento coincidirá, como demonstrou Untersteiner, com a crise da civilização aristocrática2. Mas são as instituições democráticas que permitirão o progresso da sofística, tornando-a de alguma maneira indispensável: a conquista do poder exige, de agora em diante, o perfeito domínio da linguagem e da argumentação: não se trata apenas de ordenar, há também que persuadir e explicar. É por isso que os Sofistas, como nota Jaeger, que “saíam todos da classe média”, foram, de uma maneira geral, mais favoráveis, parece, ao regime democrático. É claro que os seus alunos mais brilhantes foram aristocratas, mas foi porque a democracia escolheu, frequentemente, os seus chefes entre os aristocratas, e os jovens nobres que frequentavam os Sofistas eram os que aceitaram submeter-se às regras das instituições democráticas; os outros desinteressavam-se da vida política. [Osório diz: os sofistas e a crise aristocrática! Mesmo que fosse aristocratas, aprendiam uma nova visão, portanto, revolucionária / O que permitiu o nascimento da sofística]. (Fonte: Os sofistas, Gilbert Romeyer-Dherbey, tradução João Amado, Edições 70, Lisboa, 1999, p. 10).

 

 

 

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